Claudia Gobbi Bazanelli [1]
A Secretaria Municipal de Cultura não será produtora de cultura nem dirigirá a cultura sob perspectiva doutrinária.
A esta Secretaria caberá estimular e promover condições para que a população desta cidade crie e frua a invenção cultural.
(Marilena Chauí)
Tem ocasiões que você participa de algumas experiências, intuí que aquilo é bom, saudável, produtivo. Porém somente após um certo número de anos (no meu caso, algumas décadas),muito trabalho e estudos você consegue entender porque aquilo visto não era apenas diferente, era uma tentativa de mudança radical, visava a transformação e o desenvolvimento da sociedade. Quero falar sobre meu contato com a Casa de Cultura de Santo Amaro, criada durante a gestão de Luiza Erundina na Prefeitura de São Paulo (1989-1992). A titular da pasta da Secretaria de Cultura deste governo era Marilena Chauí, Professora Titular do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Aquele espaço foi impactante na minha vida e somente agora possuo ferramentas que me possibilitam fazer uma reflexão crítica sobre aquela experiência. Vamos voltar um pouco. Para entender a política cultural que possibilitou a criação de casas de cultura por toda a cidade é preciso saber qualo conceito de cultura que norteou a gestão e por consequência o plano de políticas públicas adotado para a área cultural.
Para Raymond Williams “uma cultura tem dois aspectos: os significados e direções conhecidos, em que seus membros são treinados; e as novas observações e significados, que são apresentados e testados. (WILLIAMS, 1958, p.2). Ou seja, trazemos nossa bagagem familiar e somos transformados pelo nosso entorno e experiências pessoais ao longo da vida. A qualidade dessas experiências depende de fatores diversos como políticas públicas, planos econômicos, acesso à informação. A Constituição brasileira de 1988 garante a todos o direito à cultura, portanto cabe ao Estado criar e promover políticas públicas que transformem em realidade este direito.
“...estabelecer um plano de cultura, integrar a comunidade na gestão cultural, destinar recursos para a cultura, estabelecer inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, outras formas de acautelamento e preservação do patrimônio cultural e guarnecer os documentos públicos, são essencialmente elementos garantidores dos direitos culturais declarados como fundamentais.” (FILHO, 2018,pág.46).
Para se estabelecer as diretrizes de uma política cultural abrangente e democrática é preciso estabelecer objetivos e metas bem claros, pois corre-se o risco de se perder o foco e não chegar a lugar nenhum, então voltamos à questão: o que é cultura? Isadora Botelho trabalha com duas concepções: a antropológica e a sociológica. Segundo a autora, na visão antropológica “a cultura se produz através da interação social dos indivíduos, que elaboram seus modos de pensar e sentir, constroem seus valores, manejam suas identidades e diferenças e estabelecem suas rotinas. Desta forma, cada indivíduo ergue à sua volta, e em função de determinações de todo tipo diversas, pequenos mundos de sentido que lhe permitem uma relativa estabilidade.” (BOTELHO, 2001, p.74).O impacto na criação de políticas públicas é gigante.Como é possível estabelecer ações realistas se em última análise tudo é cultura? Como distribuir recursos e esforços, quais demandas atender? O desafio é tão imenso que necessariamente não atenderá plenamente o objetivo de ser universal.
A outra concepção, a sociológica, ainda segundo Botelho é definida como “uma produção elaborada com a intenção explícita de construir determinados sentidos e de alcançar algum tipo de público, através dos meios específicos de expressão. Em outras palavras, a dimensão sociológica da cultura refere-se a um conjunto diversificado de demandas profissionais, institucionais, políticas e econômicas, tendo, portanto, visibilidade em si própria. (BOTELHO, 2001, p.74).Entendendo a cultura por esse viés é mais simples de estabelecer metas, objetivos, fazer diagnósticos, delimitar o campo de atuaçãoe estimar recursos financeiros.
Tendo essa concepção sociológica em mente,podemos compreender as bases da Política de Cidadania Cultural proposta por Marilena Chauí para a cidade de São Paulo. Este projeto se baseava em um rígido tripé:
- A cultura é um direito dos cidadãos;
- A cultura é um trabalho de criação;
- O Estado não é produtor de cultura.
Historicamente,os governantes e partidos no Brasil não se debruçam sobre o tema da cultura e nesse ponto o Partido dos Trabalhadores, ainda sem muita experiência administrativa, pouco se diferenciava. Chauí, vinda da academia, assumiu o desafio de lançar alicerces de uma política pública para a cultura que visava não a democratização da cultura, mas sim uma cultura de democracia. Esta concepção assume que o cidadão não é apenas um fruidor de cultura, mas também um agente produtor, criador. Dessa maneira a cultura é entendida como um organismo vivo presente em todas as atividades humanas.
Os desafios foram vários e infelizmente conhecidos de todos que conhecem um pouco das estruturas governamentais: muita burocracia, falta de verba, ausência de um projeto a longo prazo, que confunde uma política de eventos com política cultural. A Secretaria lutou também com a visão restrita que havia (e ainda há) sobre cultura, se uma ação não se baseava nas artes plásticas tradicionais, literatura ou música não era considerada apta a receber verba ou apoio. Somente em 1991, último ano do governo, a Prefeita Erundina conseguiu, por decreto, rever a ideia de cultura vigente na cidade de São Paulo. Segue o Decreto nº 29.472 DE 10 DE JANEIRO DE 1991:
CONSIDERANDO O disposto nos artigos 23 e 215 da Constituição da República;CONSIDERANDO O disposto nos artigos 191 a 199 da Lei Orgânica do Município de São Paulo;CONSIDERANDO que à cultura foi atribuído o caráter de direito, acessível a todos os brasileiros;CONSIDERANDO que a cultura engloba todas as formas de expressão emanifestaçãoculturais,
DECRETA:
Art. 1º A promoção do desenvolvimento de atividades, instituições e iniciativas de natureza artística e cultural, previstas no artigo 1º da Lei nº 8.204, de 13 de janeiro de 1975, implica em assegurar o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura, a todos munícipes.
Art. 2º Considera-se atividade de natureza artística e cultural tudo o que deriva da atividade humana, como resultado de sua criação intelectual, sob todas as formas de expressão.
Art. 3º Para os fins do disposto no artigo 1º deste decreto, a Secretaria Municipal de Cultura deverá apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais e oferecer condições à população para acesso aos bens culturais.
Durante quatro anos a Secretaria tentou descentralizar as decisões criando conselhos e fóruns; restaurou casas históricas e monumentos; abriu espaço para projetos que privilegiavam setores da sociedade até então invisíveis para o poder público, como foram o Projeto Memória Social do Cotidiano (Oficinas literárias), Embaixada dos Povos da Floresta, o Centro de Documentação e Atividades Artístico-culturais Afro-brasileiras e o Projeto São Paulo dos 1.000 Povos. Dentre todas as ações, uma que teve mais visibilidade foi a criação de 14 Casas de Cultura espalhadas por toda cidade.
Casas de cultura: adaptação de espaços públicos ociosos para laboratórios e oficinas de produção cultural, cursos e debates sobre questões da cidade. Foram concebidas como centros de irradiação da produção cultural e de recepção da produção cultural de outras regiões da cidade, estabelecendo vínculos entre o centro e a periferia, e como estímulo à formação de núcleos e fóruns regionais de cultura independentes do poder público e capazes de intervir nas decisões de política cultural do Município. Direção sob forma de colegiados de co-gestão. Doze em funcionamento; dois entregues em dezembro de 1992. (CHAUÍ, 1992, pág.91).
E assim chegamos à minha experiência. Em 1992 acompanhei as gravações de um vídeo de conclusão do curso de jornalismo de uma colega da faculdade. Pensamos juntas na ideia de registrar o trabalho da Rádio 10 (projeto da Casa de Cultura de Santo Amaro) ao mesmo tempo que falávamos sobre o hip-hop. Vídeo feito sem muitos recursos, a câmera era do meu pai, para gravar vídeos caseiros, porém os depoimentos dos meninos ainda são fortes e muito atuais.
A Gestão de Marilena Chauí não foi perfeita, como todo projeto piloto o é. Apesar da boa vontade, falhou em dialogar, e talvez tenha aberto muito o leque de atividades e não teve fôlego para dar qualidade e/ou continuidade a muitas delas. Porém, o que vi naquelas tardes de sábado, a alegria da rapaziada, as discussões sobre vida, futuro, preconceitos que sofriam, eram discussões pesadas feitas num ambiente de liberdade e confiança mútua. Acrescente a tudo isso a vontade de produzir arte, e para usar uma expressão tão em uso hoje em dia: “encontrar seu lugar de fala”. Aquelas tardes me deram esperança de uma cultura mais democrática, participativa e cidadã. E agora, revendo o vídeo, ainda me dão.
Para assistir o vídeo. Segue o link: https://vimeo.com/713861603
[1] graduada em Jornalismo. Especialização em Gestão de Projetos Culturais. Técnica em Catalogação e Documentação de Acervos de Arte.
Bibliografia
- Direitos culturais como direitos humanos fundamentais, in: CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Teoria dos direitos culturais: fundamentos e finalidades. São Paulo: Edições Sesc, 2018, p. 33-54.
- BARBISAN, Elisabete. Rappers. Trabalho de conclusão de curso. Campinas: PUCCAMP. Disponível em: https://vimeo.com/713861603
- BOTELHO, Isaura. Dimensões da cultura e políticas públicas. In: São Paulo em Perspectiva. São Paulo, 15 (2): 73-83, abril/junho de 2001.
- CHAUÍ, Marilena. Cidadania cultural. Relato de uma experiência. Cidade Editora, 1992.
- FERREIRA, Luzia Aparecida. Políticas públicas para a cultura: teoria e prática. Curitiba: Appris editora, 2017.
- MATA-MACHADO, Bernardo Novais da. Direitos humanos e direitos culturais, Cidade Editora, 2007.
- WILLIAMS, Raymond. A Cultura é de todos, 1958. Trad. Maria Elisa Cevasco. Departamento de Letras (USP).