Átila B. Tolentino [1]
No ano de 2011, a Casa do Patrimônio da Paraíba [2] inaugurou a exposição intitulada “João Pessoa, Minha Cidade”. Essa exposição buscava mostrar os trabalhos de educação patrimonial desenvolvidos nas escolas municipais Santos Dumont, Frei Afonso, Monsenhor João Coutinho e Damásio Franca, todas localizadas nas proximidades do Centro Histórico da cidade. Mereceram destaque aquarelas produzidas por alunos que participaram do projeto, retratando monumentos históricos locais, as quais foram expostas em uma grande parede pintada de amarelo bem vivo, cor definida pelos próprios alunos no planejamento participativo da exposição.
Além disso, a mostra também convidava o público a refletir sobre a temática que envolve o patrimônio cultural e os laços de pertencimento que cada um de nós temos com os patrimônios que nos afetam, sejam eles coletivos ou individuais. Não querendo uma atitude passiva do expectador, provocava-se o visitante a participar da exposição. Em um grande mural, havia a seguinte pergunta: “O que é patrimônio cultural para você?”.
O visitante comum, após apreciar toda a exposição, ou os estudantes, após participarem de uma visita orientada, podiam responder ao questionamento escrevendo ou desenhando. Essa foi uma forma de interação simples, sem uso das novas tecnologias comuns nas megaexposições da atualidade, mas que mostrou bons resultados. Primeiramente porque a exposição era construída e reconstruída a cada nova resposta, seja de forma textual ou iconográfica. E melhor: havia a participação de todo tipo de público, desde uma criança ainda não alfabetizada a grandes artistas que presenteavam a exposição com riquíssimos desenhos ou pinturas. Assim o grande mural sempre estava com uma cara nova, com novas respostas que também nos incutiam a refletir sobre o que vem a ser patrimônio cultural a partir da perspectiva do público no diálogo travado com exposição.
Essa experiência da Casa do Patrimônio da Paraíba nos remete à temática de reflexão proposta pelo Conselho Internacional de Museus – Icom para o Dia Internacional de Museus em 2019: “Museus como núcleos culturais: o futuro da tradição”. Ao discorrer que o papel dos museus na sociedade está em constante mudança, o Icom expõe que eles se tornaram polos culturais que funcionam como plataforma onde coexistem, de forma harmônica, criatividade e conhecimento, e onde os visitantes podem contribuir, interagir, compartilhar e co-criar. Assim, as instituições museais transformam suas práticas para se manterem mais próximas das comunidades a que servem.
A narrativa museológica, por sua carga estética, poética e política, é essencialmente polifônica, portanto, plurissignificativa, possibilitando uma dialogicidade com os visitantes, os quais lhes é permitido fazer leituras a partir de suas próprias experiências ou até mesmo participar ativamente da sua construção. Mikhail Bakthin [3] defende que nenhum texto é monofônico e a polifonia cria os diálogos que confrontam ou reforçam os sentidos que circulam em determinado momento histórico. O mesmo serve para os discursos museológicos, cujas narrativas refletidas em suas exposições, como já dito, são plurissignificativos, cabendo ao visitante fazer sua leitura de forma atenta e crítica, buscando abstrair a ideologia nele subjacente.
A proposta do Icom também nos remete diretamente à ideia da “invenção das tradições” debatida por E. Hobsbawm e T. Ranger [4]. Ao se adotar como pressuposto que a tradição é uma invenção e, por extensão, que a memória é uma construção, assume-se que tanto uma como a outra são dinâmicas e que um determinado passado é construído e reconstruído a partir das referências que temos no presente. Isso quer dize que a memória é relacional, no sentido de que está atrelada aos sujeitos que a constroem, aos seus interesses, à sua cosmovisão e às suas experiências de vida. Assim, as memórias entrelaçadas nos espaços museais são frutos de um olhar sempre enviesado da posição específica dos sujeitos que participam de sua construção.
Toda memória, portanto, não é uma mera cristalização do passado. E as tradições seguem o mesmo caminho.As narrativas de memórias coletivas e das tradições de um determinado grupo social,performatizadas em um espaço museal, vão estar carregadas de discursos e significados criados, reinterpretados e inventados pelos sujeitos, sem deixar de considerar, é claro, os jogos de poder que alimentam as disputas e os conflitos das relações sociais dentro desse grupo. Como bem aponta Mariza Veloso, “o patrimônio cultural deve ser entendido como um campo de lutas onde diversos atores comparecem, construindo um discurso que seleciona, apropria – expropria – práticas e objetos” [5].
Ao sermos chamados para refletir sobre o futuro das tradições no campo dos museus, há que se ter em mente que estamos lidando, quando tratamos da preservação e valorização de patrimônios culturais, com uma prática social. Deste modo, as comunidades devem ser as grandes protagonistas na seleção do que representa as suas identidades e na preservação de seus valores culturais. E, por extensão, as práticas museais, em todas as suas dimensões, devemprimarpor processos de base democrática, propiciando a participação efetiva dos diferentes atores sociais detentores e produtores das suas referências culturais e tradições.
O convite à reflexão na exposição “João Pessoa, Minha Cidade” foi uma forma simples de se buscar essa construção democrática, mas que serviu tanto para tocar o visitante sobre o tema, como para nós, gestores do campo do patrimônio cultural, podermos conhecer qual é a visão dos visitantes sobre as suas referências culturais, a partir de sua casa, do seu bairro, do seu modo de ver e de viver, de forma colaborativa e coparticipativa.
[1] Átila Tolentino é graduado em Letras e especialista em Gestão de Políticas Públicas de Cultura pela Universidade de Brasília. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba.É da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Coordenou as ações da Casa do Patrimônio da Paraíba/IPHAN/PB entre 2009-2018.
[2] A Casa do Patrimônio da Paraíba, inicialmente chamada de Casa do Patrimônio de João Pessoa, é um projeto vinculado à Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional na Paraíba – Iphan/PB. Nasceu de uma ação conjunta entre o Iphan/ PB e a Prefeitura Municipal de João Pessoa por meio de sua Coordenadoria do Patrimônio Cultural (Copac), no ano de 2009. O Programa “João Pessoa Minha Cidade” foi o precursor dessa parceira. No seu caminhar, a CPPB ampliou suas atividades e agregou, numa perspectiva de rede de cooperação, outros setores e instituições ligados à cultura e à educação, bem como expandiu suas ações para outras cidades do Estado.
[3] BAKTHIN, Michail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2009.
[4] HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (orgs.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
[5] VELOSO, Marisa. O fetiche do patrimônio. In ABREU, Regina; CHAGAS, Mario de Souza; SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. (orgs). Museus, coleções e patrimônio: narrativas polifônicas. Rio de Janeiro: Garamond, MinC/Iphan/Demu, 2007. p. 229-245.
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