Andréa Fernandes Considera [1]
Quando falamos em museus nos vem à mente uma coleção de objetos que fazem sentido entre si, abordando um tema específico e apresentando uma narrativa expográfica representativa de uma determinada perspectiva social. Não existe museu neutro em suas políticas de aquisição ou comunicação.
Mas quantas vezes os objetos dos museus proporcionam leituras múltiplas, incontroláveis pelo mais experiente profissional? Foi com esta situação que me deparei ao iniciar um inventário temático sobre a Força Expedicionária Brasileira (FEB). O projeto previa o mapeamento dos acervos hoje dispersos em diversos pequenos museus, coleções particulares e coleções ainda guardadas por familiares dos mais de vinte e cinco mil brasileiros que combateram na Itália entre 1944 e 1945 contra os regimes totalitários durante a Segunda Guerra Mundial.
Num primeiro olhar, os objetos pareciam se agrupar em categorias bem específicas e repetitivas: medalhas, uniformes, souvenires italianos, fotografias, cartas, cantil e marmita, capacetes, todos bem característicos de uso militar. Mas aos poucos, estes objetos homogêneos iam adquirindo suas particularidades e revelando atrás de cada uniforme padrão, a vida de um jovem que, em sua maioria, mal havia cumprido o serviço militar obrigatório e retornado para suas atividades civis. Muitos destes jovens civis se viram do dia para a noite convocados para combater um inimigo em terras distantes, a lutar por ideais muito mais amplos do que suas ambições pessoais e, quando perceberam, já estavam embarcando, uniformizados, rumo ao desconhecido.
Foram meses intensos de interação com situações e objetos, próprios ou alheios, que marcaram para sempre a vida destes jovens. Ao retornarem, traziam na memória as cenas daquela barbárie indizível (BENJAMIN: 1994) e na bagagem um conjunto de objetos não só de sobrevivência, como também de memória.
Como explica Jacques Le Goff, “estes materiais da memória podem apresentar-se sob duas formas principais: os monumentos, herança do passado, e os documentos, escolha do historiador. (...) O monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação” (LE GOFF: 2003, p.526). Neste sentido, os objetos trazidos pelos pracinhas (como eram chamados os jovens soldados convocados para tal empreitada) eram monumentos destinados a prolongar uma memória para além das narrativas, muitas vezes incapazes de expressar a realidade em sua plenitude.
Como sabemos, diferente do que ocorre normalmente com os veteranos de guerra de outros países, o retorno comemorado dos nossos pracinhas, o desfile acompanhado pela multidão, não concorreu para um futuro pelo menos confortável para a maioria destes jovens: a neurose de guerra, a dificuldade de reinserção no mercado do trabalho, o abandono por parte das próprias forças armadas quando da desmobilização da FEB e em muitos casos o abandono por parte das próprias famílias, resultaram num longo silêncio de memória.
Por questões de sobrevivência, muitos ex-combatentes se organizaram em associações que tinham, dentre outros objetivos, o de rememorar os principais acontecimentos. Rememorar para não esquecer; não esquecer para não serem esquecidos. Para estes eventos foram também criados “monumentos” no conceito usado por Le Goff (2003), materializados em placas, medalhas comemorativas, distintivos, braçadeiras, chaveiros, enfim diversos objetos na tentativa de materializar a memória.
Segundo Pierre Nora, há uma distinção clara entre memória e a história: “a memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos (...). A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais” (NORA: 1993, p.9). Aos poucos, o que assistimos foi uma lenta extinção desta geração pelo próprio caminhar da humanidade. Muitas memórias foram registradas em infinitas horas de gravação de entrevistas com estes sobreviventes, mas muito se perdeu também.
Durante o longo período dos governos militares, a visibilidade deste grupo de homens limitou-se à participação nos desfiles do sete de setembro. Em que pesem as iniciativas das associações constituídas e os primeiros movimentos de preservação da memória destes homens, na forma de museus, ao longo dos últimos setenta anos pouco pôde ser feito.
Os objetos trazidos da guerra e os produzidos posteriormente foram ao longo dos anos interagindo com esta realidade, muitas vezes sendo simplesmente jogados no lixo por indiferença ou mesmo por tentativa de se libertar das memórias; outras vezes negligenciados e destruídos nas inúmeras mudanças de endereços; por vezes destruídos propositalmente como forma de agressão ao próprio ex-combatente. Não menos vezes nos deparamos com objetos sendo vendidos para colecionadores pelo próprio pracinha como forma de conseguir recursos para pagar dívidas e sobreviver.
Independente do destino, mais cedo ou mais tarde, estes objetos acabam encontrando o caminho dos museus e vão revelando o que não foi dito. A Estrela de Davi desenhada dentro do capacete do judeu brasileiro, o nome da amada (italiana ou brasileira) gravado no cantil, a munição da metralhadora “lurdinha”, a correspondência que nunca chegou, o papelão dobrado com a anotação “aqui ficava o meu espelho”, ou a bonequinha de porcelana guardada até hoje com todo carinho (e aqui poderíamos enumerar muitos outros objetos para além das medalhas e uniformes), se somam com igual cuidado às placas comemorativas das convenções anuais onde os ex-combatentes, novamente civis, se reuniam para lutar por seus direitos claramente prometidos (e não cumpridos) pelos discursos proferidos pelo então presidente Getúlio Vargas.
Objetos estes a princípio incompreensíveis aos olhos da história, quando não se tem mais a memória (NORA: 1993). Mas quantos sentimentos e significados, indizíveis em palavras, podemos imaginar ao pensar o que representava para um jovem uma singela bonequinha de porcelana trazida da guerra e guardada por todos estes anos? Ou uma munição da metralhadora alemã responsável pela morte de tantos brasileiros? Ou ainda o não objeto do espelho que não existe mais? Que força de memória tiveram estes “monumentos” (LE GOFF: 2003) para serem guardados por tantos anos?
Igualmente, e não menos importantes, são os objetos comemorativos produzidos no pós-guerra. Porque despender recursos para elaborá-los? Que histórias de luta e resistência pela manutenção da memória estes objetos são capazes de nos contar?
Não existem etiquetas, textos explicativos ou visita orientada capazes de explicar na sua plenitude, ao visitante do museu, que fragmentos de memórias estes objetos representam. Por mais que nos esforcemos, não seria possível expressar em palavras os horrores de uma guerra sem vivencia-la.
Mas estes objetos estão à nossa frente, desafiando-nos a desvendá-los. Então, o melhor a fazer é deixar que cada um deles se mostre ao visitante, instigue a curiosidade, diga o indizível. Perpetuar a memória da FEB é não condenar ao esquecimento a barbárie da guerra (BENJAMIN: 1994); e disponibilizar em silêncio estes (in)compreensíveis objetos, é dar voz às muitas histórias ainda por desvendar.
[1] Museóloga (UNESA, 1990), doutora em História (UnB, 2015) e professora do Curso de Museologia da Faculdade de Ciência da Informação da Universidade de Brasília (UnB).
Referências
- BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
- LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.
- NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. In: Revista Projeto História. Nº 10. São Paulo: PUC-SP, 1993. p.7-28.