Mário Chagas [i]
I. Cultura, Patrimônio, Memória e Poder
Em 1984 [1] foi publicado o livro Produzindo o passado: estratégias de construção do patrimônio cultural, apresentando, em sua maior parte, os resultados de um seminário realizado, durante os meses de julho e agosto de 1983 e organizado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico de São Paulo (CONDEPHAAT). A primeira parte do livro, sob o tópico intitulado "Cultura, patrimônio e preservação", apresenta as transcrições das intervenções feitas pelos participantes do seminário. Entre esses participantes encontravam-se Willi Bolle, Eunice Ribeiro Durham, Antônio Augusto Arantes, Helena Saia e Waldisa Rússio.
Evoco a memória do livro (já esgotado nas livrarias) e do seminário por um motivo que considero relevante do ponto de vista museológico: as intervenções de Waldisa Rússio transformaram-se em texto seminal e leitura obrigatória para as novas gerações de profissionais de museus e de interessados no campo da museologia. Ali estão as sementes de um novo pensar e de um novo fazer museológicos; ali estão os gérmens de uma museologia dialógica, processual e comprometida com as transformações sociais. Assim pensando, compreendo que a minha melhor contribuição para essa mesa redonda implica uma retomada dos temas e problemas propostos por Rússio naquela ocasião e a partir daí buscar perceber como esses problemas colocam-se na atualidade.
Depois dos indispensáveis agradecimentos e de sustentar que a sua querença é apenas "mostrar alguns dos conceitos com os quais o museólogo trabalha no seu cotidiano" (1984, 59), Rússio indica que lhe "parece fundamental" num seminário interdisciplinar estabelecer o que se entende por museologia e "o que seria o museólogo". Avançando gradualmente ela afirma que "a museologia é uma disciplina científica e é uma ciência em construção." O seu objeto específico de estudo, diz ela, "é uma coisa chamada simplesmente de fato museológico" [2]. Em seguida buscando explicitar o conceito introduzido ela indica que "o fato museológico [3] é uma relação profunda entre o homem, sujeito que conhece, e o objeto, testemunho da realidade. Uma realidade da qual o homem também participa e sobre a qual ele tem o poder de agir, de exercer a sua ação modificadora."(1984, 60)
Travando batalha intelectual com o que denomina de "restos de uma velha museologia muito pouco científica (...) que faz questão de colocar a museologia como ciência dos museus", Rússio lança mão de uma argumentação irônica sustentada por M. Schreiner e A. Gregorová que diz que por esse caminho seríamos levados ao entendimento de que a medicina é a ciência dos hospitais e a pedagogia é a ciência das escolas.
O curioso, no entanto, é que depois de ter dado um imenso salto conceitual com surpreendentes e inovadoras implicações práticas, Rússio parece realizar um recuo tático: o "fato museológico", diz ela, "se faz num cenário institucionalizado, e esse cenário é o museu." Esse aparente recuo não impede que ela realize um novo avanço, já agora em outra direção: a institucionalização passa a implicar menos "um reconhecimento de quem cria, implanta ou instala um museu" e mais "um reconhecimento pela comunidade", origem e alvo do museu. Este pensamento desdobra-se na assertiva: "é tempo de fazer museu com a comunidade e não para a comunidade." (1984, 60)
O próximo passo de Rússio é discutir a musealização. Em seu entendimento a recolha de objetos e a musealização, "uma das formas de preservação", estão baseadas em critérios de testemunhalidade, de documentalidade e de fidelidade. Por essa ótica, os documentos são considerados testemunhos fidedignos do homem e do meio ambiente. É assim que autora abre espaço para operar com "o ambiente físico natural", com o "ambiente físico alterado pelo homem", com as "criações do seu espírito, todo o seu ideário, seu imaginário", as suas intervenções, atuações e percepções. (1984, 61) "A paisagem percebida pelo homem - adianta a autora - é para o museólogo também um dado cultural". Esse pensamento informa o seu conceito de cultura: "Então, resulta - diz ela - que, para o museólogo, cultura é essencialmente fazer e viver, ou seja, cultura [é o] resultado do trabalho do homem, seja ele um trabalho intelectual, seja ele um trabalho intelectual refletido materialmente na construção concreta." (1984, 61)
[i] Museólogo, Mestre em Memória Social e Documento (UNIRIO) e Doutorando em Ciências Sociais (UERJ).
Nota do Editor - esse artigo teve 29 acessos desde sua publicação original em 15/05/2005 até 17/05/2016. Está publicado na versão acima a partir de 04/07/2017.