Dia Internacional de Museus 2017

Ana Virginia Pinheiro [1]

Amor é sempre amor, por mais que viva;
Será maior, menor, mas sempre amor.
Não muda a sua essência primitiva,
Possa, embora, mudar a forma ou a cor.

Nas reações da química afetiva
Pode haver mais calor, menos calor;
Mas de nada se acresce nem se priva,
A incorpórea molécula do amor.

[...] Bruto e sensual ou místico e sublime,
Role na lama, avilte-se no crime,
No ódio e na morte - amor é sempre amor.

Immutabilis amor, Bastos Tigre.

Os versos do Bibliotecário e patrono da Biblioteconomia brasileira Manuel Bastos Tigre (1882-1957) datam da primeira metade do século XX e expressam uma verdade que ainda se costuma negar: não importa a forma, amor é sempre amor.

'Dialogues des courtisanes' (Paris, 1936)

Figura 1: Dialogues des courtisanes (Paris, 1936) inaugurou, no século II, a literatura pornográfica, propriamente dita.
Seu autor, Luciano, de Samósata (125-181) é considerado um dos precursores da prosa moderna
e o primeiro contista da história da literatura (acervo: FBN/Divisão de Obras Raras).

No entanto, as representações bibliográficas sobre o amor homoafetivo sobrevivem nas coleções de livros raros como memórias indizíveis, inscritas de viés no curso da História, subtraídas do trânsito regular da produção científica, como obras proibidas por valores morais ou de acesso restringido por força de lei, como textos que aviltam a quem quer que deva preservá-los, difundi-los.

Como é possível existir alguma forma de amor que avilta?

Em pleno século XXI, não há memória sobre outra forma de amor cuja “incorpórea molécula” não é neutra, porque se lhe não foi permitido compartilhar o registro de sua própria existência.

Essa outra forma de amor, o amor homoafetivo, é designada entre diferentes abordagens, como “pecado contra a natureza” que, segundo o padre Manuel Bernardes (1644-1710), escritor prolífero e contemplativo, “dissipa as forças, embota o engenho, cega o juízo, debilita a vista, afemina o ânimo, e encurta a vida”; ou, ainda, como “pecado nefando”, ou “amor que não ousa dizer seu nome”, conforme o último verso do poema “Two loves” de lorde Alfred Bruce Douglas (MUCCI, 2011, p. 76, 78-79), popularizado por Oscar Wilde (1854-1900) numa sociedade com valores divididos entre a hipocrisia e a moral – tais abordagens não relevam o caráter, os talentos, a condição humana daquele que, dessa forma, ama.

Menino do Gouveia (Rio de Janeiro, 1914 ou 1915)

Figura 2: O Menino do Gouveia, cujo autor assina sob o pseudônimo “Capadócio Maluco”,
é considerado o primeiro conto homoerótico brasileiro (Rio de Janeiro, 1914 ou 1915) e é, provavelmente,
o primeiro a abordar explicitamente a pedofilia – este e outros folhetos, publicados em séries ditas pornográficas,
eram adquiridos em bancas de jornais ou através dos correios (acervo: FBN/Divisão de Obras Raras).

É importante esclarecer que aquilo que repugna ou avilta gerações, sob a perspectiva moralizante de quem, há muito, elege o que é sublime, pode não causar qualquer efeito sobre gerações seguintes – e este ponto de vista fez sobreviver registros sobre homoafetividade em coleções de livros raros. Tal sobrevivência decorre de uma espécie de apagamento de memória, que deixou esses registros inalcançáveis.

Não há memória sobre o amor que, ainda, avilta.

Os registros de memória são consagrados em bibliotecas de livros raros através processos contínuos de minuciosa catalogação e de difusão bibliográfica literária e material, e que têm como produto a atração de usuários potenciais, aptos a promover o efeito multiplicador dos conteúdos e formatos daqueles registros.

Mas, esses registros padecem de descatalogação, isto é, de indicação sumária, demasiado incompleta ou de completa omissão de dados, condenando seus conteúdos ao silêncio bibliográfico. Em princípio, um registro de memória sobre o qual nada se sabe não existe.

poema “Marinicolas”, de Obras poéticas, de Gregório de Matos (Rio de Janeiro, 1882)

Figura 3: poema “Marinicolas”, da edição censurada no prelo de Obras poéticas, de Gregório de Matos (Rio de Janeiro, 1882) –
as omissões foram resgatadas por notas manuscritas por Alfredo do Valle Cabral (1851-1894),
bibliotecário e bibliógrafo brasileiro (acervo: FBN/Divisão de Obras Raras).

Não existir tem se configurado como uma forma de preservação, porque o que não existe também não pode ser destruído, embora esta não seja uma garantia de longevidade – livro é matéria orgânica, tem tempo de vida útil e, mesmo que resista aos danos causados pelo tempo, pelo bicho e pelo homem, também morre.

Esse “método” de preservar atribuiu surpreendente longevidade a registros de memória categorizados, um dia, como aviltantes, e que vêm sendo descobertos em acervos bibliográficos à medida que o pesquisador dedicado busca e desvela seus conteúdos.

A busca por itens reconhecidos como literatura homoerótica e, invariavelmente referidos como pornográficos (Figura 1 e Figura 2) e censurados (Figura 3), considera aqueles em que o tema é apresentado sob disfarce ou “diluído” em obras que escapariam ao olhar censor (Figura 4), como livros didáticos, de arte (Figura 5), de medicina, ou de qualquer outro tema que não denuncie a intenção do autor, impressor ou ilustrador de referir-se ao amor homoafetivo.

Nesse contexto, foi desenvolvido o “Inferno” em bibliotecas de todo o mundo, como na Biblioteca Nacional brasileira, composto por coleções de obras a que foi atribuído, em determinado tempo, caráter “censurável”, ignóbil, substancialmente constrangedor, ou que foram, efetivamente, censuradas – tudo isto, à luz da História do Livro e das Bibliotecas.

 “O Novo Correio de Modas: jornal do mundo elegante consagrado às famílias brasileiras” (Rio de Janeiro, 1852-1854)

Figura 4: Em “O Novo Correio de Modas: jornal do mundo elegante consagrado às famílias brasileiras” (Rio de Janeiro, 1852-1854),
códigos de comportamento feminino são representados em personagens masculinos, com evidentes referências homoeróticas:
traços e posturas delicados, roupas justas ressaltando as silhuetas, sobrancelhas depiladas, sinais de maquiagem, gravatas em cores claras e suaves,
caminhadas dois-a-dois, de braços dados, olhares insinuantes (acervo: FBN/Divisão de Obras Raras).

Na Biblioteca Nacional brasileira, os tesouros bibliográficos infernais foram “pulverizados”, dispersos nas coleções, em lugares de guarda inusitados ou cerrados em cofres de acesso restrito, de modo que fosse inviável recuperá-los, pelo bem ou pelo mal – o mapa topográfico dessa distribuição sequer foi delineado porque, desde sempre, bibliotecários de livros raros, guardiões de bibliotecas de memória, têm preservado silenciosamente aquilo que, de tempos em tempos, não se ousa, não se deve ou não se quer dizer que existe, na expectativa de pesquisas que se processem sem amarras e com necessária isenção.

Atualmente, buscam-se esses tesouros, cabendo ao bibliotecário, profissional de cunho liberal e humanista, empenhar-se na organização de acervos em prol da liberdade de investigação científica e da dignidade inerente a todo ser humano.

A consciência desses preceitos e a evolução dos sentimentos sociais de igualdade, justiça e paz têm promovido a revelação de tesouros secretos, que passam a compor o conhecimento organizado. Tal consciência, que favorece a pesquisa bibliográfica e a recuperação de itens, não é intuitiva; é baseada em dever de ofício alicerçado na ética profissional e orientada por referendos de alcance internacional como o último dos dez princípios da “Declaración de la IFLA sobre las bibliotecas y la libertad intelectual” (1999, tradução nossa): “Os bibliotecários e outros profissionais que trabalham nas bibliotecas assumirão suas responsabilidades, tanto com seus superiores como com seus usuários. Em caso de conflito entre essas responsabilidades, prevalecerá o dever com o usuário”, envolvendo seu direito à liberdade intelectual, o respeito à confidencialidade de sua pesquisa e a necessária isenção do bibliotecário.

 'Methode pour apprendre le dessein', de Charles-Antoine Jombert (Paris, 1755)

Figura 5: os nus artísticos a plena página do Methode pour apprendre le dessein, de Charles-Antoine Jombert (Paris, 1755),
são notadamente masculinos. Os modelos, os mesmos em todas as imagens, foram retratados em atitudes dúbias, ora viris ora feminis,
com evidente acento de intimidade quando partilham o mesmo quadro (acervo: FBN/Divisão de Obras Raras).

O bibliotecário deve, então, adaptar-se continuamente a relações humanas transformadas, que escapam ao modelo de antes e que, agora, são definidas por valores que inovam, renovam, confundem, firmam múltiplas dimensões onde aquelas relações se estabelecem.

O pesquisador sai, assim, da condição de vítima do processo, que omite, esconde, censura ou faz desaparecer o objeto de seu interesse de pesquisa, e passa a fazer uso do direito de acesso, apreensão e geração de conhecimento – o conhecimento sobre todas as muitas formas de amor que já se mostram, despudoradamente expostas, disponíveis no acervo da Fundação Biblioteca Nacional brasileira.

[1] Ana Virginia Pinheiro - Bibliotecária,Chefe da Divisão de Obras Raras da Fundação Biblioteca Nacional (Brasil) e Professora Adjunta da Escola de Biblioteconomia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Referências

  • ASSOCIATION OF COLLEGE AND RESEARCH LIBRARIES (USA). ACRL Code of Ethics for Special Collections Librarians. Chicago, 2003. Disponível em: <http://rbms.info/standards/code_of_ethics/>. Acesso em: 12 maio 2017.
  • BASTOS Tigre: sonetos [Immutabilis amor]. In: ANTONIO Miranda: poesias dos Brasil. Brasília, DF, jan. 2016. Disponível em: <http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/pernambuco/bastos_tigre.html>. Acesso em: 5 maio 2017.
  • BERNARDES, Manuel. Pão partido em pequeninos... In: ______. Varios tratados. Lisboa: Na Officina de Antonio Rodrigues Galhardo: Miguel Manescal da Costa, 1762. t. 2.
  • CUNHA, Miriam Vieira da. As profissões e as suas transformações na sociedade. In: CUNHA, Miriam Vieira da; SOUZA, Francisco das Chagas de (Org.). Comunicação, gestão e profissão: abordagens para o estudo da ciência da informação. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. p. 141-150.
  • FEDERAÇÃO INTERNACIONAL DE ASSOCIAÇÕES DE BIBLIOTECÁRIOS E INSTITUIÇÕES. Declaración de la IFLA sobre las bibliotecas y la libertad intelectual. Paris: IFLA, 1999. Disponível em: <http://www.ifla.org/ES/node/7164>. Acesso em: 12 maio 2017.
  • GREEN, James N. Além do Carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Tradução Cristina Fino, Cássio Arantes Leite. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
  • MUCCI, Latuf Isaias. Oscar Wilde ou a identidade poética encarcerada. Fólio: revista de letras, Vitória da Conquista, v. 3, n. 1, p. 73-92, jan./jun. 2011. p. 78-79: Two loves / Alfred “Bosie” Douglas. Disponível em: <file:///D:/Downloads/531-2187-1-PB.pdf>. Acesso em: 12 maio 2017.
  • SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
  • SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século dezenove. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
  • TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso. Rio de Janeiro: Record, 2002.


Rio de Janeiro, maio de 2018.

 

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