Rafael Zamorano Bezerra [i]
A autoridade daquele que atesta veracidade é um dos elementos fundamentais na autenticação de objetos históricos e obras de arte. Assim como as relíquias cristãs na Idade Média eram validadas por meio de autoridades, como um rei, bispo ou papa, que declaravam a autenticidade de objetos pertencentes a santos ou ao próprio Cristo, no colecionismo moderno o papel da autoridade do especialista ou do nome próprio é fundamental na autenticação de antiguidades e obras artísticas. Nesse sentido, importantes linhas de pesquisa em acervos museológicos são o estudo da procedência dos objetos, assim como a identificação, descrição e análise das autoridades mobilizadas nos processos de autenticação, aquisição, classificação e valoração de acervos.
Caso interessante que mostra a relação entre autoridade e verdade na autenticação de objetos em coleções ocorreu em 2007. Nesse ano, Júlio Bandeira, historiador da arte, e Pedro Corrêa do Lago, colecionador e crítico de arte, publicaram um catálogo raisonné da obra de Jean Baptiste Debret, intitulado Debret e o Brasil. [1] Nesse catálogo, os autores questionaram a autenticidade de 54 obras atribuídas ao célebre artista francês. Para a elaboração do catálogo foi formado um comitê de autenticação composto por ambos os autores e por autoridades no assunto, como o embaixador João Hermes Pereira de Araújo, na época vice-presidente do IHGB e pesquisador da obra de Debret; Zuzana Paternostro, especialista em pintura europeia do século XIX e curadora-chefe de pintura estrangeira do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA) desde 1977; Jean Boghici, “quiçá o mais renomado e experiente marchand de arte no Brasil” [2]; e por Claudine Lebrum Jouve, autora do catálogo raisonné de Nicolas Antoine Taunay.
O comitê classificou a autoria de algumas obras como “atribuições questionáveis”, e outras como “atribuições rejeitadas”, quando a opinião foi unânime em não reconhecer nelas a autoria de Debret. Essas obras, explicam os consultados, “podem ser quadros autênticos (às vezes de grande qualidade), mas que foram atribuídas a Debret e são, na verdade, de outros autores do período [...] como também podem ser falsificações intencionadas, realizadas sobretudo no ‘ateliê’ organizado por Robert Heymann”.[3]
Robert Heymann foi um marchand mato-grossense com estabelecimento em Paris, que adquiriu prestígio no mercado de arte quando, ao entrar em contatos com familiares de pintores viajantes, conseguiu trazer para o Brasil a coleção de aquarelas de Debret, comprada por Raimundo Ottoni de Casto Maya, tornando-se conhecida hoje como coleção Castro Maya. Ocorre que Heymann aproveitou-se de seu prestígio e começou a produzir em seu ateliê falsificações dos trabalhos de Debret, Rugendas e Pallière, forjando assinaturas e contratando artistas para realizarem cópias e imitações. Heymann, segundo os autores do catálogo, teria vendido suas falsificações até mesmo para colecionadores de grande porte, como o próprio Castro Maya.
O impacto da publicação foi grande, uma vez que vários museus importantes tiveram seus acervos contestados, como a coleção Debret dos Museus Castro Maya: 42 aquarelas num total de 551 foram classificadas como “atribuição rejeitada”. O Museu Histórico Nacional (MHN) também teve obras contestadas. Tratam-se da pintura a óleo Retrato de D. João VI e da aquarela Construção do telégrafo do Morro do Castelo. Sobre o retrato de D. João VI os autores afirmam:
Este retrato de D. João VI é conservado há anos no Museu Histórico Nacional com uma atribuição a Debret. Trata-se, muito provavelmente, de um retrato do monarca executado por José Inácio S. Paio, ou Sam Paio, um dos retratistas mais atuantes da corte portuguesa, autor entre outros da grande tela representando D. João VI sentado, conservada no convento Mafra [...] [4]
Sobre a aquarela apenas informam que “foram também incluídas nessa seção [de obras erroneamente atribuídas a Debret] um desenho antigo atribuído por equívoco a Debret por um museu [...]”. [5]
A publicação do catálogo causou alvoroço entre as direções dos museus citados, visto que implicou a desvalorização do acervo das instituições, além de ter comprometido a credibilidade das coleções. Na época, o diretor do Departamento de Museus e Centros Culturais do IPHAN (DEMU-IPHAN), José do Nascimento Júnior, formou uma Comissão de Avaliação de Autenticidade das obras atribuídas a Debret [6], composta pela museóloga Adriana Bandeira Cordeiro, o museólogo Ivan Coelho de Sá, o químico especialista em conservação de bens culturais Luiz Antônio de Cruz Souza e a museóloga especialista em história da arte Sônia Gomes Pereira.
O trabalho da comissão terminou em março de 2009 [7], e acabou por confirmar a inautenticidade das obras do MHN citadas no catálogo. O parecer foi baseado em comparações com outros trabalhos de Debret, em especial com o óleo do MNBA, no conhecimento histórico dos autores e, acima de tudo, na avaliação visual da obra, o que exige o “olhar treinado” dos avaliadores: a capacidade de reconhecer detalhes técnicos de pintura, como a “delicadeza do traço e o preciosismo técnico”. O parecer também acrescenta que, possivelmente, a aquarela foi uma das falsificações produzidas por Robert Heymann. O desenho foi adquirido no leilão da coleção Djalma da Fonseca Hermes realizado em 1941.
Djalma da Fonseca Hermes foi um dos maiores colecionadores de arte do Rio de Janeiro no século XX, tendo trazido para o Brasil diversos trabalhos de artistas nacionais e estrangeiros, como Franz Post, Nicolau Antônio Taunay e Bartolomé Esteban Murillo que estavam dispersos em museus, antiquários e coleções particulares na Europa, especialmente em Portugal e na França. Sua coleção era considerada por muitos como a mais importante do Brasil, tendo a sua venda em leilão sido lamentada pelo então diretor do Museu do Ipiranga, Affonso E.Taunay, em carta dirigida ao colecionador.
A importância da coleção de Djalma da Fonseca Hermes era tamanha que o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) abriu um processo de tombamento do catálogo do leilão e o governo de Getúlio Vargas baixou um decreto-lei abrindo um crédito de mil e quinhentos contos para aquisição de objetos da coleção. Vargas havia solicitado aos diretores do Museu Histórico Nacional, do Museu Nacional de Belas Artes e a técnicos do SPHAN listas e pareceres sobre os objetos que seriam de interesse para as instituições.
O MHN adquiriu diversos objetos, principalmente mobiliário, pinturas e esculturas de caráter histórico. Boa parte desses objetos tornou-se destaque da coleção do museu, como as maquetes das alegorias dos rios nacionais presentes na base do monumento a D. Pedro I, localizado na Praça Tiradentes e o estudo em gesso de Henrique Bernadelli para a estátua de D. Pedro I encomendada para o Museu Paulista em 1922, além de pinturas históricas de artistas como Edoardo de Martino e Aurélio de Figueiredo.
Na documentação dos lotes comprados pelo governo para o MHN não consta nenhuma referência relativa à procedência dos objetos, ou seja, a forma como o colecionador as adquiriu. O catálogo é o próprio instrumento de autenticação, uma vez que ele era entregue ao arrematante com a seguinte declaração em sua terceira página: “As pinturas a óleo, pastel e crayon, constantes nesse catálogo, são declaradas absolutamente autênticas, sendo que o Murillo é pelos reputados peritos André Shoeller e François Max-Kann, conforme consta do catálogo que foi entregue ao arrematante”. [8]
E as demais, foram declaradas por quem? Obviamente pelo próprio Djalma da Fonseca Hermes e pelo leiloeiro Antônio de Paula Affonso, responsável pelo leilão. A autoridade de colecionador e a importância atribuída à sua coleção por outros especialistas parecem outorgar-lhe legitimidade para autenticar a procedência das obras. No caso da obra de Murillo (1617-1682), autor barroco espanhol de grande valor e importância no mercado da arte, a autenticidade foi atestada por dois “reputados peritos”: o especialista francês André Shoeller, membro do Syndicat Français d'Experts Professionnels, e François Max-Kann, autor de importantes trabalhos sobre pinturas e desenhos. [9]
Os avaliadores do DEMU/IPHAN sugerem que a aquarela Construção do telégrafo do Morro do Castelo é uma das falsificações de Robert Heymann, uma vez que no catálogo da coleção Fonseca Hermes constam obras que o marchand falsário havia publicado anos antes no catálogo da Casa Heymann. Outro dado que reforça a dedução é que Djalma da Fonseca Hermes adquiriu a maior parte da sua coleção nas décadas de 1920 e 1930, aproximadamente o mesmo período de atuação de Heymann, que frequentemente vendia e recebia colecionadores brasileiros em seu estabelecimento. Talvez pelo fato de a aquarela retratar um edifício do Morro do Castelo, espaço antigo da cidade e já desaparecido naquela ocasião, tenha sido determinante para a aquisição da obra pelo MHN, que possui em sua coleção diversos objetos relacionados ao antigo morro.
Chama atenção no caso dos “falsos Debrets”, o fato das obras terem ficado tantos anos sem que sua autenticidade tenha sido questionada. Talvez a importância dos atores envolvidos com esses objetos, como Robert Heymann, na época ainda não conhecido como um falsário, Djalma da Fonseca Hermes, Castro Maya, o leiloeiro Antônio de Paula Affonso tenha produzido uma certeza de autenticidade que dispensasse a necessidade de verificação, até o momento em que a crítica dos autores do catálogo raisonné de Debret a questionou.
O caso dos falsos “Debrets” mostra como o estudo da procedência dos acervos e a identificação, descrição e análise dos dispositivos de autoridade mobilizados na autenticação, aquisição e valoração de objetos permitem entender melhor as lógicas do colecionismo. No caso de coleções musealizadas, cabe observar que estudar os procedimentos de aquisição de acervo é um caminho para entender como e quais autoridades foram mobilizadas na construção do objeto histórico ou artístico, cuja legitimação ocorre via musealização. Por fim, entender tais operações potencializa o papel dos museus como instituições críticas – portanto emancipadoras –, uma vez que possibilitam a pesquisa, a educação e a produção de conhecimento histórico sobre seus discursos e construções de valor.
[i] Doutor em História. Editor dos Anais do Museu Histórico Nacional e responsável pelo Setor de Pesquisa do MHN.
[1] BANDEIRA, Júlio; LAGO, Pedro Corrêa do. Debret e o Brasil. Obra completa. Rio de Janeiro: Capivara, 2007
[2] Id. Ibid. p. 16.
[3] Id. Ibid. p. 17.
[4] Id. Ibid. p. 678.
[5] Id. Ibid. p. 681.
[6] BRASIL, MINISTÉRIO DA CULTURA, INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Portaria nº 365, publicada no DOU de 18 de novembro de 2008.
[7] Cada avaliador da Comissão ficou responsável por tratar de uma determinada parte. A análise da metodologia empregada por Júlio Bandeira e Correia do Lago ficou sob a responsabilidade de Sonia Gomes Pereira. A análise técnica e formal das aquarelas autênticas de Debret assim como a análise iconográfica das obras questionadas ficou sob a responsabilidade de Ivan Coelho de Sá. O levantamento das assinaturas ficou a cargo de Adriana Bandeira e a análise física ficou sob responsabilidade de Luiz Antônio Souza.
[8] BRASIL. MINISTÉRIO DA CULTURA, INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTISTICO NACIONAL. Comissão de Avaliação de Autenticidade das obras atribuídas a Debret, relatório final, 2009... op. cit.
[9] André Shoeller e François Max-Kann atuaram nas décadas de 1920, 1930 e 1940. Ambos já faleceram. A galeria Shoeller ainda funciona e quem a administra é André Shoeller, filho do renomado especialista.