Rui Mourão [1]
O Museu da Inconfidência é exemplo de instituição que só chegou a alcançar sua verdadeira identidade quando se inseriu plenamente na paisagem cultural de Ouro Preto. No momento da sua implantação, a escassez de objetos relacionados com o movimento político permitiu apenas que se organizasse uma sala na antiga Casa de Câmara e Cadeia para complemento do Panteão dos Inconfidentes, ali inaugurado dois anos antes, à chegada dos restos mortais dos conspiradores falecidos no degredo da África. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, recebendo a incumbência de montar uma exposição que prosseguisse ocupando o espaço restante, quatorze salões na sua maioria monumentais, viu-se obrigado a optar por uma solução que na eventualidade lhe pareceu a mais lógica. Resolveu apresentar, de maneira sumária e superficial, aspectos da evolução histórica do Estado de Minas Gerais. Seria forçar demais admitir que houvesse dado origem a um museu sobre a conspiração de l789.
Essa ampliação de uma base social que não existia no momento em que aconteceu a conspiração contribuiu foi para tornar mais difícil a explicação da sua origem. Não houve sequer o cuidado de relacioná-la com a atividade mineradora. Como essa questão ficou sem ser considerada, quer dizer, não se introduziu na mostra nada que se referisse à dinâmica da econômica do período, não se chegou sequer a explicar as razões que levaram – a condenação à forca, a degredo e morte –, tantas personalidades de relevo cujos restos mortais haviam sido repatriados por Getúlio Vargas. Logicamente, na mesma indeterminação permaneceriam os objetos dispostos na sala denominada Relíquias da Inconfidência.
Para se entender em profundidade a questão, é fundamental que se considere o que viemos apontando. No século XVIII, a paisagem cultural de Minas Gerais que hoje contemplamos, simplesmente não existia. O estado, na sua amplitude, não passava de tosco projeto a dar seus primeiros passos. Era a região da inexistência, da selvageria e do ignorado, vilas distanciadas pela falta de estrada, pela solidão de grupos de pessoas que só podiam se intercomunicar com a ajuda de andarilhos e mascates. O que vinha a ser em nossos dias, somente num único ponto vinha sendo construído. Na capital formada em consequência da exploração das minas. Ouro Preto é que, enquanto iam sendo forjadas as características próprias de uma população que o Brasil inteiro reconhece como peculiar, dava início ao culto da liberdade, hoje exibido como seu bem maior.
A evolução alcançada e o consequente posicionamento em face dos desafios que a colônia precisava enfrentar foram se impondo de maneira sociologicamente explicável. O centro de gravidade do país, desde fins do século XVI, achava-se estabelecido na região nordestina, em torno da exploração do pau-brasil e depois da cana, principalmente em Pernambuco. Grandes latifúndios ali floresceram, na fase da exportação do açúcar que abastecia o mundo. A massa de trabalhadores de todo tipo se encontrava quase na sua totalidade engajada naquele eixo de produção econômica. Nem de longe por lá passava a idéia de pretender uma situação de independência para a colônia. Tudo corria favoravelmente e a lei portuguesa é que assegurava a propriedade da terra. No momento em que se impôs de maneira prevalecente a produção do ouro, fazendo deslocar para Minas Gerais a força econômica de maior expressividade, a ponto de produzir um êxodo generalizado da população nacional, que acabou comprometendo mesmo a hegemonia nordestina, nova realidade se instalaria.
A mineração trouxe consigo a necessidade do desenvolvimento urbano. Ouro Preto, segundo consenso dos historiadores, foi o primeiro núcleo dessa natureza efetivamente constituído no Brasil. Até ali as vilas eram meros centros de abastecimento e passagem. Mesmo a capital, Salvador, não deixava de ter sua fragilidade. Ela não passava de um aglomerado criado pelos fazendeiros, que nela apareciam onde de mês em mês ou de dois em dois meses para visitarem as mulheres, exiladas a cuidar da educação dos filhos. No centro de Minas Gerais, de outra natureza passou a ser o ajuntamento formado. Ele reunia, em condições estáveis, trabalhadores independentes, artífices, profissionais liberais, funcionários burocráticos, militares, religiosos, pequenos proprietários, pequenos agricultores. Essa gente possuía pensamento próprio e vivia num momento especial da humanidade, em que idéias surgidas na Inglaterra e difundidas pelos enciclopedistas franceses circulavam por todo lado e haviam inclusive produzido a independência dos Estados da América do Norte. Um espírito de insurreição e rebeldia se espalhava até entre as pessoas mais responsáveis. Burlando a férrea vigilância metropolitana, que proibia a entrada na colônia de qualquer tipo de material impresso, grandes bibliotecas clandestinas em Vila Rica se formaram.
Ao alcançar a metade do século XVIII, a produção das minas começou a diminuir e a quota de cem toneladas de ouro anuais, que cabia à metrópole, não pôde mais ser mantida. O governo português não acreditava nas alegações de crise da produção aurífera e julgava que estava sendo roubado. Começou a impor, nas áreas de comércio e trabalho, fiscalização cada vez mais policialesca. Chegou a planejar a decretação de uma derrama, expediente que estabeleceria a cobrança compulsória do valor de cem toneladas de ouro. Caso não houvesse metal suficiente, a quantia exigida seria completada com desapropriações judiciais que atingiriam a população como um todo, comprometendo até quem não tivesse qualquer vínculo com a atividade das minas. Mais alarmante se tornou essa notícia quando circulou, a cobrança se estenderia mesmo para o passado, envolveria a reparação da dívida acumulada nos vários anos em que os pagamentos haviam começado a ser feitos a menor. Figurantes da elite local mais bem informada, reagindo à situação, entraram a conspirar pela libertação da colônia.
Essa é que foi a Inconfidência Mineira e essa era a verdade histórica que o Museu estava na obrigação de apresentar. Algo que aconteceu e só poderia de fato ter acontecido em Ouro Preto. Mais tarde, o estado na sua totalidade muito justamente incorporaria a tentativa de rebelião como acontecimento fundamental de sua história. Isso se deu, porém, a partir do momento em que a paisagem cultural, gerada e consolidada na região das minas, acabou se estendendo para cobrir o todo. O fato incontestável é que, para o entendimento da conspiração, temos que nos ater especificamente ao estudo de Vila Rica.
A Casa de Câmara e Cadeia passou a abrigar o verdadeiro Museu da Inconfidência quando reestruturou sua exposição de longa duração, passando a apresentar conjuração política de 1789 como decorrência da maneira pela qual se deu a formação e a evolução de Ouro Preto. No andar térreo, é mostrada a infraestrutura da evolução econômica, social e política da cidade, que começa com a ocupação do território, terminando com o império, no país independente. No piso superior, somos colocados diante da superestrutura. Nela se pode tomar conhecimento da afirmação da religiosidade cristã e dos equipamentos internos de seus templos. Do mobiliário de época da população. Da manifestação artística em geral. Dos usos e costumes no ambiente doméstico.
Essa transformação ocorrida na casa teve como consequência natural o desenvolvimento de um sistema educativo próprio, sob a inspiração da doutrina de Paulo Freire, voltado para o entendimento do quadro cultural da cidade e a busca da formação do cidadão nele inserido. O Museu Escola desenvolvido por Elizabeth Salgado aprimorou um modelo de educação patrimonial que se difundiu pela cidade, pelo estado e pelo país, quando o Programa Nacional de Museus contou com Stela Fonseca, grande educadora com doutoramento realizado na Inglaterra, que viera de uma experiência no Mobral e planejou uma política de cursos que procuramos implantar nacionalmente. Quando muitos museus adotavam no Brasil o sistema europeu de ensino patrimonial – que consistia apenas em chamar atenção para a excepcionalidade do patrimônio produzido pelas elites cultas dos vários países –, nós no Inconfidência e depois nacionalmente buscávamos era instrumentar a criança com o conhecimento das tradições do seu povo, para que ela pudesse crescer com a compreensão da sua origem e os valores que a definiam.
[1] Bacharel em Direito pela UFMG e Mestre em Letras Brasileiras pela UNB.
Escritor e Professor.
Diretor do Museu da Inconfidência, atuando na Direção do MI desde 1974.