Dia Internacional de Museus 2017

Átila Tolentino [1]

Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram?
(Walter Benjamin, em Sobre o conceito da história)

O museu, ao mesmo tempo que se configura como um lugar de preservação de memórias coletivas e, portanto, de conformação de identidades, institucionaliza também esquecimentos presentes nas lacunas, nos não-ditos, nos vazios de suas narrativas. É o “esquecimento aniquilador” (Berger, 2014) presente, paradoxalmente, na ausência. Ausência supostamente insignificante. Supostamente porque no museu tudo é signo. Até mesmo as lacunas, os não-ditos, os vazios, os relegados à insignificância carregam significados. E é preciso lê-los e compreender o jogo de forças (políticas, econômicas e simbólicas) que perpassa a batalha entre a memória e o esquecimento nas narrativas museológicas. Utilizando a metáfora simmeliana, os museus podem ser pontes ou portas, servindo como um instrumento de inclusão e emancipação do indivíduo, ou atuar como paredes, representando barreiras que oprimem e excluem [2].

Toda narrativa museológica representa a construção de uma verdade, resultado de um jogo social que envolve dilemas, disputas, conflitos, consensos e dissensos, que, ao fim e ao cabo, comporta um discurso ideologicamente marcado. Como resultado desse jogo social, a conformação de memórias, por meio da narrativa museológica, se constitui de signos significantes – ou ela mesma se constitui como um signo significante – a serviço de um determinado grupo ou de causas específicas.

A proposta do tema para o Dia Internacional de Museus de 2017, ou seja, “Museus e histórias controversas: dizer o indizível nos museus” nos permite pensar sobre a face dual dos museus e descortinar os processos ideológicos subjacentes às suas narrativas, que se arvoram como reflexo de memórias coletivas. Trazer essa breve discussão articulando-a ao processo de construção de discursos e narrativas museológicas propicia verificar que representações coletivas podem estar a serviço tanto de processos de exclusão como de inclusão social ou tanto de manutenção de um sistema de dominação como de processos de emancipação. Como lócus privilegiados de poder, os museus estiveram associados a espaços elitizados e opressores. É sabido que a prática museológica na América Latina e, especificamente, no Brasil esteve, durante muito tempo, atrelada à formação de identidades nacionais e à manutenção de tradições e legitimação de poderes instaurados, seguindo um fazer museológico colonizador e colonizado, inspirado numa herança europeia, como bem aponta Huges de Varrine (apud Chagas; Gouveia, 2014).

Mas justamente por ser um lócus de poder, o museu é, por extensão, um instrumento de empoderamento. Por isso, determinados grupos sociais, historicamente estigmatizados ou submetidos a processos de dominação, também passaram a reivindicar que suas memórias e identidades fossem expressas nos museus. O que antes era indizível nesses espaços, agora se aflora. Novos atores e novas vozes, antes emudecidos e esquecidos, puderam emergir no campo dos museus e se utilizar desse instrumento como um importante mecanismo de poder e como arma política.

Onde há memória, há poder. Onde há poder, há resistência. Ninguém cria museu sem desejo de poder. E a resistência é também uma forma de poder. Cada vez mais as identidades de resistências, na acepção de Castells (2008), antes silenciadas e subjugadas, têm se apoderado dos museus e se empoderado por meio deles. Novos atores têm se utilizado desse instrumento como uma arma política na reafirmação e ressignificação de suas identidades e como ícone de suas lutas e reivindicações, por meio de um processo de politização de suas memórias. Reflexo disso é surgimento de diversificados museus de base comunitária e processos de musealização de memórias insurgentes no país, sejam em favelas, áreas indígenas, quilombos, zonas rurais e outros lugares estigmatizados ou de alto risco social, cujas experiências se identificam entre si pela participação efetiva dos atores e detentores das referências culturais nos processos de patrimonialização.

Em sua fala sobre os antecedentes e descendentes da museologia social, durante o V Encontro Internacional de Ecomuseus e Museus Comunitários, ocorrido de 14 a 16 de outubro de 2015, em Juiz de Fora/MG, o museólogo Mário Chagas aponta que o conceito de memória é uma encruzilhada, pois ela tudo atravessa. Ela pode servir tanto para aprisionar como para libertar. Pode ser déspota, mas também emancipadora. Pode servir para nos deter em um determinado tempo, mas também para nos lançar para o futuro. A memória, assim, articula várias linhas de força: individual – coletivo; poder – resistência; lembrança – esquecimento; subjugar – emancipar.

Quando sequestram ou capturam nossa memória, nos aprisionam. E precisamos dela para nos libertar e para projetarmos o nosso futuro. Não é à toa que no célebre romance Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, quando em determinado momento a população da fictícia Macondo é acometida de uma estranha doença em que todos perdem sua memória, os habitantes vão até a cartomante Pilar Ternera não para prever o seu futuro, mas para traçar o seu passado. Como nas cartas de Pilar Ternera, os museus, por meio da conformação de memórias, são lugares de projeções de passados e construções de futuros. São também um espaço-tempo presente, pela intermediação dos sujeitos que se apoderam dos museus e se empoderam por meio deles. Ao entrar no ambiente dos museus, é preciso, a partir da leitura de suas narrativas expositivas, alinhavar e perceber quem são os sujeitos ali empoderados, como são empoderados e, por ventura, se há sujeitos silenciados e subjugados.

Walter Benjamin (1994) afirma que é preciso escovar a história a contrapelo, pois o passado como o conhecemos não é de fato como ele foi. Ele é uma construção. É a narração dos vencedores, de classes hegemônicas e dominantes em seu cortejo triunfal. É preciso, portanto, ouvir os ecos das vozes que emudeceram. Os ecos das vozes do limbo do esquecimento, mas que resistem em ser ouvidas. Com os museus acontece o mesmo. É preciso escová-los a contrapelo. É preciso também fazer ressurgir as vozes por eles ou neles recorrentemente emudecidas. Extrair deles o indizível. E é sempre preciso fazer com que outras vozes, resistentes, sejam evocadas.

[1] Átila Tolentino é Graduado em Letras e especialista em Gestão de Políticas Públicas de Cultura pela Universidade de Brasília. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba.
É da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, com atuação no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Coordena a Casa do Patrimônio da Paraíba, projeto de educação patrimonial vinculado à Superintendência do Iphan na Paraíba.

[2] No ensaio extremamente metafórico e, ousaria dizer, poético A ponte e a porta, de G. Simmel (2011), os processos de associação e dissociação entre os indivíduos são representados pela ponte, porta, parede e janela. De forma bastante resumida, a ponte simboliza a união ou junção de termos dissociados, pois se encontra numa relação estreita com as margens por ela ligadas. A porta ilustra que separação e reaproximação são dois aspectos do mesmo ato. Ao criar a junção entre o espaço do homem e tudo o que se encontra fora dele, é abolida a separação entre o interior e o exterior. Enquanto a porta fala, a parede, por sua vez, é muda, inarticulada. Representa uma barreira. E, por fim, a porta se distingue da janela, pois esta apenas liga o mundo interior ao exterior, numa via de mão única, ou seja, serve basicamente para olhar para fora e não para dentro, numa direção unilateral.

Referências

  • BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultural. Obras Escolhidas. Volume 1. 7 ed. São Paulo, 1994.
  • BERGER, Peter L. Perspectivas sociológicas: uma visão humanista. Petrópolis: Vozes, 2014.
  • CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. A era da informação: economia, sociedade e cultura. Volume 2. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
  • CHAGAS, Mario; GOUVEIA, Inês. Museologia social: reflexões e práticas (à guisa de apresentação). In Museologia Social. Cadernos do Ceom. Ano 27, nº 41. Chapecó: Unochapecó, 2014, pp. 9-22.
  • MÁRQUEZ, Gabriel García. Cien años de soledad. 32ª ed. Buenos Aires: Debolsillo, 2014.
  • SIMMEL, G. A ponte e a porta. In MALDONADO, Simone Carneiro. Georg Simmel: sentidos, segredos (organização, traduções e comentários). 1 ed. Curitiba: Honoris Causa, 2011.

 

 

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