Dia Internacional de Museus 2017

Adler Homero [1]

A proposta dessa série de artigos é discutir como os museus abordam a visão atual de uma história contestada. Para tanto, se parte de uma colocação do Conselho Internacional de Museus (ICOM): “a história é um elemento vital para definir a identidade de um povo e cada um de nós se define através de importantes e fundamentais eventos históricos”.

No entanto, discordamos da premissa apresentada pelo ICOM, pelo menos quanto à historiografia predominante nos dias de hoje: nas últimas décadas – de forma alguma se trata de um movimento recente – tem imperado nas ciências sociais uma postura de rejeição explícita ao nacionalismo e à própria ideia de ênfase nas identidades maiores em virtude dos excessos cometidos pelos estados nazistas e fascistas durante as décadas de 1930 e 1940. Em resposta à essas ações totalitárias, claramente negativas, as ciências sociais passaram a enfatizar o oposto: ao invés de identidade, a diversidade; preferindo o local ao nacional.

A mudança de abordagem abarca vários níveis, não apenas o das políticas estri-tamente culturais. No Brasil, na década de 1930, em nome da criação de uma identidade nacional houve um processo em que se proibiu o uso de línguas estrangeiras nas escolas. O governo chegou a aprovar legislação específica (Decreto-Lei 1545/39) visando a “concorrer para a perfeita adaptação, ao meio nacional, dos brasileiros descendentes de estrangeiros.”, além de uma série de medidas coibindo manifestações “estrangeiras”, incluindo o uso de suas línguas tradicionais e o ensino tendo que ser feito exclusivamente em Português. Tal atitude, hoje em dia, seria considerada impensável. Por exemplo, a Constituição Federal de 1988 garante aos índios, que antes deveriam ser “assimilados” à cultura nacional, o direito à “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”.

Modernamente também há outras políticas, como as de defesa das comunida-des tradicionais, as quais é assegurada “a preservação dos direitos culturais, o exercício de práticas comunitárias, a memória cultural e a identidade racial e étnica” por meio do Decreto 6040/2007, devendo-se dizer que a identidade racial e étnica que se procura preservar não é a dos grupos majoritários, pelo contrário, é a estritamente local.

Um discurso que propõe valorizar identidades nacionais, atualmente é considerado obsoleto. Isso não se restringe apenas aos aspectos acadêmicos, mas as leis citadas e o crescente movimento de estabelecer a consulta popular e a proteção das comunidades locais deixam claro a atuação governamental. Foi o caso, em 2016, do cancelamento da implementação da Hidrelétrica São Luís, no Tapajós, independente de um suposto “benefício social maior” que tal obra traria para a sociedade em termos mais abrangentes, regionais e nacionais.

Essa nova postura cria, de fato, uma controvérsia: museus tradicionais são vol-tados para “definir a identidade de um povo”, mesmo que isso seja cada vez mais rene-gado como uma postura histórica aceitável. Para as instituições maiores este pode ser um problema insuperável: grandes museus são pouco aparelhados para tratar as questões de identidades locais, a não ser de forma sucinta, apenas reconhecendo a existência de tais identidades.

Isso é uma situação inerente à essas instituições: museus de história são organi-zações caras em termos de dispêndio de recursos e esforços. Desta forma, apesar de existirem instituições bem sucedidas, criadas e mantidas por comunidades locais, o normal é os museus sejam órgãos mantidos por governos municipais – sem confundir essa instância com a estritamente local –, estadual (regional) ou nacional, com áreas de estudo bem maiores do que as das comunidades imediatas onde as instituições estão inseridas. Este aspecto não deve ser visto como negativo: é difícil pensar o caso de uma instituição museológica nacional ou estadual que só trabalhe ou mesmo priorize apenas a comunidade onde se insere. Certamente, se isso fosse tentado, criaria resistências: podemos imaginar o Louvre, na França, só expondo a arte produzida nas imediações de Versalhes, relegando o restante de suas coleções à reservas técnicas? Seria inaceitável.

Ademais, deve-se ter em mente que as coleções originalmente formadas pelos grandes museus foram feitas em um momento de estruturação dos estados nacionais modernos. Para isso, era necessário incentivar as identidades maiores por meio do culto aos objetos usados por grandes líderes e ligados aos fatos marcantes da história coletiva. Isso a ponto dos grupos minoritários muitas vezes passarem despercebidos ou terem sido propositalmente ignorados nos acervos institucionais. Quando muito, objetos eram recolhidos para mostrar a submissão desses grupos “minoritários” à vontade das elites governantes, como a exposição de instrumentos de suplício de escravos ou armas capturadas de rebeldes. Mesmo grupos majoritários, mas não hegemônicos, não eram representados, como no caso do universo do trabalho, ignorado na maior parte dos museus tradicionais, isto é, os formados antes de 1960.

Novamente, devemos que isso não era necessariamente negativo – mesmo a proposta desse artigo, de que os museus poderiam “incentivar os visitantes a pensar além de suas próprias experiências individuais” já era uma das premissas básicas das antigas exposições museológicas. Na verdade, elas se destinavam justamente a superar a realidade individual, local ou até mesmo regional, só que em nome de uma identidade maior, a nacional. Entretanto, o objetivo dessa série de artigos não é esse, seria como enfatizar aspectos locais em organizações que foram criadas com um objetivo maior. Não como ações isoladas e esporádicas, mas como parte de políticas permanentes e que superassem a questão de uma identidade maior como o tópico principal tratado nessas instituições.

Daí surge uma situação que para nós parece ser um problema insuperável, isso por uma dificuldade conceitual: se a ideia de um nacionalismo estremado ficou obsoleta no campo das ciências sociais, isso não implicou que a realidade da existência de uma identidade nacional maior passou pelo mesmo processo. Mesmo em um mundo globalizado, onde há organizações multinacionais, não se perdeu a noção de que cada elemento constitutivo desses grupos tem suas particularidades, compartilhadas por seus habitantes e não por outros. Na verdade, pode-se dizer que essa é a essência da “história contestada”. Mais importante, as particularidades não se restringem aos grupos locais: entre os europeus – que têm a sua própria identidade “local” – ainda há britânicos, franceses, espanhóis e gregos. Ainda que haja, como sempre houve, identidades nacionais, como os escoceses, galeses, irlandeses e ingleses no Reino Unido. Analisando apenas os aspectos geográficos, há também as identidades dos condados (estados), municípios e bairros. Fingir que essas divisões, maiores ou menores, não são relevantes seria negar uma realidade objetiva.

Como resolver essa dicotomia básica? Em termos de uma “economia de mercado” que busca maior eficiência nas instituições, nos parece que a especialização é o caminho: deve haver instituições que lidem com identidades maiores sem esquecer que há outras realidades diversas. Junto com essas instituições deve haver museus que trabalhem com o local ou o regional, sem esquecer que estão inseridos em um mundo globalizado. Ou seja, não se nega que há histórias contestadas, mas também há as não contestadas e os museus devem tratar das duas.

Historiador, Pesquisador do IPHAN, foi pesquisador do Museu Histórico Nacional, curador do Museu Militar Conde de Linhares e é conselheiro do Museu de Armas Históricas Ferreira da Cunha.

 

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