...mas as coisas findas,muito mais que lindas, estas ficarão.
Carlos Drummond de Andrade
Elizabeth Salgado de Souza [i]
Os grupos de Terceira Idade, como ficam conhecidos os movimentos de idosos a partir das décadas de 80-90, desencadeiam uma busca pelos saberes e fazeres dos mais velhos no âmbito acadêmico e, consequentemente, nas diferentes áreas do conhecimento. Na perspectiva dos museus, os mais velhos passam a ser considerados sujeitos de projetos que investigam o passado das cidades, dos lugares de referência, informantes potenciais dos modos de ser, fazer, existir e agir de grupos e das comunidades onde vivem. [1]
Quando em 1996 o Museu da Inconfidência, em parceria com a Universidade Federal de Ouro Preto, realiza o curso “Memória e Preservação” e a exposição “Objetos Contam Histórias” [2], ações desenvolvidas junto ao Projeto Atividades para a 3ª Idade. O exercício proposto era trazer à tona a memória dos velhos para provocar um outro olhar sobre a preservação dos bens materiais e imateriais como suportes da história vivida, dos sentidos e dos significados atribuídos às experiências acumuladas, da construção de mundo produzida no interior das relações interpessoais e geracionais.
As atividades encaminhadas no curso, com 40 horas de duração, baseavam-se nos relatos orais e nos objetos de afeto que os participantes traziam para os encontros semanais cuja tônica eram os jogos e brincadeiras que estimulavam o raciocínio, provocavam emoções, cutucavam lembranças, numa troca entre saberes que ajudavam a reorganizar o pensamento, refazer conceitos e revelar o sujeito constituído na linguagem. Porque para muitos, aquele era o momento de descoberta do eu, de discursar sobre as coisas e de falar da sua visão de mundo.
Aqui relato três momentos do curso Memória e Preservação, realizado em anos diferentes e em três cidades distintas, promovido por instituições diferentes [3]. O curso tinha o objetivo de fazer lembrar e de homenagear aquelas pessoas que se dispuseram a trabalhar suas memórias e assim garantir as dinâmicas dos grupos de terceira idade e ainda interferir nos movimentos de suas famílias e de suas comunidades, contribuindo com outras possibilidades de preservar a História e salva(r)guardar monumentos, documentos, acervos e lugares. Porque o afeto que se encerra em cada gesto de lembrar e re-memorar traz à tona os modos de viver, morar, trabalhar e amar – verbos conjugados no singular e no plural – verbos de re-ligação coletiva - do núcleo familiar à comunidade na qual se inserem homens e mulheres, crianças e adultos, jovens e velhos.
O curso Memória e Preservação, em suas três edições, manteve a metodologia do Museu-Escola, qual seja, a de que brincando se aprende a contar e a escrever história [4], desenvolvida nos anos 70-80, a qual privilegia o saber vivido como o elo fundamental para a construção dos saberes escolares e acadêmicos. Dentro desta orientação, quatro atividades básicas foram desenvolvidas: andar pela cidade; visitar um sítio natural (parque, jardim ou praia); visitar um museu ou instituição cultural; selecionar um objeto de afeto e narrar o motivo de sua escolha.
Andar pela cidade, pelas ruas do bairro, identificar espaços e revisitar lugares permite a cada um estabelecer um diálogo entre o passado e o presente, trazendo para o grupo discussões sobre o remoto e o recente; entre o velho e o novo; entre o antigo e o moderno. E caminhar provoca descobertas a respeito do público e do privado, do individual e do coletivo; das vivências pessoais e da convivência coletiva.
No trabalho com idosos do Bairro São Paulo, em Belo Horizonte, conta o senhor Jonas, 74 anos [5]: “Saíamos, eu e meu pai, pela madrugada, a pé, pela rua do matadouro e pegávamos a [rua] Jacuí no Ypiranga e descíamos até a Floresta e chegávamos ao centro de BH. Na Praça Sete, meu pai cego e eu, como guia, esmolávamos até o entardecer. Por isto guardo esta bengala. Para lembrar que a vida melhorou muito.”
Em Ilhéus, uma senhora conta emocionada, olhando sua foto [6]: “O trem chegava pela tarde e nós íamos bem vestidas para a rua da linha [7] apreciar o movimento.” E o velho marinheiro acrescenta: ”Era o trem e o porto , ali na [avenida] 2 de julho havia a feira, e o sindicato e o Bataclan funcionavam com festas, fazendo a alegria dos que aqui chegavam...”
O senhor Nelson Maria escreve: “Ouro Preto, 1950-1960. Nessa época dois são os locais onde se concentra maior número de pessoas. Rua São José e Estação Ferroviária. Na rua São José, nos finais de semana, feriado e dia santo, o povo acorre para fazer o seu footing.”
As ruas são lugares de passagem e de aprendizagens, experiências rituais de descoberta do eu e do outro – dos vários nós em sentidos e significados não-ditos, mas revelados.
Ao visitarmos o Jardim Botânico em Ouro Preto, o parque Professor Guilerme Lage, em Belo Horizonte e a praia Jóia do Atlântico em Ilhéus, lembranças da infância brotaram em narrativas amorosas reveladoras das relações familiares, dos trabalhos domésticos e dos modos de aprendizagem sobre o eu e o mundo.
“A gente morava no arraial do Manja-léguas e os brinquedos que os pais nos traziam eram singelos, ma eram a nossa alegria. O guizo, com seu som, foi meu companheiro aos três anos. Enquanto mãezinha trabalhava na roça, plantando milho, feijão, cana, eu, dentro do caixote, balançava o quizo que era preso num barbante e assim, de longe, a minha mãe cuidava de mim, atenta ao som do guizo. Á medida que o som ficava distante ela vinha e me levava para mias perto dela. Assim, filha caçula, aprendi a amar a terra em que se planada. Cresci e continuei a trabalhar na roça como mãezinha.” Efigênia Barbosa mostra o pequeno guiso prateado, guardado como relíquia.
Marlene desenha e escreve sobre a fazenda de sua família, às margens do rio Cachoeira [8]: “Brincávamos ali na beira do rio onde hoje passa a estrada [rodovia Ilheus-Itabuna]. A casa, no alto, avarandada, nos permitia ver a mata e os pés de cacau carregadinhos do fruto dourado.”
Eurípedes, morador antigo do Pontal, bairro de pescadores de Ilhéus conta: “No tempo da fruta vinha o seu Zé do caju com os amarradinhos vermelho e amarelo, assim, pendurados no varão, e a gente saía pelos quintais, colhendo os frutos. Era tempo de fartura.”
“Tinha um pé de araçá, jabuticaba e carambola. A gente pegava no terreiro e vendia na porta do matadouro. Vinha gente de Belo Horizonte para comprar as frutas aqui. Para os lados do 1º de maio e do shopping [.......] tudo era pé de fruta, era mesmo!” Este é o relato de Dona Neuza.
A partir de uma foto de formatura no Grupo Escolar, Vicentina (Titina) de Paula dos Anjos faz um minucioso relato sobre o antigo Jardim Botânico, em Ouro Preto, onde sua família teve papel de destaque na administração: o avô Luis Perucci e seu sogro Pedro Inácio dos Anjos.
“O paraninfo de nossa turma foi i Sr. Plinio Ramos que era diretor do Instituto Barão de Camargos, um internato para meninos, cujo objetivo era torná-los cidadãos. O Instituto tinha chefes de turma, um adulto responsável pelas crianças, instruindo-as nos trabalhos agrícolas de plantação, colheita e preparo do chá-preto. Esta produção era vendida para as fábricas. O que era chamado “pó-de-chá” era dado para as famílias ouropretanas. Meu avô Luiz Perucci foi administrador da fábrica de chá. Havia um pomar muito bonito com frutas raras: cambuci, bacopari, sapucaia, nós moscada, e as frutas regionais – ameixa, jabuticaba, jambo, baba-de-moça etc. Meu avô só deixava a gente apanhar as frutas depois de maduras. Aí, na época certa elas eram distribuídas a todos. (...) A plantação de chá era no antigo Jardim Botâncio, hoje um lugar abandonado que deveria ser recuperado pela sua importância e valor cientifico. Toda vez que eu passo ali pelo Passa-dez eu penso: Que judiação! Uma coisa tão bonita e valiosa terminar como está!” [9]
Para comemorar o 18 de maio Museu e Memória deste ano, neste artigo suscitamos questionamentos, revelando sujeitos da história e puxando o fio da memória, porém,
“Mudando de assunto, mas pensando na nossa História, quem se lembra da ponte do Xavier?” (Titina).
[i] Mestre em História Política do Brasil, Universidade Estadual de Santa Cruz.
[1] Ver Memória & sociedade: lembrança de velhos, Ecléa Bosi. São Paulo, SP. T.A. Editor, 1979.
[2] Publicada a brochura Objetos Contam Histórias. Projeto Atividades na 3ª Idade. Coordenadora: Denyse Mary Hamer Drummond. Departamento de Educação Fisica /UFOP- Museu da Inconfidência. Editora Bete Salgado. Copyright@1996 by Editora da UFOP, Ouro Preto, MG.
[3] Universidade Federal de Ouro Preto, Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, Universidade Estadual de Santa Cruz - Ilhéus.
[4] Metodologia de Ensino de História elaborada e experienciada pela equipe do Setor Pedagógico do Museu da Inconfidência, sob orientação de Elizabeth Salgado de Souza, sistematizado em textos por Ana Maria Roriz e Roselene dos Anjos (1986), e objeto de estudo de Nara Rúbia de Carvalho Cunha em “Das pedras às estrelas” dissertação de mestrado , defendida na UNICAMP, 2011.
[5] Nome fictício, seguindo a orientação da época do curso.
[6] Seguindo acordo anteriormente firmado, não citaremos aqui a autoria do texto.
[7] A rua da linha, hoje, Rua Tiradentes, principal acesso ao continente no sentido Ilhéus Itabuna e Itacaré.
[8] Ver Revista Memorialidades n.1, 2004 EDUSC: Universidade Estadual de Santa Cruz, na qual Marlene Lawinski publicou um relato sobre este assunto.
[9] Foto de formatura. Vicentina Maria Paula dos Anjos. In: Objetos contam histórias. Projeto Atividades na 3ª Idade. Coordenadora: Denyse Mary hamer Drummond. Departamento de Educação Fisica /UFOP- Museu da Inconfidência. Editora Bete Salgado. Copyright@1996 by Editora da UFOP, Ouro Preto, MG p, 89-90.
Nota do Editor - esse artigo teve 09 acessos desde sua publicação original em 16/05/2011 até 17/05/2016. Está publicado na versão acima a partir de 18/12/2021.