Patrícia Roque Martins [1]
A ideia de que os museus deixaram de ser, unicamente, espaços neutros com a função de abrigar, conservar e expor o património histórico e artístico tem gerado um controverso debate no sector museológico. Para alguns, os museus têm tido dificuldades em adaptarem-se aos assuntos da atualidade e assumirem determinadas posições políticas. Para outros, os museus devem desempenhar um papel ativo e critico na construção de significados (Lang 2006). Tal implica, que as suas práticas abandonem um modelo de comunicação dominante possibilitando a construção de diversos significados nos seus visitantes. Neste sentido devem apresentar diversos pontos de vistas não estando comprometidos com um modelo único de dizer a “verdade”.
Este ano, o tema escolhido para celebrar o Dia Internacional do Museus, “Museus e Histórias Controversas: dizer o indizível em museus” parece desafiar modos particulares de refletir sobre as coleções. Sublinhando, assim, o papel dos museus enquanto espaços facilitadores de diálogos e de discussão sobre as diferentes realidades (Crooke 2007; Scott 2002). Nesse aspeto, parece importante considerar quais as narrativas culturais e artísticas que têm sido desenvolvidas em torno da deficiência. O modo como este assunto tem sido abordado, ou tornado invisível, tem produzido efeitos sobre a realidade das pessoas com deficiência, nomeadamente, na sua identidade social. Que mensagens tem sido transmitidas? Que significados têm sido legitimados? Que “verdades” têm sido ditas? Que histórias estão por contar?
A relação dos museus com a produção do conhecimento, no modo como as exposições e representações da deficiência são transmitidas ao público são questões essenciais. O discurso que o museu incorpora através de práticas expositivas ou de representação cria e gera efeitos sociais. Historicamente, os museus têm contribuído para o desenvolvimento de impressões negativas sobre a deficiência, excluído e expondo imagens redutoras da deficiência. Ao longo dos tempos, as pessoas com deficiência foram representadas para evocar ideias negativas para expressar sentimentos de medo, de piedade, de castigo ou de carácter sobrenatural. Sendo, assim, utilizadas como objetos culturais, não participando ativamente no processo criativo da cultura da deficiência e na sua comunicação. Esta situação tem corroborado na construção de relações sociais entre pessoas com e sem deficiência baseadas em valores culturais preconceituosos e discriminatórios. São esses valores que têm influenciado os modos de pensar e de agir da sociedade em torno da deficiência (Sandell 2007).
Dar visibilidade a estas histórias da deficiência são vias possíveis para facilitar a compreensão sobre o “como” e o “porquê” as pessoas com deficiência são excluídas da sociedade, partindo-se dos contextos que deram origem às representações da deficiência. Através dos objetos das coleções ou de exposições que interpretem o tema, os museus podem criar espaços de reflexão para problematizar e gerar perspetivas inovadoras sobre a deficiência. Tornando visíveis pensamentos que foram representados, mas que nem sempre se sabe que existem, contrariando a perda de memória da deficiência, nos seus contextos sociais, culturais e artísticos. Esta é uma oportunidade para os museus levarem à transformação social através desestabilização das representações dominantes da deficiência, gerando, novas imagens públicas sobre as mesmas.
Contar história não ditas sobre a deficiência é, pois, um desafio que se coloca aos museus para alcançarem o seu compromisso social em torno da inclusão. O tema proposto pelo ICOM, para celebrar o Dia Internacional do Museus, reforça a capacidade dos museus para contrariarem a discriminação. Atuando como espaço privilegiado para a harmonia social, facilitando diálogos e discussões sobre a diversidade.
[1] Patrícia Roque Martins é Doutorada em Ciências da Arte pela Universidade de Lisboa, Portugal, com a tese “Museus (in)Capacitantes, deficiência, acessibilidades e inclusão em museus de arte” (2015) (Bolsa FCT SFRH/BD/65296/2009) e Mestre em Museologia e Museografia pela mesma Universidade, com a tese “A Inclusão pela Arte: museus e públicos com deficiência visual” (2008). Actualmente é investigadora do CITCEM - Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória» da Faculdade de Letras do Porto onde desenvolve o projeto de pós-doutoramento “A Representação da Deficiência na Coleções da DGPC: discurso, identidades e sentido de pertença” (Bolsa FCT SFRH/BPD/110497/2015), juntamente com a Direção Geral do Património Cultural. Autora de diversos artigos, no âmbito da Deficiência e dos Museus, em revistas científicas em Portugal, Argentina, Reino Unido e França. Tem colaborado com vários museus na produção e/ou coordenação de materiais educativos para pessoas com deficiência visual, e na formação de profissionais de museus sobre as acessibilidades.
Referências
- Crooke, Elizabeth. 2007. Museums and Community. Ideas, Issues and Challenges. Oxon: Routledge.
- Lang, C. 2006. The Responsive Museum, Working with Audiences in the Twenty-First Century. Hampshire: Ashgte.
- Sandell, Richard. 2007. Museums, Prejudice and the Reframing of Difference. Oxon: Routledge.
- Scott, C. 2002. “Measuring Social Value". In Museums, Society, Inequality, ed. Richard Sandell, 41-55. London: Routledge.