Maria Lucia de Niemeyer Matheus Loureiro [1]
Ana Beatriz Soares Cascardo [2]
O meu lugar é caminho de Ogum e Iansã, lá tem
samba até de manhã, uma ginga em cada andar...
(Arlindo Cruz)
Em 2012, a UNESCO reconheceu o Rio de Janeiro como paisagem cultural. O reconhecimento, porém não se estendeu a toda a cidade, mas a alguns de seus marcos mais conhecidos, como o Corcovado, o Pão de Açúcar, a Praia de Copacabana e a Enseada de Botafogo. Este breve texto propõe refletir sobre paisagens culturais a partir de uma outra perspectiva, para além da chancela da UNESCO, que exclui o resto da cidade, suas ruas, seus becos, suas periferias.
Na Zona Norte da cidade, espaços ricos em interações sociais entrecortadas por linhas de trem se configuram em um estar e ser carioca não contemplado pelo título da UNESCO de paisagem cultural, e de modo geral desconhecido por turistas e viajantes. É nessa extensa região que se situa o bairro de Madureira, onde a pluralidade de comportamentos e fluxos sociais resultou na ocupação de espaços inusitados da paisagem urbana como, por exemplo o Viaduto Negrão de Lima (conhecido localmente como “Dutão”), onde o conhecido e tradicional “Baile Charme de Madureira” tem dia e hora para ocorrer.
O termo “charme” foi cunhado durante um baile no Clube Mackenzie, localizado no Méier, também Zona Norte carioca. Marco Aurélio Ferreira, o DJ Corello, observou os passinhos e elogiou a dança realizada com charme pelo público. Corello, dj há 35 anos, explica que o passinho, característico do baile charme, se iniciava a partir da mudança da música romântica - mais lenta - para a mais dançante, e que para avisar ao público dessa transição, dizia Chegou a hora do charminho/Mexa seu corpo devagarinho, batizando assim o gênero musical. Os frequentadores passaram a ser denominados charmeiros, portanto, quem consome o gênero, vai ao charme, dançar charme e ouvir charme. (FREIRE, 2014, p. 5)
Há pouco mais de 20 anos, sempre aos sábados, a parte inferior de um viaduto – cuja função é facilitar o tráfego de veículos – serve de palco para um baile que atrai os ditos “charmeiros”, que com sua forma própria de agir e se vestir, reúnem-se para dançar seus “passinhos” (movimentos coreografados), paquerar e socializar. Há vida no viaduto!
Com o tempo, o ineditismo e as relações articuladas neste espaço transformaram o evento num legado para o local e isto foi reconhecido pelo município do Rio de Janeiro, que o registrou como Patrimônio Imaterial da Cidade.
O bairro em si é bastante conhecido por outras paisagens culturais, como as quadras das escolas de samba Império Serrano e Portela que abrem as portas para oferecer suas tradicionais feijoadas com rodas de samba, atraindo moradores de outras regiões da cidade, além do Morro da Serrinha, local onde estas escolas surgiram e em que o Jongo está em atividade até a os dias atuais em sua modalidade espetáculo, apresentado em várias partes da cidade, extrapolando seu espaço físico. Abriga, ainda, o conhecido “Mercadão de Madureira”, que vende de tudo um pouco (ervas medicinais, condimentos, artigos de beleza, objetos para festas e uma super concentração de lojas que vendem artigos religiosos de Umbanda e Candomblé). Muito movimentado, atrai compradores de vários outros bairros da cidade, incluindo os das zonas sul e oeste.
Na qualidade de artefato, as paisagens integram a cultura material - “aquele segmento do mundo físico do homem que é intencionalmente moldado por ele de acordo com um plano culturalmente ditado” (DEETZ, 1996, p. 35), mas apenas aos homens e mulheres é dado o poder de lhes atribuir valores e significados. Meneses (2002, p. 36-37) ressalta o caráter essencialmente polissêmico da palavra paisagem, o que dificulta a percepção de sua historicidade: “considerando homem e paisagem como indissociáveis, podemos afirmar que a paisagem tem história, que ela pode ser objeto de conhecimento histórico e que essa história pode ser narrada”. O geógrafo Milton Santos (2006) adverte para o risco de usar a palavra como sinônimo de espaço, que define como um “conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações, não consideradas isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá”, ressaltando que, ao longo do tempo, os “objetos naturais” são progressivamente substituídos por “objetos fabricados” (p. 39). O termo paisagem refere-se ao “conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza”, enquanto espaço corresponderia a “essas formas mais a vida que as anima” Enquanto a paisagem é “transtemporal”, o espaço é “sempre um presente, uma construção horizontal, uma situação única”, um conjunto formado por formas criadas em diferentes tempos, mas que coexistem em um mesmo momento (p. 66-67). Embora concreta, a paisagem é sempre uma abstração, algo eminentemente material, que apenas o homem pode atribuir vida e sentidos (p. 70).
Tal como o complexo bairro de Madureira, várias outras localidades do Rio de Janeiro se constituem como paisagem cultural latente. Não possuem mar, lagoa ou vista para o Cristo Redentor, mas têm a vida integrada ao espaço urbano, que se altera ao sabor das novas necessidades e é ressignificada pelas confluências sociais.
[1] Bacharel em Museologia (MHN, 1976), Mestre (1998) e Doutora (2003) em Ciência da Informação (UFRJ/IBICT).
Atua no Museu de Astronomia e Ciências Afins, onde realiza pesquisas sobre processos de musealização e é docente do Programa de Pós-Graduação em Preservação de Acervos de Ciência & Tecnologia (PPACT-MAST).
[2] Bacharel em Museologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO (2007), Mestre em Artes pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ (2010) e Especialista em Conservação de Preservação em Acervos de Ciência e Tecnologia pelo Museu de Astronomia e Ciências Afins - MAST (2011). Foi docente substituta na Universidade Federal de Ouro Preto -UFOP (2013-2014) e atualmente é bolsista PCI no Museu de Astronomia e Ciências Afins - MAST (2014 ...).
Referências bibliográficas
- DEETZ, James. In small things forgotten. An Archaeology of Early American Life. New York: Anchor Books, 1996.
- FREIRE, Libny Silva. Baile Charme: O lugar construindo Identidade. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE COMUNICAÇÃO E CONSUMO. São Paulo, 2014. Disponível em: http://www.espm.br/download/Anais_Comunicon_2014/gts/gt_sete/GT07_FREIRE.pdf Acesso em: 26 abril 2016
- MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A Paisagem como Fato Cultural. In: YAZIGI, Eduardo (org.). Turismo e Paisagem. São Paulo: Contexto, 2002. p. 29-64.
- SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4. ed. São Paulo: EDUSP, 2006.