Lucas Porfirio Sanches [2]
Memória, fato da mente, mas também fato social; nós lembramos, mas também somos lembrados pelos outros; nenhuma dessas duas formas de narrativa são a verdade absoluta, mas não é seu objetivo que seja e são justamente os objetivos por trás das narrativas de memória que preocupam os estudiosos da área museológica. Daí saem os questionamentos, as novas formas de museu, para que museu? Para quem museu? Pois, como diz Maria Cristina Bruno (2020), existe uma utopia compartilhada pelos profissionais de museus e, a bem dizer, pela intelligentsia universitária: a de que essas narrativas de memória, mais do que “verdadeiras”, incluam todos os grupos sociais envolvidos, mesmo os subalternos. Como diz Jacques Le Goff (2014, p. 12), “Os fenômenos da memória tanto nos seus aspectos biológicos como nos psicológicos, mais não são que os resultados de sistemas dinâmicos de organização e apenas existem na medida em que a organização os mantém ou os reconstitui”.
Museus só são lugares de afirmação de poder, pois a memória contida e contada por eles irá definir como os outros irão lembrar os grupos apresentados pelo patrimônio preservado e, talvez mais ainda, quem será esquecido. É aí que se encontra o poder, em escolher quem é esquecido e quem é lembrado, como, então, fazer uma museologia que permita que grupos até agora esquecidos, entrem para as grandes narrativas? Ou então, como reimaginar narrativas costumeiras, que foram criadas tendo em vista outros objetivos, que não mais compartilhamos? (A perspectiva decolonial entra nesse jogo). A frase seguinte de Maria Cristina Bruno (2020, p. 20) sobre o significado da museologia pode nos ajudar a responder:
Trata-se de um campo que identifica, articula, manipula, projeta e preserva indicadores de memórias enquadrando-os como referências patrimoniais a partir de caminhos próprios, mas sempre em conexão com outros olhares e diversos campos científicos.
A lição da professora é que a resposta da nossa pergunta é comunitária; mais do que um conjunto de regras, ela (e muitos outros) nos indicam com quem pensar soluções, pois só com um bom número de perspectivas diferentes que seria possível chegar em algo ao menos próximo da utopia por nós imaginada. E essa interdisciplinaridade não acaba aí, na interação entre cientistas, como diz o professor Mario Moutinho (2007, p. 1), falando sobre a perspectiva da Sociomuseologia, “A abertura do museu ao meio e a sua relação orgânica com o contexto social que lhe dá vida, têm provocado a necessidade de elaborar e esclarecer relações, noções e conceitos [...]”.
O museu deve ter uma relação orgânica com o meio no qual ele se insere, ou seja, ele deve conversar com a sua comunidade, pois é só por meio dela que ele tem relevância, em outras palavras, um museu para poucos já não é mais aceitável.
Estabelecer e construir esse conhecimento não é tarefa fácil, isso envolve o exercício da interdisciplinaridade dentro e fora do museu. Fora, envolve a articulação com a sociedade, o que ela procura? O que podemos oferecer com o nosso acervo? Estamos contemplando mesmo todos os grupos que pretendemos contemplar? [3] E dentro, envolve a articulação de conceitos de diversas outras áreas (História, Sociologia, Arte etc.), o pesquisador da museologia deve ter em mente que seu trabalho nunca será individual, e nem deveria, a ideia da cooperação entre as disciplinas do conhecimento já é antiga dentre as ciências.
A tentativa desse campo é não excluir ninguém, na verdade, pelo próprio jeito que funciona, a museologia contemporânea se torna um guarda-chuva para abrigar as diversas denominações de museu que existem hoje, pois o que importa para ela é o seu argumento, ou seja, por que você existe? Por que está aqui? Nesta comunidade específica; você a ajuda? Você é acessível para ela? Você pensa na sua educação? De certa maneira, essa ciência existe para trazer os museus antigos para o novo mundo e dar apoio aos que estão nascendo, pois todos enfrentam dificuldades e todos podem melhorar suas atuações.
Esse questionamento todo nasce de uma necessidade científica, a de estabelecer um fato. Neste caso, podemos falar do fato “museal” ou museológico, definição defendida por Waldisa Rússio (1981) para falar da “faísca” científica que só é possível dentro da instituição museu. Levando em consideração algumas coisas que já foram tratadas aqui como memória e poder. São três os fenômenos que formam o fato museal de Rússio: O homem, o objeto e a relação entre eles.
O fenômeno homem envolve tudo o que o visitante do museu é, ele traz as suas memórias, suas afiliações políticas e morais; por isso é tratado como fenômeno, o homem não é uma unidade estática, está sempre em movimento. É seu papel confrontar os conhecimentos que ele traz com os que são propostos pelo museu.
Esse conhecimento é proposto por intermédio do segundo ator, o objeto. Podendo ele ser material ou imaterial, o objeto também é fenômeno na medida que seu significado vem de narrativas criadas em cima dele tendo em vista conhecimentos científicos e a concatenação dele com outros objetos, que faz parte do chamado processo de musealização: remoção do meio original, identificação, pesquisa, conservação, exposição etc. (RÚSSIO, 1981).
Por fim, o terceiro fenômeno, o encontro entre esses dois mundos, entre dois sistemas de conhecimento histórico e científico, produzidos de maneiras distintas que, ao se chocarem, criam uma faísca pedagógica impossível de ser reproduzida em outra instituição de pesquisa. O efeito dessa faísca recai mais sobre o homem do que sobre o objeto, pois automaticamente surgem questionamentos em sua mente que são essenciais para a formação de um indivíduo crítico, mas o museólogo deve, também, ficar atento para os possíveis efeitos positivos que esses questionamentos podem ter sobre os objetos, levando-os para o âmbito da pesquisa.
Há, ainda, a existência de um quarto ator, a própria instituição, ela tem um papel importante para que essa relação possa acontecer de forma tranquila e com a maior quantidade de pessoas diferentes possível, para que se criem vários conhecimentos novos.
É interessante notar aqui que o objetivo desse conceito não é explicar como funcionam os museus hoje, mas sim como eles sempre funcionaram, se deixados para seguir seu caminho natural, é claro. Já vimos como museus são lugares de criação de discursos de poder e, historicamente, qualquer relação pedagógica nesse espaço era muito mais unilateral, no qual o Estado passava a sua visão histórica para a população (ABREU; RUSSI, 2018). O que Waldisa diz aqui é que mesmo que esse seja o objetivo da instituição, o homem não é uma folha em branco e, querendo ou não, ele vai sair do museu com mais perguntas do que respostas, o papel do museu contemporâneo seria facilitar esse acontecimento.
Cabe, no intuito deste artigo, falar também do conceito de Sociomuseologia, mencionado brevemente na fala de Moutinho (2007), também um dos caminhos da cientifização da museologia. Já na metade do século XX os museus começam a passar por grandes mudanças, e elas não estão desassociadas dos eventos que ocorriam pelo mundo. Bruno Brulon Soares (2012) chama especial atenção para o fato de que, depois da Segunda Guerra Mundial, acontece um crescimento de pequenos museus locais que pretendiam ajudar a reconstruir as comunidades arrasadas pela guerra e preservar sua memória; Moutinho (2014), por sua vez, irá destacar também o papel das convulsões sociais dos anos 60 sob a sombra da Guerra Fria.
De uma forma ou de outra, é fato que o pós-guerra acendeu uma série de questões que os museus teriam que tratar, o mundo já não era colonial, os grandes discursos de poder já não faziam sentido e as elites começavam a perder espaço na criação de conhecimento, surge a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) em 1945 e, com ela, o Conselho Internacional de Museus (Icom), no ano seguinte, que pretendia pensar a existência do museu, sua serventia num mundo que cada vez mais olhava para suas fundações, após o horror da guerra.
Uma das ações do Icom foi a Mesa Redonda do Chile, de 1972, na qual se juntaram e fervilharam muitos desses questionamentos, dando origem a resoluções muito citadas até hoje. De caráter fortemente freireano, ela vai discutir novas configurações desse tipo de instituição e como elas devem agir. Soares (2012) cita com especial importância o aparecimento do movimento que ficou conhecido como Nova Museologia.
Para entendê-la, é preciso ter em mente que até aquele momento, o campo do conhecimento Museologia era visto como uma área técnica do funcionamento dos museus, Curadoria, Expografia, Conservação, Educação, tudo isso era pensado somente nas suas dimensões práticas. A Nova Museologia vem no bojo do pensamento sobre museus que pretendia, também, pensar teorias e metodologias para este campo.
Ligada a este movimento, vem a ideia da “Sociomuseologia”, que nada mais seria do que o nome dado a essa “ciência dos museus”, introduzindo-a ao rol do que se convém chamar de ciências humanas, como Sociologia e História. Já citado aqui, o fato museal de Waldisa Rússio consegue se encaixar como objeto de estudo, pois para esta linha de pensamento, o objeto a ser estudado pelos cientistas museólogos é a relação entre o ser humano e a sua realidade, neste caso, a realidade da forma que ela é apresentada por uma instituição que se pretende chamar de museu.
A Sociomuseologia é importante pois pretende sistematizar o que existe de mais contemporâneo no pensamento museológico. Leva em consideração a história do museu, desde que se chamava mouseion, passando pelas mudanças propostas no século XX e tentando aglutinar todas as propostas que indiquem um museu mais preocupado com a sua sociedade.
Por último, diz Mário Chagas (2018, p. 310):
A museologia e os museus são antes de tudo inacabamentos. A museologia, a escrita e a leitura dos museus são devires, fazeres e saberes em processo, em passagem. Os museus e a museologia são ou podem ser passagem de vida que atravessa o vivível no aqui e agora e o vivido num passado-presente qualquer. Walter Benjamin que dava atenção aos fragmentos, bem sabia e iluminava a compreensão de que os museus são espaços que propiciam sonhos. Por tudo isso, é possível dizer de modo contundente: ‘A museologia que não serve para a vida não serve para nada’ (Grifos do autor).
Nada do que está sendo tratado aqui está finalizado, o “fato museal” é um conceito relativamente novo se considerarmos o tempo de existência de alguns museus, a Sociomuseologia é um campo aberto que abarca várias tipologias e preza pela interdisciplinaridade e a construção e reconstrução de narrativas de memória também são processos relativamente recentes na história dos museus. Mais do que isso, eles são fenômenos científicos em constante reinvenção, ou seja, não é seu objetivo que, um dia, acabem. Pelo contrário, eles procuram entender que as sociedades não são corpos fixos, mas sim processos em constante mudança e, agora, tentam acompanhar esse movimento para registrar, pesquisar e expor as memórias dos vários grupos que a compõem.
[1] Texto produzido na disciplina Interdisciplinaridade: museu, arte e cultura, no primeiro semestre do curso de Especialização em Museologia, Cultura e Educação, da PUC-SP, sob coordenação da professora Luciana Pasqualucci.
[2] Graduado em História pela FFLCH-USP e, atualmente, estudante do curso de Especialização em Museologia, Cultura e Educação, da PUC-SP
[3] Podemos inserir aqui também as lutas institucionais do museu, quebrar as hierarquias e horizontalizar o funcionamento do museu também é trabalho do museólogo.
Referências
- ABREU, Regina; RUSSI, Adriana. Cartografia dos Museus de Antropologia no Brasil: onde o outro nos habita. Anais 200 anos de museus no Brasil: desafios e perspectivas. Brasília: Ibram, 2018.
- BRUNO, Maria Cristina Oliveira. Museologia: entre abandono e destino. Museologia & Interdisciplinaridade, Brasília, v. 9, n. 17, jan/jul de 2020. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/museologia/article/view/31590 . Acesso em: 09/07/2022.
- CHAGAS, Mário. Seminário 200 anos de Museus no Brasil: desafios e perspectivas (a partir da museologia social) para os museus no Brasil contemporâneo. Anais 200 anos de museus no Brasil: desafios e perspectivas. Brasília: Ibram, 2018.
- LE GOFF, Jacques. História e Memória. 7. ed. Campinas: Unicamp, 2014.
- MOUTINHO, Mario C. Definição evolutiva de Sociomuseologia – Proposta para reflexão. Cadernos de Sociomuseologia, v. 28, n. 28, 2007. Disponível em: http://www.museologia-portugal.net/files/definicao_evolutiva_de_sociomuseologia.pdf . Acesso em: 09/07/2022.
- MOUTINHO, Mário. Entre os museus de Foucault e os museus complexos. Revista MUSAS Setubal, 2014. Disponível em: https://ceam2018.files.wordpress.com/2018/07/entre-os-museus-de-foucault-e-os-museus-complexos.pdf . Acesso em: 09/07/2022.
- RÚSSIO, Waldisa. A Interdisciplinaridade em Museologia. In: BRUNO, Maria Cristina Oliveira (Coord.). Waldisa Rússio Camargo Guarnieri: textos e contextos de uma trajetória profissional. Volume 1. São Paulo: Icom Brasil, 1981. p. 123-126.
- SOARES, Bruno C. Brulon. A experiência museológica: Conceitos para uma fenomenologia do Museu. Revista Museologia e Patrimônio, v. 5, n. 2, 2012. Disponível em: http://revistamuseologiaepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus/article/viewFile/216/200#:~:text=Produtora%20de%20musealidade%2C%20a%20experi%C3%AAncia,Nada%20disso%20%C3%A9%20metaf%C3%ADsico . Acesso em: 09/07/2022.