Léa Therezinha Alves de Carvalho [1]
Dize-me (pois és tão sensível aos efeitos da arquitetura), ao passar por esta cidade observaste que, dentre os edifícios que a compõem, uns são mudos, outros falam, e outros enfim, mais raros, cantam? Não é a sua destinação, nem sua aparência geral que os animam a tal ponto, ou que os reduzem ao silêncio. Isso tem a ver com o talento do construtor, ou então com os favores das Musas (VALÉRY, 2006).
Os museus desempenham papel fundamental na proteção, conservação e comunicação das paisagens culturais, além de conscientizar sobre a sua importância como bens patrimoniais a serem preservados para os indivíduos e comunidades em escala local, regional e global (ICOM, 2014). Essas paisagens, conformadas por um amálgama de elementos diversos unindo homem e natureza, incorporam múltiplas dimensões, feições e aspectos - tangíveis e intangíveis, naturais e construídos.
Uma vez apreendido pelos sentidos e vivenciado em sua plenitude, esse amálgama conforma o espírito desses lugares, conferindo-lhes alma, incorporando registros das memórias, sentimentos e histórias dos que por ali passaram e viveram. Essas paisagens são “objetos” complexos em constante mutação, ao sabor do tempo e das ações humanas, e incorporam múltiplos aspectos simbólicos, numa sucessão de camadas representacionais que podem conferir significados aos diferentes planos de relação homem - ambiente.
A face desta paisagem na qual a presença e atuação do humano se fazem mais evidentes se materializa na arquitetura - no elemento edificado, como conjunto coeso de relações espaciais e simbólicas. Relações entre interior e exterior, sujeito e objeto estão aí presentes, na medida em que o edificado está intimamente associado ao sítio em que está implantado, apropriando-se dele e mesclando-se a ele, ou negando-o, em uma convivência com múltiplos aspectos.
1. Arquitetura e Paisagem - um Sistema
A arquitetura, materializada no espaço construído como marca da ação intencional da presença do homem e evidência de sua passagem por um lugar, serve e se estabelece como instrumento de comunicação, relacionando-se diretamente ao seu entorno. Não há arquitetura sem o lugar; ela está inexoravelmente imbricada no espaço geográfico.
Essa relação homem - arquitetura - lugar, que se materializa desde os primeiros simples abrigos construídos até os contemporâneos edifícios com alta tecnologia, permeia a existência humana, impactando, definindo e sendo definida pelos modos de viver e de interagir com a paisagem desenvolvidos pelos diferentes grupos culturais, no tempo e no espaço; e também pelas relações que cada individuo ou grupo cultural estabelece com o outro.
O Museu, como instância relacional, processo e instrumento semiótico, se insere naturalmente nesta teia de relações. O Museu Tradicional, ambientado em um (ou vários) espaço(s) construído(s), se relaciona, dialoga e se comunica em primeira instância com o seu entorno imediato e o seu visitante, sua primeira zona de influência. Em ambos os casos - arquitetura e museu, o primeiro espaço relacional e área de influência se encontram, portanto, na sua vizinhança, para a qual se voltam suas primeiras atenções e ações. Sua expressão se dá sob múltiplas formas e elementos influenciados pelo tempo e pelo espaço. Assim considerado, esse museu, enquanto relação e espaço, tem a responsabilidade se abrir para o seu sítio e convidar e instigar o visitante a desvendar os seus mistérios. Neste âmbito a arquitetura exerce papel fundamental.
Cameron nos fala do papel da arquitetura do museu e do seu sítio enquanto primeiro contato exterior - interior e da influência da dimensão do tempo e espaço:
Quando o visitante do museu se move do mundo familiar das ruas para o museu, uma primeira afirmação é feita pela implantação e pela própria arquitetura do museu. Não é o elegante pôster anunciando uma exposição especial que fala a ele, mas sim a soma total de tudo que ele vê [...]. À medida que ele se move através da entrada (e o fato que os visitantes dos museus estão se movendo em relação a ambientes estáticos é importante nesta discussão) o padrão muda e a mensagem inicial e introdutória é modificada (CAMERON, 1971) [Tradução nossa].
O espaço edificado é reflexo e elemento simbólico do seu tempo, representante do invisível e de significados (POMIAN, 1987). Sua configuração arquitetônica está impregnada por camadas de informações e sentidos, representante que é dos modos de construir, habitar, circular, se relacionar com o sítio, formando uma unidade coesa constituída por uma coleção de espaços representativos dos modos de vida de uma época. Esta instancia de significação se realiza não somente pelos aspectos materiais, mas, assim como a paisagem, pelo tempo - dimensão fundamental para a apreensão do objeto arquitetônico.
As miradas da arquitetura – continente e conteúdo
Se a paisagem é espaço expositivo e também é objeto, e se ela é parte indissociável do edifício, que por sua vez é igualmente objeto e espaço expositivo, deve ser mostrada e comunicada visando a sua apropriação pelo visitante, como nos lembra Maranda (2007, p. 72): “O objetivo das exposições e outros programas de museus é estimular o interesse da comunidade pelo ambiente natural e cultural além da sua compreensão” [Tradução e grifo nossos].
Esta é uma relação complexa em que os continentes – paisagem e arquitetura - não são estáticos, congelados no tempo. São elementos em permanente mutação, assumindo hora a hora, dia após dia, diferentes feições e aspectos pela mudança da luz e das estações, sempre ao sabor da passagem do tempo.
Em uma perspectiva de fora para dentro, externo interno, a relação do museu, enquanto espaço edificado, com a paisagem que o circunda é essencial para instigar o visitante e convidá-lo a entrar. A paisagem faz parte do edifício e o edifício faz parte da paisagem. Cada um desses elementos mira e se integra ao outro, numa relação direta e simbiótica. São indissociáveis.
Considerando essa perspectiva, não faz nenhum sentido a retirada de edifícios, ou parte deles, de seu contexto, para remontá-los dentro de museus, numa ação depredatória como a que ocorreu com regularidade no final do séc. XIX e início do XX. Esta prática concorre apenas para objetificar os edifícios e descontextualiza-los. Expostos como objetos, estes ficam destituídos dos aspectos intangíveis e até mesmo tangíveis, dificultando, e mesmo impedindo, a sua plena apropriação. Não há como expressar a aura e o “espírito do lugar” ficando a exposição restrita à mera disponibilização dos seus aspectos materiais, com foco no objeto singular, “maravilhoso”, que, porém, se revela inanimado.
Numa perspectiva de dentro para fora também a paisagem se faz presente, porém é bastante comum que seja renegada na medida em que “compete” com os tradicionais objetos expostos. A negação da paisagem, do espaço exterior e, por vezes, até mesmo dos elementos arquitetônicos do próprio museu, visa a estreita focagem nos objetos musealizados.
Figura 1 – Parte dos frisos retirados do Partenon expostos no Museu Britânico.
Londres– Inglaterra.
Figura 2 – Partenon em seu sítio e paisagem. Atenas – Grécia.
Figura 3 – Paisagem como objeto e acervo do museu. Museu da Acrópole. Atenas - Grécia.
Negando-se a arquitetura, e por consequência a paisagem intimamente a ela relacionada, as histórias, representações, significados, vestígios, permanecem em suspenso, mudos; sem se expor ficam impossibilitados de tocar a emoção do observador, possibilitar as trocas de sentidos e interações. Os edifícios assim são transfigurados em meras caixas para abrigar e expor coleções.
2. Expor a Paisagem - Expor a Arquitetura
Homem, arquitetura e paisagem estão intimamente relacionados em interações complexas e dinâmicas, relação que se configura como natural e própria do humano ao vivenciar os múltiplos ambientes. A edificação influencia a relação do homem com o sítio e vice-versa. São notórios e diversos os casos em que locais antes degradados se renovam graças à implantação de novas edificações ou à adaptação das já existentes, em especial museus.
Identificar a paisagem, preservá-la, implica em dar-se a conhecer, expor as suas nuances, cores, formas e tempos, educando o olhar de forma holística, atiçando os múltiplos sentidos do observador, a curiosidade e a vontade de saber, tornando possível a sua apreensão e impregnação por parte dos visitantes.
Como comenta Scheiner (2003, p. 96-97):
Definidas como espelhos da sociedade ou mesmo uma janela que o museu abre para o mundo, exposições constituem uma ponte, ou elo de ligação entre as coisas da natureza e a cultura do homem, tais como são representadas nos museus. É por meio delas que o Museu representa, analisa, compara, simula, constrói discursos específicos cujo principal objetivo é narrar, para a sociedade, as coisas do mundo e as coisas do homem. [Grifo nosso].
No momento em que o ICOM insta os profissionais de museus a pensar e debater a respeito do seu papel no que concerne as Paisagens Culturais, nas suas múltiplas dimensões, cabe à comunidade museológica acionar mecanismos necessários para a incorporação destas paisagens, incluindo o homem e o ambiente que o rodeia, o tangível e o intangível, no rol das suas preocupações e incorporando-as aos seus acervos e exposições.
[1] Doutoranda em Museologia e Patrimônio, PPGPMUS – UNIRIO/MAST. Profa Dra Teresa Scheiner (orientadora).
Referências
- CAMERON, Duncan. Problems in The Language of Museum Interpretation. In: The Museum in The Service of Man Today and Tomorrow. The Museum´s Educational and Cultural Role. ICOM Conference Papers, 1971. ICOM, 1972. P. 89-99.
- ICOM. La Carta di Siena. Museos y Paisages Culturales. 2014. Disponível em: <http://icom.museum/uploads/media/Carta_di_Siena_ES_final.pdf>. Acesso em jan. 2016.
- MARANDA, Lynn. Sur Le Musée. In: MAIRESSE, François; MAIRESSE, André. (Dir.) Vers Une Redéfinition du Musée. Anat-propos de Michel Van Praêt. Paris: L´Harmattan, 2007. P. 72.
- POMIAN, Krzysztof. Collectionneurs, Amateurs et Curieux. Paris, Venice.: XVIe – XVIIIe Siècle. França. Éditions Gallimard, 1987.
- SCHEINER, Teresa Cristina M. Museologia e Apresentação da Realidade. In: Actas Del XI Encuentro Regional del ICOFOM LAM. XI Encontro Regional do ICOFOM LAM, 2002. Cuenca, Equador. Rio de Janeiro: ICOFOM/Tacnet Cultural Ltda. 2003. P. 96–104. Disponível em: < http://icom.museum/fileadmin/user_upload/minisites/icofom/pdf/lam_2002.pdf >. Acesso em jan. 2016.
- VALÉRY, P. Eupalinos ou o Arquiteto. Tradução de Olga Reggiani. Edição bilíngue francês/português. Rio de Janeiro, RJ. Editora 34, 2006. 192p.