Juliana Monteiro [i]
O objetivo do presente texto não é trazer um estudo de caso ou apresentar conceitos relacionados ao tema proposto pelo Conselho Internacional de Museus (ICOM) para o dia internacional de museus de 2017, a saber, “Museus e Histórias Controversas: dizer o indizível em museus”. Ele pretende, antes, refletir, de forma muito breve, sobre algumas das palavras chave associadas ao assunto, como “reconciliação” e “indizível”, e suas implicações éticas e práticas em nosso dia a dia profissional.
Com absoluta certeza, precisamos admitir que é um tema fascinante e uma chamada direta às instituições de memória para um debate sobre as diferentes narrativas que moldam nossa contemporaneidade – que anda cada vez mais complexa.
E podemos nos perguntar, talvez um pouco perplexos, por que, enquanto profissionais de museus, demoramos tanto para ter um dia internacional de museus dedicado a esse assunto. E o que é que vamos conseguir, concretamente, com esse movimento. O debate está posto sobre a mesa, e cabe a nós, por meio de diferentes ações, entender o que virá disso e o que fazer a partir daí.
Na explicação do ICOM a respeito do tema [1], é posto que os museus se tornem lugares de reconciliação, como mediadores no processo de visibilização de memórias pouco aceitas ou que estiveram em segundo plano até então. Tal proposta pode ser vista de inúmeras formas e executada de outras tantas.
Ao nos determos na ideia da reconciliação, temos diante de nós a perspectiva que estabelece os museus como fóruns da cultura de paz e de profundo respeito aos direitos humanos. Ou, ainda, como espaços que podem colaborar no estabelecimento de diálogos positivos entre grupos sociais distantes e desiguais. Nesse sentido, museus podem mesmo ser esses lugares extraordinários e de empatia, onde uma pessoa consegue se maravilhar e encontrar “o outro lado da história”, e enxergar ali uma identificação e beleza nunca antes imaginadas.
Porém, temos que nos lembrar também que para atingirem o status de reconciliadores e se tornarem praticantes da diversidade cultural (e não apenas da propagação de seu discurso), os museus precisam assumir a não-neutralidade do seu lugar de interlocução. E que para uma abertura ao diálogo sobre histórias nunca contadas ou mal contadas, cabe a eles – os museus – compreender sua própria parcela de participação na claustrofóbica, muitas vezes ofensiva, chocante e distorcida construção do que se chama de história oficial.
Rever os silêncios e gritos de um museu pode ser um processo de reconciliação de uma instituição com ela mesma e com os outros. E isso não implica em dizer que uma instituição deve aceitar problemas do passado de forma simplista. Pelo contrário, significa que ela deve estar pronta para enfrentar as consequências de atos cometidos em outros tempos e revê-los, de forma emancipatória e libertária. Deve também entender de que forma lida ou se assume diante dos problemas da sociedade da qual faz parte.
Um passo importante dentro de tais processos é a revisão do modo como as coleções são tratadas e difundidas. Temos inúmeros exemplos que nos mostram a preocupação atual das instituições em construir perspectivas novas a respeito de seu próprio discurso. Talvez um dos casos mais emblemáticos seja o do holandês Rijksmuseum, que em 2015 embarcou em uma polêmica envolvendo a mudança dos títulos e descrições de mais de 200.000 obras para que não contivessem mais referências racistas ou preconceituosas. Muitos viram isso como uma atitude louvável e coerente com a política do museu de atuar de acordo com valores contemporâneos, porém, outros enxergaram tal ação como censura em prol do politicamente correto extremo.
Para além do lado que cada um de nós gostaria de assumir nessa situação, cabe aqui ressaltar como o “inocente” trabalho de preencher fichas ou bancos de dados, revestido muitas vezes de uma tecnicidade quase asséptica, pode levantar os mais acalorados debates a respeito de ausências ou presenças históricas dentro dos museus. Deste modo, trabalhar na identificação e classificação de um patrimônio cultural é um ato político. E isso ocorre porque documentamos com o nosso repertório. E, com ele, com todos os nossos preconceitos, nossos julgamentos, nosso desconhecimento a respeito dos “outros”, que, no fundo, podem não ser tão distantes assim de “nós”.
Tendo essa consciência do “nosso lugar de fala”, vale retomar aqui a pergunta sobre quais silêncios e quais gritos serão revelados desse encontro, tenso e profundo, entre instituições, seus acervos e profissionais, e aqueles a quem chamamos de representantes das histórias “indizíveis”. Quais pré-conceitos serão desconstruídos? Quais os lugares que tais memórias, em muitos casos doloridas e sofridas, conquistarão dentro de estruturas que até pouco tempo atrás não as (re)conheciam? O que isso vai contribuir para a construção de patrimônios culturais mais inclusivos? E, por fim, enquanto profissionais da memória, como aprender com tais agentes e ajudá-los a contar suas histórias (se assim eles quiserem) de tal modo a não incorrer em interpretações ou posturas antiéticas ou paternalistas?
Por fim, fica a compreensão de que não há respostas prontas ou bonitas. Não há formulas fáceis nesse mundo difícil. Fica o desejo de que, de todas as experiências que serão vividas dentro do tema proposto pelo ICOM, permaneça a consciência de que o “indizível” existe há muito tempo e grita aos nossos ouvidos, que não devem mais permanecer indiferentes. E fica o desejo também de que aprendamos a ouvir aqueles que desejam um mundo mais justo e igualitário, com menos silêncios da memória oficial e mais vozes das histórias de todos nós.
[1] Disponível em: http://network.icom.museum/international-museum-day/imd-2017/the-theme/. Consultado em 07/05/2017.
[i] Museóloga pela Universidade Federal da Bahia e mestre em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo. Membro da Comissão Editorial da Coleção “Gestão e Documentação de Acervos: textos de referência”, responsável por traduzir e localizar a norma SPECTRUM 4.0 para o contexto brasileiro. Membro também do Comitê para Desenvolvimento de Coleções (COMCOL-ICOM) e coordenadora de projetos GLAM do Grupo Wiki Educação Brasil. Atua na área de gestão de coleções há 10 anos, com forte ênfase em questões de organização e acesso à informação. Foi museóloga do Museu da Energia de São Paulo (2007-2008); assistente de coordenação da Unidade de Preservação Museológica da Secretaria de Estado da Cultura (2008-2015), onde coordenou o Comitê de Política de Acervo dos Museus e gestora do Núcleo de Preservação do Museu da Imigração de São Paulo (2015-2016). Atua também como professora do curso técnico de Museologia da ETEC Parque da Juventude desde 2010. Presta consultoria para projetos culturais variados como museóloga freelancer desde agosto de 2016.