Alejandra Saladino [i]
Nesse suntuoso recinto,
No coração da modernidade, no meio dessa cidade,
Me perco nessa exaltação de homens,
Parece que não temos alma nem vida,
Acho que não existo,
Não vejo meu povo,
Não vejo minhas origens,
Afro, Indígena, Europeia
Me vejo no meio de uma ilusão.
Gustavo Roxo, Lágrima Museal
Uma vez mais o Conselho Internacional de Museus seleciona para promover o debate no mundo dos museus um tema incontornável e imprescindível pois que relacionado às demandas da sociedade contemporânea. Uma vez mais aceito o convite generoso da Revista Museu para refletir sobre a temática da vez. Entretanto, neste ano de 2017 o prazer de por em algumas linhas, muitas delas mal traçadas, porém livres dos constrangimentos normativos impostos pelo campo acadêmico, equipara-se em intensidade ao desafio de enfrentar o indizível.
Histórias controversas, ou dizer o indizível nos museus (de forma explícita e declarada), foi o tema escolhido como mote para a realização das atividades museais deste ano. É um tema afeito e descortinado no cenário construído pela vertente pós-colonial da Teoria Social. É um assunto candente no mundo museal, muito embora por vezes tratado na superfície, como se fora meramente uma questão de trazer à luz as curiosidades sobre o olhar do outro, as memórias e a vivência da alteridade, quase como um pot-pourri de singularidades e extravagâncias pronto a ser deglutido e metabolizado, cujo resultado é por vezes reduzido a exibições de nosso capital cultural, seja em diálogos presenciais, seja em embates virtuais nas redes sociais.
Entretanto, o tema provoca a reflexão, instiga-nos a uma análise das nossas práticas museais, nossa forma de estar nesse universo complexo, que Ignácio Díaz Balerdi denomina como "mastodonte longevo, prolífico y bulímico" ou, ainda, a partir da proposta do acróstico "Muestra Universal de Saberes Enigmáticos" (Balerdi, 2008).
Devo confessar que o controverso nos museus, para além da reiteração dos fetiches do bizarro e do exótico (mormente atribuído ao outro) cuja origem remonta aos gabinetes de curiosidade, me parece estruturante nessas instituições tributárias do ideário iluminista e instrumentos-chave da constituição dos Estados-nacionais e respectivas comunidades imaginadas (Anderson, 2007), da legitimação das tradições inventadas (Hobsbawm & Ranger, 1984) e, ainda, da constituição do campo disciplinar das ciências (Schwarcz, 1993).
A controvérsia soa residir em vários aspectos. Na sacralidade e no fetichismo a matizar os reflexos narcísicos de nossa cultura. Na vocação pedagógica da instrução e ilustração, que parece não lograr romper com a hierarquia estabelecida entre aqueles que constituem o nós e os outros e entre aqueles que possuem capital cultural para deambular confortavelmente e com propriedade por entre as salas e aqueles que não possuem e, portanto, não se sentem pertencentes àquilo. Na paisagem artificial, arbitrária e coercitiva de sujeitos e objetos, que normatiza as possíveis relações entre ambos. Na ambiguidade manifesta na condição de reconhecido espaço de legitimação de representações e discursos e, por isso mesmo, na potencialidade de romper com essas mesmas construções.
Os museus foram - e são - templos de celebração e de adoração, lugares de encontros e re-encontros (consigo mesma e com as outras pessoas), fóruns e arenas onde o outro finalmente pode se manifestar pelo próprio discurso e não apenas por seus objetos fagocitados e ressignificados na medida da alteridade. Todavia, o desafio proposto pelo tema do ICOM de 2017, qual seja, de ressemantizar os museus e transformá-los em "centros de pacificação das relações entre os povos", espaços-chave para "a aceitação de um passado doloroso" (ICOM, 2017) e, portanto, para um horizonte de reconciliação apresenta um grau de complexidade jamais enfrentado, em minha opinião.
A proposta de dizer o indizível nos museus consciente e objetivamente (isto é, expondo de forma compromissada, assumindo um posicionamento político, sem os eufemismos dos silêncios e ausências) levou-me a um estado de contrição. É bem verdade que minha dupla função e atuação, como museóloga de um museu e professora de um curso de Museologia, intensificou esse processo. No cotidiano vivenciado em uma instituição museológica, diariamente mesclam-se e embaralham-se as suas potencialidades e impossibilidades, fragilidades, incongruências e ambivalências com os desejos (declarados e/ou pretensamente adivinhados), demandas, provocações, exigências e constrangimentos da sociedade, manifesta em distintas formas, desde o público (e o não-público, esse ilustre desconhecido cada vez mais cobiçado), até o patrocinador.
No cotidiano vivenciado junto às pessoas em formação na Museologia, partilhamos ideias, dúvidas (muitas), inquietações, angústias e propostas dignas de um exército de Brancaleone. A rigor, no ato de lecionar constrói-se indubitavelmente uma via de mão dupla de acesso ao aprendizado, alicerçado menos na apresentação monológica de conteúdos programáticos e mais no questionamento sobre as certezas e incertezas, na confissão mesma da ignorância e da suspeição.
É na academia, melhor dizendo, é na convivência com as pessoas que em breve serão minhas colegas de profissão que se esboroam as convicções e os modelos de uma Museologia e de museus relevantes porque transformadores. Suas proposições e inquietações potencializam esse ato de contrição provocado pela reflexão sobre o tema do ICOM deste ano.
Diante das perguntas e provocações dxs discentes e, mais pontualmente, diante do manifesto-compromisso de Gustavo Roxo e da geração de museologxs a qual pertence, humildemente e de peito aberto mergulho nesse ato de expiação, reconhecendo as limitações e obstáculos a ultrapassar para efetivamente lograr transformar dos museus em lugares de apaziguamento e reconciliação entre dominadores e dominados, entre usurpadores e usurpados, entre os que detêm os meios de fala e escrita e aqueles a quem pretendemos "dar voz".
O desafio me parece assaz complexo, porém incontornável. Não apenas para atualizar a relevância (e assim justificar a legitimidade dos museus no mundo), mas, principalmente, para propor o entendimento e o reconhecimento de perspectivas plurais, de acordo com Chris Whitehead [1], mais relevante que a não repetição de tragédias. Entretanto, coincidindo com David Fleming, diretor dos Museus Nacionais de Liverpool e presidente da Federação de Direitos Humanos dos Museus, é preciso reconhecer que a nossa é uma cultura de silêncio auto-imposto, se considerarmos o comportamento colonialista e imperialista que determinou nossas práticas culturais, além dos abusos contra os direitos humanos, marcos de memórias de muitos dos museus que povoam o imaginário do Ocidente.
São inúmeros e variados os exemplos desse impasse para a ressemantização dos museus como lugares de apaziguamento e reconciliação. Não é possível negar, ou subestimar, o fato de que os museus se constituem como espaços artificiais onde os discursos são matizados por um jogo de luzes e sombras. Dito de outra forma, as narrativas museais resultam das escolhas de quem detém o poder para tal, nas quais são manifestas as respectivas vontades de memória e de esquecimento.
Igualmente inegável é o desafio referente à problematização dos museus enquanto espaços de colonização de discursos e referências patrimoniais. A título de ilustração dos conflitos resultantes da disputa de patrimônio (e de vontades de memória muitas vezes irreconciliáveis), lembro da reivindicação do povo da ilha de Páscoa de restituição de seu "Amigo Roubado" (o moai Hoa Hakananai’a), que em 1868 foi sequestrado do centro cerimonial de Orongo, violentando o Mana, o espírito dxs nativxs da ilha, e desde então é exibido em uma das salas do Museu Britânico [2]. Impõe-se diante de mim, a esboroar meus frágeis argumentos, o desafio de subverter a hierarquização das múltiplas perspectivas, algo que me parece o princípio e o principal para transfiguração do museu em um espaço de apaziguamento e reconciliação. Em outras palavras, percebo que a aceitação de um passado doloroso vai muito além da mediação de perspectivas diferentes sobre ele. O desafio posto está na não perpetuação da (im)posição e das perspectivas do dominador do passado, muitas delas fundantes do discurso do patrimônio. O dilema reside na descolonização do lugar que resulta do colonialismo e que insiste em vivificar uma das linhas abissais sobre as quais se fundamenta nosso mundo ocidental, de acordo com Boaventura Sousa Santos, o monopólio da verdade consagrado à ciência moderna (Sousa Santos, 2007).
O desafio encetado no tema do ICOM é também atinente da atualização das antigas disputas e coerções. Tributários das “velhas utopias”, desde as quais os museus são percebidos como potentes ferramentas de comunicação, de educação, de transformação social e de lazer (Balerdi, 2008, p.169), esses lugares de memória fetichizada nos objetos e disputada e mitificada nos discursos soam ser hoje reféns do mito dos números, ainda coincidindo com Balerdi (2008), o quantitativo do público como medida do sucesso e do fracasso das ações museais e, portanto, indicador de boa, ou má gestão.
Interrompo esta sucessão de questionamentos qual resultam tão somente ilações, confessando minha inépcia diante daquilo que me parece o grande impasse para concretizar a proposição apresentada pelo ICOM neste ano de 2017: a transmutação de um espaço constituído na disputa em lugar de apaziguamento e reconciliação. Museus onde sejam plasmadas narrativas autorais, polifônicas e conciliatórias, ainda que resultados de uma arena de disputa, inacabados e cheios de arestas a incomodar e a provocar o pensamento e a ação, em substituição dos prevalecentes discursos “chapa-branca” ou aqueles consequentes das imposições do capital (por vezes advindo de origens distintas e antagônicas e, portanto, recrudescendo as disputas). E finalizo coincidindo com Gusthavo Roxo, pois é mesmo dessa melancolia resultante da percepção da magnitude do desafio frente às limitações para a concretização da proposição que encerra o tema do ICOM que surge a vontade de mudar. Afinal, na caixa aberta por Pandora restou-nos a esperança.
[i] Professora adjunta da escola de Museologia da Unirio e Professora do mestrado profissional em preservação do patrimônio cultural do IPHAN.
[1] Ver https://www.youtube.com/watch?v=B9FaCrqs76Q&feature=youtu.be&utm_content=buffer180a8&utm_medium=social&utm_source=facebook.com&utm_campaign=buffer (acesso em 15/04/2017)
[2] O caso, que não encontra eco e respaldo oficial do governo chileno, foi tema do documentário “El espíritu de los ancestros” (“Te kuhane o te tupuna”), de Leonardo Pakarati.
Referências
- ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. Porto: Edições 70, 2007.
- BALERDI, Ignacio Díaz. La memoria fragmentada. Gijón: Ediciones Trea, 2
- HOBSBAWM, Eric & RANGER, Terence (orgs.). A invenção das tradições. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
- SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
- SOUSA SANTOS, Boaventura. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estudos, 79, novembro de 2007, p.71-94.
Outras fontes
- ROXO, Gusthavo. Lágrima Museal. https://medium.com/@gusthavogoncalvesroxo/l%C3%A1grima-museal-285109b761b0
https://www.instagram.com/p/BD6iaSADZBJ/?taken-by=maresiaroxa (acesso em 15/04/2017). - WHITEHEAD, Chris. Museus as placas of engagement. Depoimento para International Museum Day.https://www.youtube.com/watch?v=B9FaCrqs76Q&feature=youtu.be&utm_content=buffer180a8&utm_medium=social&utm_source=facebook.com&utm_campaign=buffer (acesso em 15/04/2017)