Carlos Augusto Ribeiro Jotta [1] 

O título deste artigo, “Cum ment et memoria: um museu para Gorceix” que em português pode ser traduzido para “Com a mente e a memória” é uma alusão ao brasão símbolo da Escola de Minas da Universidade Federal de Ouro Preto. No emblema, está gravada a inscrição em latim “Cum ment et maleo” ou em tradução livre para o português “Com a mente e o martelo”. Este trecho em latim é revivido por alguns autores e ex-professores da Escola de Minas de Ouro Preto (EMOP) para dizer o quanto Claude Henri Gorceix trabalhou e atuou para forjar o ensino das ciências minero-metalúrgicas em Minas Gerais. Com a proposta inicial de criação de uma “Escola de Mineiros”, Gorceix tinha em mente um ensino prático e científico atrelado ao funcionamento de importantes gabinetes e laboratórios didáticos na Escola, por isso o termo em latim “com a mente e o martelo” referindo-se ao trabalho do engenheiro.

É sobre a ótica da relevância de Gorceix para a EMOP e posteriormente sobre a formação do patrimônio cultural universitário da Universidade Federal de Ouro Preto que este ensaio se concentra. A formação do patrimônio cultural universitário na EMOP remonta os anos de 1930, mas ganha força na década de 1970 com a proposta de salvaguardar a memória do ensino da engenharia e o legado de Claude Henri Gorceix.

Neste sentido, pode-se observar a influência de duas importantes figuras na formação de um Museu de Gorceix no ano de 1970. Cristiano Barbosa da Silva foi professor e ex-aluno da EMOP, sendo filho de Augusto Barbosa da Silva, também ex-professor. O que ambos têm em comum, além do parentesco e a formação acadêmica é a busca constante pelo registro da memória de Gorceix e da EMOP, relatando em seus documentos um “apreço” e conhecimento sobre a trajetória científica do ex-diretor e geólogo francês.

Com o propósito de levantar e inventariar objetos e documentos que estivessem intimamente relacionados à figura de Claude Henri Gorceix, o professor Barbosa da Silva fez um arrolamento de próprio punho sobre todos os artefatos que tivessem alguma ligação ao antigo diretor. Tal o documento, indica a intenção de se criar um Museu de Gorceix e que ele possuía em seu acervo cartas de correspondência entre Gorceix com os demais professores, monografias, artigos de uso pessoal, mobiliário, entre outros.

A formação e reunião desta coleção atestam os esforços de Barbosa da Silva para que a Escola de Minas de Ouro Preto preservasse parte de seus objetos e documentos relativos ao século XIX. Na década de 1970, pós-reforma universitária de 1968, a Escola de Minas de Ouro Preto passava por um processo de mudança institucional, que culminou na criação da Universidade Federal de Ouro Preto. Podemos aqui depreender que isso constituía um risco de perda ou descarte dos antigos registros materiais do ensino e pesquisa, ainda sob guarda da instituição, sendo talvez uma das motivações para o professor propor a criação de mais um museu.

Nesse sentido, algumas ações em direção ao passado reforçaram as tentativas de se compor um caráter identitário para a Escola de Minas de Ouro Preto, ancorado na sua tradição e história novecentista, frente às novas perspectivas em que ela então deveria se encaixar a partir das novas configurações institucionais. A primeira foi o processo de transladação dos restos mortais de Claude Henri Gorceix da França para o Brasil, articulado inteiramente pelo ex-aluno Amaro Lanari Junior [2]. Esse processo contou com a participação de diversos agentes, como a Escola de Minas de Ouro Preto, a Fundação Gorceix e a USIMINAS [3]. No dia 11 de outubro de 1970, os restos mortais de Claude Henri Gorceix chegaram a Ouro Preto em uma cerimônia que contava com autoridades brasileiras e francesas. Nesta ocasião, também foram doados alguns objetos pessoais que pertenceram à Gorceix no Brasil e na França, como microscópio, lupa, óculos e suas cadernetas de campo; segundo Cristiano Barbosa da Silva (1975).

Toda essa homenagem rendeu à Escola de Minas de Ouro Preto a proposta da criação de um ambiente sacralizado, carregado de memória e história. Pretendia-se criar o Panteão dos Pioneiros da Siderurgia, começando por Gorceix. Essa proposta, apesar de bem aceita entre a comunidade de professores e ex-alunos, não se consolidou a ponto de se seguir com a sua execução (SILVA, 1975; PINHEIRO et al, 1976).

Podemos observar que esse movimento para se construir uma identidade para a EMOP, com a proposta da criação de um Museu Gorceix, foi pensada para unir a memória do fundador da Escola com a trajetória histórica da instituição. Com essa iniciativa, a figura de Gorceix, sua trajetória na Escola e os objetos a ele associados passaram a personificar um passado glorioso que se queria cultuar. Para receber os restos mortais, bem como parte dos objetos pessoais e de trabalho, foi criado na EMOP o Panteão Gorceix, espaço de homenagem onde encontrava-se, além da urna funerária, um pince-nez atribuído a Gorceix, livros, cartas e objetos que foram reunidos dentro da própria escola. Parte dessa documentação encontra-se hoje sob guarda do Arquivo Permanente da Escola de Minas [4].

Identificamos que a idealização e concepção do Museu Gorceix foi iniciada a partir de outubro de 1970, mas de modo oficioso. Nesta pesquisa, ainda não foram encontrados instrumentos legais sobre o processo institucional dessa criação. Para a criação legítima de uma instituição museológica, é preciso que o procedimento seja efetivado por meio de decreto, portaria ou instrução normativa. Entretanto, é possível detectar, em documentos e correspondências que estão no Arquivo Permanente da Escola de Minas, que a terminologia “Museu de Gorceix” esteve presente desde o início do ano de 1970, e com o traslado dos restos mortais, indicando o desejo de se criar uma instituição em homenagem ao dito fundador da Escola. (LEMOS, et al. p.45)

Contudo, observamos indícios institucionais do processo inicial de musealização dos vestígios de Claude Henri Gorceix nas atas da Congregação de Outubro de 1970. Em uma reunião, ocorrida em 14 de outubro do referido ano, a Congregação da EMOP chancelou a criação do “Museu da Escola de Minas”. Segundo os registros das atas, o plano era que o Museu da Escola de Minas passaria a abrigar toda a memória da EMOP, abarcando também o suposto Museu de Gorceix, que teve como vida útil apenas três dias por não ser considerado totalmente abrangente para divulgação da memória e da história da EMOP.

É notório em todas as publicações e registros, usados como fonte para este trabalho, que a questão das tradições e o “espírito de Gorceix” se fizeram presentes na vida de alguns alunos, ex-alunos e professores da EMOP. Manter a tradição de uma Escola de Minas oitocentista, que teve atuação significativa ao longo de muitos anos no campo da Engenharia, era o principal argumento de ex-alunos, como Domingos Fleury da Rocha [5], Leônidas Damázio [6] e o próprio diretor do museu, Cristiano Barbosa da Silva, para se cultuar uma memória e celebrar o aniversário de 100 anos da instituição nos anos 1970.

Os registros encontrados sobre os objetos sob guarda da Escola configuram-se em um arrolamento das peças levantadas por Cristiano Barbosa da Silva, 15 dias após a efetivação da criação do Museu. O conjunto de objetos levantados contava com documentos, registros formais, mobiliário e artigos de uso pessoal e profissional de Gorceix. Todos os artefatos estavam relacionados com a vida e a atuação de Claude Henri Gorceix na EMOP, seja administrativa ou acadêmica. Entretanto, tal arrolamento não se configura como um instrumento de catalogação ou indexação de acervos, mas como um processo incipiente de documentação museológica (FERREZ, 1994).

Na documentação levantada é possível encontrar alguns registros como um manuscrito de Augusto Barbosa da Silva, similar a um inventário, uma cópia datilografada e um recibo de doação de objetos redigidos de forma manual. Como instrumento de controle, essa pasta contendo folhas avulsas reunia informações sobre toda a coleção atribuída a Gorceix, desde documentação administrativa, provas de alunos, artigos de uso pessoal e objetos de trabalho de campo. Na criação de um instrumento como esse, Augusto Barbosa da Silva demonstrava um propósito de agrupamento de informações. Estavam presentes nesse instrumento as informações técnicas e numéricas sobre o acervo, bem como os registros de movimentação, como a doação do tinteiro, por exemplo. A data apresentada na capa de Outubro de 1970 nos leva a questionar a intencionalidade do processo, tendo em vista que o referido mês é marcado pelas festividades de aniversário de inauguração da EMOP.

A técnica empregada na metodologia de catalogação do acervo demonstra um caráter inicial dos conhecimentos e processos museais aplicados até então nas coleções apresentadas. Muitos dos objetos aparentemente se encontravam distribuídos nos laboratórios, salas de professores e almoxarifados da atual Universidade Federal de Ouro Preto. É possível identificar no acervo do Arquivo Permanente da Escola de Minas que algumas doações foram feitas de maneira não protocolar, por meio de um recibo redigido à mão, como é o caso de um tinteiro supostamente pertencente à Gorceix. Um exemplo é um bilhete escrito à mão e assinado por Cristiano Barbosa da Silva, no qual um tinteiro passa oficialmente a compor a coleção do Museu de Gorceix. É importante frisar que o bilhete não possui uma função legal e tampouco é reconhecido pela literatura da museologia atualmente como um instrumento de gestão, sendo necessária uma formalização por meio da construção de um termo de doação (FERREZ, 1994).

Em outra análise informacional é possível identificar na inscrição do recibo que Cristiano Barbosa da Silva recebeu “do Sr. Geraldo Pinto da Rocha, almoxarife da EMM/UFOP, um tinteiro duplo, com suporte metálico transferido da Portaria da Escola para o Museu da EMM”. Logo, nota-se também que a terminologia “Museu da EMM” indica que a instituição era denominada como Museu da Escola de Minas. Essa terminologia demonstra que o recorte curatorial do museu não se reduzia apenas à Gorceix e à memória de sua trajetória acadêmica no Brasil, mas à instituição em seu amplo aspecto.

A constituição de um Museu da Escola de Minas, que uniria o “Museu Gorceix” a uma série de iniciativas museológicas, pode ter levado em consideração a inclusão de espaços destinados à memória da EMOP. Estes espaços eram compostos pela Galeria dos Ex-alunos, Galeria dos Ex-diretores, Panteão Gorceix e Sala da Congregação no Edificio da Escola de Minas de Ouro Preto na Praça Tiradentes, principal ponto turístico da cidade.

Tanto o Museu da Escola de Minas como o Museu de Gorceix conviviam institucionalmente no mesmo edifício, porém estavam dispostos em locais diferentes. No caso do Museu da Escola de Minas, cada sala abrigava documentos, livros, fotografias de ex-alunos, fotografias de ex-diretores e mobiliários originais da fundação da EMOP. E no caso do Museu de Gorceix, o espaço abrigava documentos e objetos pessoais pertencentes à Gorceix. Nos anos finais da década de 1970, parte considerável desse acervo foi incorporado à coleção da EMOP por meio de doações da comunidade discente e docente muito ligada às tradições e à Escola e, assim, houve uma fusão que deu origem a uma única instituição, a qual herdou o nome Museu da Escola de Minas.

Por fim, cabe encerrar este trabalho elencando algumas questões relevantes para as discussões futuras sobre o patrimônio cultural universitário. Primeiro, é possível notar a presença de padrões de transferência de objetos para os museus criados em âmbito universitário. Em segundo lugar, a intencionalidade de criação de um espaço de memória está atrelada à afetividade e a relação de duas figuras chaves para a EMOP, que encabeçaram o trabalho que culminou em 1994 em um Museu universitário de ciência e tecnologia. E para encerrar este breve ensaio, pode-se notar a ausência de documentação institucional e técnica para o controle informacional dos objetos e institucionalização da coleção. Entretanto, podemos observar estes pontos sob a ótica da tentativa de salvaguardar o patrimônio museológico universitário e de difundir sua memória.


[1] Museólogo (UFOP), Mestre em Ciência da Informação (UFMG) e Doutor em História (UFMG). Professor Adjunto I da PUC-MG e Pesquisador Bolsista da Fundação João Pinheiro.
[2] Correspondência Recebida 05/11/1969. Série Traslado. Arquivo Permanente da EMOP
[3] Dossiê para o traslado dos restos mortais de Gorceix. Série Traslado. APEMOP
[4] Encontra-se fechado e indisponível para a consulta.
[5] Domingos Fleury da Rocha foi ex-aluno (turma de 1909) e diretor da EMOP entre 1927 a 1930 (5º diretor) e 1945 a 1956 (9º diretor).
[6] Professor e fundador do Herbário da EMOP (1900).


Arquivo do Museu de Ciência e Técnica da Escola de Minas da UFOP

  • ATA. 12ª Reunião Congreção. Data: 19 de março de 1887.
  • INVENTÁRIO. Núcleo de Memória da Escola de Minas. Data: 20/08/1996. Diretor Antônio Gomes de Araujo.
  • INVENTÁRIO. Núcleo de Memória do Museu de Ciência e Técnica da Escola de Minas da UFOP. Autor: Agostinho Barroso de Oliveira. Data: 29/03/1996.

Referências Bibliográficas

  • FERREZ, Helena D. Documentação museológica: teoria para uma boa prática. In: IPHAN. Estudos Museológicos. Rio de Janeiro: IPHAN, 1994. p.65-74 (Cadernos de Ensaios 2).
  • LIMA, Margarida Rosa de. Dom Pedro II e Gorceix: a fundação da Escola de Minas de Ouro Preto. Ouro Preto: Fundação Gorceix, 1977.
  • PINHEIRO Filho, Antonio, et al. A Escola de Minas de Ouro Preto 1876 — 1976 1° Centenário, v.1, Ouro Preto: Gráfica UFOP, 1976.
  • SILVA, Cristiano Barbosa da. A herança sagrada do espírito de Gorceix. Jornal do Brasil, 31 out. 1975, p. 35
  • SILVA, Cristiano Barbosa da. Pedimos licença a D. Pedro II para falar de Gorceix e da Escola de Minas. Estado de Minas, 6 de dezembro de 1975. 2ª seção, p1.

 

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