Gustavo H. C. Fagundes [1]
Ulisse alla corte di Alcinoo, 1814-1815, por Francesco Hayez (1791–1882); 381,0 cm: 535,0 cm.
No ensaio intitulado “The Concept of History. Ancient and Modern” [2] , Hannah Arendt mobiliza a noção grega-antiga de que através da Memória a vida individual biológica pôde conferir duração aos trabalhos, feitos e expressões humanas, de modo a se inserir no continuum sempiterno da imortalidade. Neste intuito, a Poesia e a História tiveram como função tornar duráveis na lembrança os feitos e eventos grandiosos a se projetarem, paradigmaticamente, às gerações posteriores. Se compararmos o propósito fulcral da Poesia e da Historiografia gregas, de fato notamos que ambas mobilizam o fundamento da paideia greco-arcaica, em cujo cerne reside o propósito de extrair do passado mítico-histórico os princípios e modelos heroicos de humanidade, morais e físicos, a serem emulados pelas gerações subsequentes. Semelhantemente, o propósito de evitar a obliteração d‘as glórias dos homens’ ( klea andron ), requeridas pelos aedos épicos às Musas da Memória, se reflete no projeto historiográfico de Heródoto [3] , e enquanto este propõe recuperar do passado as convenções da experiência humana que se regeneram constantemente através do Tempo - em especial a instabilidade da sorte ( τυκε ) -, Tucídides, por sua vez, pretende que a História da Guerra do Peloponeso sirva de patrimônio - ou herança ( κτημα ) - sempre útil às gerações provectas [4] . Porém, o surgimento da historiografia entre os gregos ocorre em momento tardio, quando a tendência pela racionalização do pensamento instaura a passagem do mythos para o logos [5] , estreitamente vinculada ao desenvolvimento da escrita, e que do ponto de vista historiográfico significa a apuração dos fatos memoráveis através da investigação e da observação das evidências. Postura que se contrapõe à tradicional confiabilidade, vigente no período arcaico, na oralidade, matizada pelo mito, em que a condição de cegueira tradicionalmente vinculada aos emissários dos Memória, os aedos, desde Homero, simboliza a importância da matéria transcendental acerca dos grandes temas mítico e heróicos, acessados somente sob a anuência advinda da esfera divina. Mas na visão de Hannah Arendt, a profundidade do motivo propriamente humanístico, tanto do ponto de vista da Poesia quanto do ponto de vista da História, ou seja, em que operam simultaneamente o interesse pelos valores tradicionais cultivados no coletivo e o prazer estético, ocorre de modo paradigmático na cena épica em que Odisseu, em seu retorno ( nóstos ) da lendária Guerra de Tróia, presencia uma performance oral palaciana tematizando feitos e sofrimentos nessa guerra da qual ele está entre os protagonistas. Trata-se, portanto, de eventos recentes na memória individual do herói, que levam-no às lágrimas da lembrança, caracterizando, para Arendt, “o processo de ‘reconciliação com a realidade’, a Catharsis , que de acordo com Aristóteles era a essência da tragédia, e, de acordo com Hegel, o propósito máximo da História" [6] . A importância dos poemas épicos para a civilização grega consistia na ocasião tanto de deleite estético quanto de memorização e reatualização dos princípios e valores da esfera coletiva [7] . Pois, além da consideração de Eric Havelock de que os épicos representavam a “enciclopédia da tribo” e o “repositório da tradição” [8] , o helenista também se atentou ao fato de que os esquemas métricos da poesia - épica e dramática - se constituíam por meio de regras orais de composição que deveriam amparar a memorização de conteúdos considerados socialmente úteis [9] , de modo que, em um nível mais sofisticado da vida política grega, escreve Havelock:
The psychology of this oral performance, and the mnemonic purposes it fulfilled, received fresh attention in the greek concept of justice drawing from the central roles assigned to song, dance, and melody in the written literature of Greece. (Havelock , 1986, p.13)
Nesse sentido, tanto as performances de recitação oral da tradição épica, quanto os festivais de competição dramática, característicos do século V a.c., consistiam em ocasiões coletivas onde os valores tradicionais eram veiculados, e cultivados, através do entretenimento, pelo medium sensório; fenômeno este, que, não obstante, se projetava em desdobramentos empíricos com impacto na vida social e política. Desse modo, a educação pela mousike, ou seja, a ‘experiência estética’ caracterizada pelas atividades vinculadas ao universo das Musas, seja no âmbito da poesia (palavra) seja no âmbito da música propriamente (o som) [10] , era condição para que as gerações subsequentes cultivassem o princípio aristotélico de ‘mimetizar’, pois esta seria uma atividade que segundo Aristóteles nos é natural [11] . Com efeito, esse princípio está presente na educação, bem como nas manifestações culturais baseadas na tradição humanística, em que o entretenimento mediante o pathos do reconhecimento pelo público de componentes profundamente humanos representados nas artes gera a depuração - a catharsis - das experiências passionais. Numa apreciação modernizada de Georg Lukács, a catharsis consiste em uma categoria geral do fenômeno estético [12] , que opera conforme a interação entre ‘mundo interior’ e ‘mundo exterior’, de modo a converter, segundo Lukács, a vivência na realidade da arte em ética na realidade mesma [13] .
Se, portanto, considerarmos esse pressuposto catártico no âmbito da relevância da Memória - e cabe acrescentar aqui do Patrimônio Cultural - para o desenvolvimento humano, desde os fundamentos clássicos a nós legados da oralidade na Grécia Antiga, os efeitos individuais e coletivos da relação com a Memória transmitida pelo médium estético configuram uma espécie de ‘fenômeno estético-museal’. E esse processo gera, segundo os termos da pedagogia estética tradicional e da Museologia moderna, para a qual existe a relação entre ‘indivíduo’ e ‘objeto’ em contexto museal, posto em algum grau de imersibilidade com os “objetos” da Memória (inclusive o território), a aquisição da "consciência estética” e da "consciência histórica” que constitui comunidades identitárias [14] .
Na perspectiva do exemplo paradigmático de Odisseu, a passagem de eventos individuais para um fenômeno estético e museal com projeção pública representa a passagem de uma experiência subjetiva para uma experiência objetiva, pois na cena, como observa Arendt, a história das ações e sofrimentos de Odisseu na Guerra de Tróia assumem o caráter de “objeto” mediante a “imitação da ações” que caracteriza a poesia [15] , e fazem-no tanto para o próprio agente ‘mimetizado’ quanto para o público. Arendt compreendeu de modo brilhante que a interação entre as esferas da Poesia e da História se efetiva simultaneamente, pois:
The deepest human motive for history and poetry appears here in unparalleled purity: since listener, actor, and sufferer are the same person, all motives of sheer curiosity and lust for new information, which, of course, have always played a large role in both historical inquiry and aesthetic pleasure, are naturally absent in Ulysses himself, who would have been bored rather than moved if history were only news and poetry only entertainment. (Arendt, 1961, p. 45)
Contudo, uma vez que ambas essas categorias da experiência humana, a História e a Poesia, pertencem, ao menos na Grécia Antiga, ao universo das Musas da Memória, pode-se argumentar que a catharsis de Odisseu se configura como sendo um ‘fenômeno estético-museal’ por excelência dentro do contexto da tradição oral greco-arcaica. Cumpre observar, muito brevemente, o modo como esse episódio se desenvolve. Após inúmeras peripécias e desventuras marítimas desde sua saída vitoriosa de Tróia, Odisseu chega a nado na costa de Esquéria, onde o rei Alcínoo governa sobre os povos feácios, e é recebido pela filha de rei, Nausícaa - uma epifania da deusa Atena - que o conduz ao palácio em que, se introduzindo anonimamente no banquete, o herói suplica ao governante que lhe conceda uma escolta marítima de retorno seguro a Ítaca, sua terra natal. Ao nascer da aurora seguinte, depois de enumerar os recursos navais para a partida do hóspede, Alcínoo convoca um festejo receptivo, ao qual manda chamar o aedo cego, Demódoco, “a quem a Musa amou, e concedeu tanto o bem quanto o mal” [16] . Tendo em seguida sido equipado com o intrumento musical para a realização da performance, a cítara, “a Musa induziu o aedo a cantar as glórias dos homens ( klea andron) ” [17] em meio à corte dos povos feácios, composta por cidadãos, comensais, e pelo hóspede, ainda desconhecido. O aedo canta ‘por alto’ as motivações da guerra: cita Aquiles, o próprio Odisseu, e Agamêmnon. Quando o Odisseu presente derrama as primeiras lágrimas de comoção ao se lembrar dos grandes eventos bélicos em Tróia, ora celebrados publicamente, Alcínoo observa o fenômeno e pede que parem os cantos e se iniciem os jogos comemorativos. Passados vários versos em que ocorrem os jogos, em meio aos quais, após ser provocado por Euríalo, Odisseu também participa, o aedo é novamente chamado ao evento por Alcínoo, e desta vez o próprio Odisseu, ainda em anonimato, mas servindo-se de seu atributo por excelência na tradição mítica, a astúcia ( μητις ), o saúda dizendo: “a Musa ensina à sua estirpe as vias de onde o canto aflora” [18] , de modo que o poeta canta, “como se estivesse presente ou recolhido relatos”, - sendo este o método tardiamente explorado pelos historiadores - “acerca das penas pelas quais passaram os gregos na batalha” [19] ; e cita o grande acontecimento quando ele próprio introduz o “dolo” na acrópole, o lendário “Cavalo de Troia”, que possibilitou a vitória dos gregos sobre os troianos. Na sequência dessa fala em que o Odisseu presente, ainda anônimo, refere-se a si mesmo em terceira pessoa, novamente Demótico recita cantos sobre a guerra, desta vez, porém, aproveitando o mote dado pelo hóspede, canta os desdobramentos que se sucederam ao episódio mencionado, dando destaque à ação do Odisseu lendário ao lado de Menelau nos últimos momentos antes da grande vitória. Percebendo pela segunda vez as copiosas lágrimas que decorrem ao desconhecido, novamente Alcínoo pede que cesse a performance, e solicita ao hóspede que revele sua identidade, a fim de que se explique sobre as razões pelas quais os temas recitados tanto o afetam.
Esta cena é paradigmática para se compreender inclusive o mecanismo de ‘tensão e afrouxamento’ que sintetiza o projeto educacional da paideia grega: poesia para a alma e ginástica para o corpo. Pois, no conhecido texto da República, Platão esboça o princípio da noção de ‘depuração da alma’ mediante a mousiké . ‘Depurar’ ( διακαθαίρω - a mesma raíz da catharsis aristotélica : κάθαρσις’ ) tem aqui o propósito de harmonizar a alma ( ψυχή ) por meio da “tensão e do afrouxamento” propiciados pelas atividades vinculadas ao universo das Musas - mousiké [20] . Esse esquema se replica semelhantemente na pedagogia estética de Schiller, que nas Cartas Sobre a Educação Estética do Humanidade, escritas sob a atmosfera dos ideais da Revolução Francesa, fórmula o esquema entre o ‘efeito dissolvente' e ‘efeito tensionante’ do belo, enquanto sendo os motores para o processo de ‘reciprocidade’ entre os impulsos “sensível” e “racional”, que se efetiva em um terceiro impulso vinculado à liberdade e ao jogo: o Impulso Lúdico [21] . Isso permite observar, que o cânone da educação pela experiência estética perfaz-se mediante o equilíbrio entre as dimensões da sensibilidade e as da racionalidade, podendo-se resumir, muito sinteticamente, na intenção harmônica entre as disposições do corpo e as disposições da alma.
Quando Alcínoo pede que cesse a performance poética, após perceber as abundantes lágrimas de Odisseu, e se iniciem os jogos, ao passo que, em contrapartida, convoca novamente o aedo quando a atmosfera agonística dos jogos instaura novas apreensões entre os convivas e o hóspede, claramente tem como propósito servir-se desse pressuposto entre ‘tensão e afrouxamento’ para amenizar equilibradamente as tensões geradas em sua corte na presença de um estranho recém-chegado. Em vista do insistente pranto de Odisseu, o rei então questiona, pela primeira vez, o nome e a origem do hóspede, já intuindo que se tratasse de um indivíduo incomum, com estreito vínculo aos grandes feitos lendários. Responde então Odisseu: não há desígnio ( τέλος ) mais gracioso ( χαρίεις ) que perceber todo o demo ( δῆμος ) e os comensais a ouvirem o aedo com prazer ( εὐφρόσυνος )” [22] . O aedo, no caso em questão, se resume no medium estético emissário do feitio épico das ações e sofrimentos factuais do próprio herói, expostos à coletividade.
Do ponto de vista da experiência museal, o imenso deleite experimentado por Odisseu se intensifica por ver ‘democratizados esteticamente’, enquanto “objeto” alheio a si mesmo, eventos que até o momento pertenciam a sua mais profunda individualidade. Nesse sentido, a cena também apresenta princípios fundantes para a relação entre educação estética e experiência com a Memória, razão pela qual, na visão de Hannah Arendt, trata-se de um fenômeno paradigmático da Poesia e da História. Contudo, a imensa projeção metapoética da catharsis promove a interação imersiva, prazerosa tanto para o público do aedo quanto para o leitor da Odisseia, entre as potências da atividade humana capazes de conferir duração aos feitos, ações, expressões e eventos comumente relevantes, de modo que a experiência individual paradigmática deixa de ser singular e se torna plural mediante pathos, o deleite estético e o aprendizado que propicia a um público numeroso e atemporal.
[1] Graduando em Língua e Literatura Grega pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciência Humanas da Universidade de São Paulo. Realizou um estágio de pesquisa no arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros, tendo trabalhado em especial nos Fundos Waldisa Rússio e Gilda de Mello e Souza e Antônio Cândido. Atualmente se dedica ao estudo e tradução do tratado pseudo-aristotélico sobre a técnica da fisiognomonia na Grécia Antiga.
[2] In . Arendt, Hannah. Between Past and Future. Six Exercises in Political Thought. New York: The Viking Press. 1961.
[3] Heródoto Histórias. Livro I, prólogo.
[4] Tucídides . História da Guerra do Peloponeso . Livro I, parte 22.
[5] Finley, M.I. “Mito, Memória e História''. In . Uso e abuso da História . Trad. de M. Michel. São Paulo: Martins Fontes, 1989, 3-27.
[6] Cf. Arendt, 1961, p. 45.
[7] Cf. Havelock, 1963.
[8] Havelock, Erick, A. The Literate Revolution in Greece and Its Cultural Consequences. Princeton University Press, 1982
[9] Havelock, Erick, A. The muse learns to write. Yale University Press, 1986.
[10] PLATÃO. A República . J. Guinsburg organização e tradução. Daniel Rossi Nunes Lopes, notas. São Paulo: Perspectiva, 2014. Vide nota à p. 85.
[11] Poética . 1448b-21.
[12] Lukács, Georg. “La catarsis como categoría general de la estética”. In . Estética . Vol. II. Barcelona: Ediciones Grijalbo, S. A., 1967. p. 503.
[13] Cf. Lukács, "Cuestiones liminares de la mimesis estética” In . Estética ., Vol. IV., 1967, p. 76.
[14] Cf. Hooper-Greenhill, 1992; e Rússio, W. C. G. “O Objeto da Museologia” in . ICOM (ICOFOM), 2020.
[15] Cf. Arendt, 1961, p. 45.
[16] Od . XVIII, v. 63.Tradução minha.
[17] Od . XVIII, v. 73.
[18] Od. XVIII, v. 480. Tradução de Trajano Vieira.
[19] Od . XVIII, v. 490-91.
[20] Rep . III. 411e-4112a; e IV. 441e e 442a.
[21] Schiller, Friedrich. Briefe über die Ästhetische Erziehung des Menschen. Carta XVI in : ( https://www.projekt-gutenberg.org/schiller/aesterz/aesterz3.html ).
[22] Od. XIX. 5-7. Tradução minha.