Dia Internacional de Museus 2017

Cesar Eugenio Martins [1]

“(...)‘coleção’ é qualquer conjunto de objetos naturais ou artificiais, mantidos temporária ou definitivamente fora do circuito das atividades econômicas, sujeitos a uma proteção especial num local fechado preparado pare esse fim, e expostos ao olhar público. Esta definição tem caráter descritivo. E supõe as condições que um conjunto de objetos deve satisfazer para que seja considerada uma ‘coleção’” (POMIAN, p. 51, 1984).

O ato de colecionar tesouros, objetos e conhecimentos remonta tempos longínquos, quando a ideia de coleção de determinado item já representava riqueza, vitória, benefícios ou superioridade. A própria história, passada de geração a geração dependia em grande medida destes objetos que remontavam o passado, “legitimando fatos”. Juntamente com a tradição oral, o patrimônio material acumulado de forma intencional (racionalizada) tornou-se fundamental para a formação das identidades culturais de uma determinada coletividade.

Destes tempos antigos, marcados pelos espólios advindo das guerras e dos objetos sagrados e reverenciados acumulados, veio a concepção que marca a história ocidental do colecionismo. Do mundo antigo, passando pela Idade Média, Renascimento, Era da Luzes, Era Moderna e Contemporânea, fluiu em certa medida o desejo dos indivíduos de posse, de fetiche, de consagração, de imortalidade, de ter e manter (BLOM, 2003).

O ato de colecionar pode ser explicado como uma necessidade humana de vencer a morte (esquecimento), como uma compulsão obsessiva, ou como modo de alcançar prestígio, acumular riquezas, enfim, o colecionismo pode ser explicado de diversas maneiras e por diferentes ações. Sua prática ganha notoriedade e visibilidade quando o acervo acumulado torna-se lócus de contemplação, estudo, entretenimento e conhecimento, passando a ser visitado cada vez mais e apreciado, agregando funções que iam para além da acumulação. Neste contexto, os colecionadores renascentistas ganham destaque, montando os chamados “Gabinetes de Curiosidades” (coleções particulares) como um ambiente de reunião de peças, porém com uma característica hermética (aberta apenas aos convidados). Posteriormente, com o advento das revoluções liberais e a queda do absolutismo, observa-se a formação dos primeiros museus públicos na Europa (POSSAS, p.151-162, 2009), e a ampliação das possibilidades dos museus e das coleções.

Neste ponto, os museus ganharam notoriedade e foram reconhecidamente utilizados como lugares de saberes e memória (NORA, 1993). Amplamente sabido, a missão de um museu é promover a cultura, a preservação e a salvaguarda dos objetos, monumentos e documentos, bem como proporcionar sua disponibilização, no intuito de informar e comunicar com o público (CHAGAS, 1990). De modo geral os museus acabam recebendo a função de confluir elementos necessários para o resgate histórico e para disseminação das informações do passado e do conhecimento. A memória é a propriedade de conservar certas informações, propriedade que se refere a um conjunto de funções psíquicas que permite ao indivíduo atualizar impressões ou informações passadas, ou reinterpretadas como passadas. Enquanto a história representa fatos distantes, a memória age sobre o que foi vivido. Assim, memória e história são inseparáveis, pois se a história é uma construção que resgata o passado do ponto de vista social, é também um processo que encontra paralelos em cada indivíduo por meio da memória (LE GOFF, 1994).

Assim sendo, uma coleção é capaz de remontar histórias, sensibilizar e educar. Sobre este particular, chamamos atenção para o poder simbólico de uma peça dentro do contexto museológico. No Museu da FEB-BH (Museu da Força Expedicionária Brasileira Regional Belo Horizonte), onde trabalhei por dois anos, o acervo reunido despertava reações diversas no público, pois a temática ali apresentava retratava dor, tristeza, alegria, o que fazia o visitante experimentar emoções e sensações diferentes a cada passo no museu. O Museu da FEB tem como principal missão a preservação e divulgação dos feitos da tropa brasileira em terras italianas nas batalhas da Segunda Guerra Mundial, considerando não apenas os grandes vultos e “heróis” ou os mais importantes confrontos, mas também, destacando o soldado comum, seus pequenos ou grandes feitos, suas glórias ou derrotas, sua realidade e vivências durante a guerra. 

Por falar de uma temática dramática, a exposição do Museu da FEB apresenta ao público artefatos militares bélicos como armas, uniformes, instrumentos de localização, de alimentação entre documentos de época, e espólio de guerra. O museu, portanto, guarda, além das peças tradicionalmente utilizadas pelos soldados brasileiros (pracinhas), peças nazistas e fascistas, de modo a não ignorar aquele governo e toda a sua representação. Sabe-se que a apologia ao nazismo e a coleção de peças referentes a esse é crime previsto em lei. Contudo, o Museu da FEB, responsável pela divulgação dos feitos contra a derrubada dos exércitos nazistas na Europa (Itália como lugar de atuação da FEB) tem em uma sala separada a divulgação deste material, exatamente para que ali ela não seja ignorada uma parte fundamental de nossa história recente.

As coleções da mesma maneira que podem imprimir sensações e conexões simpáticas ao público, podem perfeitamente causar incômodos e desconfortos, dependendo do tipo de acervo e de como este é trabalhado. Os objetos utilizados pelos pracinhas têm um grande apelo visual e desperta a curiosidade do público, como as diversas armas de infantaria e artilharia, fardamentos, utensílios do dia a dia do combatente, entre tantos outros. Esses elementos que compõe o museu carregam consigo os vestígios da campanha vitoriosa dos aliados contra os nazistas.

Contudo, sempre me chamou muita atenção o contraponto entre essas peças com os espólios de guerra trazidos dos campos de batalha. Na última sala do museu, onde se encontram essas peças, um quadro de um soldado brasileiro mulato em primeiro plano, tendo ao fundo uma companhia nazista capturada está em destaque. Esta escolha não é por acaso, ela exprime grande simbolismo (BOURDIEU, 1989) ao visitante, principalmente nas visitas guiadas, quando os guias lhe atribuem protagonismo e uma relação direta com os propósitos nazistas de discriminação e preconceito. Um “simples” quadro de um pracinha brasileiro, tendo ao fundo outros soldados rendidos torna-se elemento poderoso no universo simbólico envolvido no museu e em sua temática. Questões atuais são comentadas e debatidas como preconceito, racismo, fascismo, intolerância, e valorização do brasileiro, como um povo capaz, que percorreu terras estrangeiras distantes, enfrentando condições climáticas adversas e combates com um dos exércitos mais bem preparados do mundo naquele tempo.

Percebe-se que as coleções, se bem trabalhadas, podem agregar valores importantes para a sociedade, principalmente para os jovens em idade escolar (tão frequente no Museu da FEB). A prática do colecionismo por particulares e pelos museus insere novos valores e novos significados, ajudando a encorpar o conjunto de itens e dando consistência às coleções, ampliando assim seu poder de resgate da memória e da história, aspectos imprescindíveis para a construção da identidade cultural de um povo. Os feitos da FEB e dos soldados combatentes da Segunda Guerra Mundial estarão representados não só pelos itens e pela história simplesmente, mas estarão vivos naqueles que os resgatarem pelo raciocínio, pela compreensão e identificação dos objetos e vestígios, criando uma relação de proximidade com o tema.

A Segunda Guerra Mundial foi sem dúvidas o maior e o último grande conflito armado de caráter mundial, redefiniu a configuração geográfica e os parâmetros da política mundial, e consequentemente seu término culminou na divisão do mundo em duas correntes políticas (Capitalismo e Comunismo). Além do mais, marcou de maneira extraordinária o uso de novas armas de destruição, deixando um “rastro” de sangue e violência em diversos lugares do mundo, o que imprimiu nos combatentes e em todos que vivenciaram a guerra terríveis lembranças, que apesar de negativas e tristes, devem ser lembradas e repassadas às próximas gerações para que estes aprendam com os erros do passado e perpetuem ideais de paz e tolerância entre os povos (MASSON, 2010).

A participação do Brasil na Segunda Guerra, embora faça parte da história brasileira, não é tão conhecida e difundida nos materiais didáticos. Portanto, sentimos que é de grande interesse, institucional, cultural, social e histórico a elaboração dos espaços de memória e de patrimônio histórico sobre a participação brasileira na Segunda Guerra Mundial. Sendo assim, o Museu da FEB torna-se elemento fundamental para a preservação da memória de um grupo, uma coletividade, o somatório de experiências individuais em prol do cumprimento do dever frente ao inimigo fascista e nazista, alavancando temas tão caros a formação cidadã, democrática, livre de preconceitos, capaz de conduzir a sociedade a um nível melhor.

[1] Museólogo e graduado em História, Mestre em História Social e Doutorando em Gestão e Organização da Conhecimento - ECI/UFMG

Referências

  • ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (orgs.). Memória e patrimônio - ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009.
  • BLOM, Philipp. Ter e manter: uma história íntima de colecionadores e coleções. Rio de Janeiro: Record, 2003.
  • BONALUME, R. A Nossa Segunda Guerra - Os Brasileiros Em Combate 1942 - 1945. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1995.
  • BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
  • CHAGAS, Mário. Novos rumos da Museologia. Lisboa: ULHT, 1994.
  • LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1994.
  • MASSON, Philippe. A Segunda Guerra Mundial. São Paulo, Editora Contexto, 2010.
  • NORA, Pierre. Entre a Memória e a História. A Problemática dos Lugares. Tradução de Yara Aun Khoury. Projeto História, nº 10, Programa de Estudos Pós-Graduados em História da PUC/SP, São Paulo - SP: Editora EDUC, 1993.
  • POMIAN, Krzysztof. Colecção. Enciclopédia Einaudi. Porto: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1984. p. 51-86.
  • POSSAS, Helga Cristina Gonçalves. “Classificar e ordenar: os gabinetes de curiosidades e a história natural”. In: AZEVEDO, Flávia Lemos Mota de; CATAO, Leandro Pena ; PIRES, Joao Ricardo Ferreira (Orgs). Cidadania, memória e patrimônio: as dimensões do museu no cenário atual. 1˚ed. Belo Horizonte: Crisálida, 2009.

 

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