Ana Virginia Pinheiro [i]
Em memória de minha irmã, Eva Maria (1958-2019).
A finitude é o destino de tudo.
José Saramago
A história da Biblioteconomia preserva e difunde o modelo de biblioteca alexandrina – a biblioteca de todos os livros!Esse modelo de biblioteca infinita foi delineado a partir das práticas acumuladoras da Biblioteca de Alexandria, uma das mais célebres da Antiguidade, que pressupunha o acesso ao seu acervo a partir de uma classificação por Musas. O conhecimento erarepresentado pelas virtudes das nove musas canônicas,filhas de Zeus e Mnemósine (a deusa Memória): 1 Calíope (Eloquência e Poesia heroica), 2 Clio (História), 3Érato (Poesia elegíaca), 4 Euterpe (Música), 5 Melpômene (Tragédia), 6Polímnia (Poesia lírica e Hinos sagrados), 7 Tália (Poesia bucólica), 8 Terpsícore (Dança e Canto coral), e 9 Urânia (Astronomia, Astrologia).
O culto das nove musas foi retomado e difundido pelo humanista e bibliotecário Justus Lipsius(1547-1606), que ratificou o conceito de biblioteca como um templo de sabedoria, o Templo das Musas – o Mouseion[museu], um lugar de preservação de memória, onde o estudo enciclopédico é alicerçado nos conteúdos de todos os livros.
Nesse lugar, e em todos os lugares modelados a partir dele, tornou-se possível encontrar o manuscrito, o impresso, o gravado, o aquarelado, o bordado, o livro-objeto, o livro-documento, o livro-monumento. O livro desse museu-biblioteca é, ao mesmo tempo, o livro “arquivado”, o livro “museografado”, o livro “bibliografado”, o livro que não tem fim.
No âmbito da Biblioteconomia de Livros Raros [1], o trato com o livro antigo mantém a dignidade do Mouseion, reconhece no livro de biblioteca o status de obra de arte, sob as perspectivas da Bibliografia Literária e da Bibliografia Material, e, destacadamente, como objeto que acumula qualidades ad infinitum (Figura).
Nesse contexto, a Biblioteconomia de Livros Raros e a Museologia se entrelaçam, embora o alcance transdisciplinar desse enlace tenda a concentrar-se no hibridismo que pode resultar da integração da biblioteca e do museu, e não das inter-relações que pressupõem o confronto quotidiano entre a racionalidade técnica e a prática reflexiva: o livro raro é um livro que se lê (um item bibliográfico) ou que se vê (um item museográfico)?
Uma coleção de livros raros, como uma “biblioteca-museu” ou um museu-biblioteca”, constrói-se como um gabinete de curiosidades onde o conjunto amealhado revela-se e desvela-se, continuamente, sem se repetir, exposto; e a cada novo olhar uma nova forma de significação evidencia-se, perceptível, transcendendo o sentido de livro de biblioteca.
Esse aspecto particular do livro raro, que oferece o conhecimento registrado com a intenção de ser perene, ressalta o caráter transitório do suporte do registro – os riscos de perda de memória cultural, que ainda justificam o registro do conteúdo, sua fixação em um suporte palpável, são incontornáveis quando considerados sob a guarda do continente, a longevidade de sua materialidade, frustrando o curador com a consciência de finitude da biblioteca.
O conceito de curadoria de livros raros, provavelmente, se consolidou diante da necessidade de seleção do volume de livros que formaram as bibliotecas enciclopédicas dos séculos XVII e XVIII; com a prática nascente de colecionismo especializado;com a evolução de referências patrimoniais, implicando ações de observação,de coleta competitiva ou cooperativa, de tratamento e guarda; com a involução/evolução do colecionismo especializado para o especial, em meados do século XIX, com abordagem não necessariamente científica, embora inserisse o valor nacionalidade (a coleção Brasiliana, por exemplo) e outros aspectos de relevância cultural (tais como, a coleção Inferno, de obras proibidas; e a coleção de pergaminhos, de obras encadernadas ou impressas nesse material) – tudo pressupondo forte alicerce na educação patrimonial.
Assim, a educação patrimonial [2] para o trato com o livro raro reitera incondicionalmente uma tradição museal arquetípica: possibilita a leitura do mundo – do mundo da erudição e do mundo da arte.
Bibliotecas e Museus, assim como os Arquivos, “são forças para a cidadania, engajamento e coesão social” (PASTORE, 2009, p. 9, tradução nossa); são espaços de resistência do Brasil que é, que foi e que há de ser, de quem o constrói e desconstrói, de quem o ama, de quem não desiste, de quem sabe que Cultura é uma forma poderosa de luta em suas múltiplas e diferentes representações; é a busca,inglória e resiliente, por perpetuar os registros do conhecimento, em conteúdo e forma.
As bibliotecas, notadamente, as coleções de raridades bibliográficas são a parte frágil dessa estrutura sistêmica de resistência; seu sentido de finitude é submetido continuamente aos efeitos do tempo; às incertezas impostas aos testemunhos do passado, no presente; e à perspectiva de futuro do que alcançou esta geração, consagrado como tradição, mas, sempre sujeito a outros e novos olhares.
A biblioteca de livros raros é uma obra exposta, disposta em linhas retas, horizontais,paralelas e justapostas, formada por metros lineares e contínuos de lombadas armazenadas em prateleiras, que se pretende permanentes, e que, por si e dependendo do olho crítico ou acolhedor de um potencial leitor, configura-se como uma possibilidade (instável, incontrolável) de mudança de tradições.
Essa biblioteca reflete a evolução das coleções de livros que compõem seu acervo – desde a formação em nichos domiciliares, de uso particular, à acumulação, ao desenvolvimento, ao oferecimentopara uso coletivo. Trata-se de uma biblioteca transbordante de valores que a justificaram, tais como a utilidade para o aprendizado, a cultura de determinada moda, o interesse científico, a paixão pela materialidade, o prazer do entretenimento, ou a simples curiosidade do colecionador até o momentoque antecedeu sua incorporação, como coleção, a uma biblioteca de acesso coletivo, assumindo novas perspectivas. Em qualquer dessas circunstâncias, as diferentes coleções que compõem um acervo bibliográfico serão sempre objeto suscetível à pesquisa.
Por isso, talvez, cresce a pesquisa científica retrospectiva, de busca de registros do passado, antigos, que esclareçam, “consertem”, inovem tradições longevas, que se fortaleceram pelo endosso recalcitrante e que, no presente, mal se sustentam.
Em tempos de desinformação [3], a pesquisa retrospectiva é a opção de busca da fonte original; e o livro raro, que sobrevive ao tempo, que resguarda a informação ainda credibilizada está à espera do pesquisador, daquele que é capaz de questionar o texto e o suporte em primeira mão, apto a receber e transmitir o conhecimento desse modo apreendido, sem os filtros de dezenas de olhares que o antecederam e que se manifestaram através da citação de citação.
Tais ações ou intenções dependem da qualificação de potenciais curadores de acervos patrimoniais, aptos a abordagens pormenorizadas que personalizem o objeto de seu compromisso com a preservação – a preservação da vida, impressa em papel e tinta, plena de finitude, porque desse modo se recupera, no livro raro do presente, o futuro do passado.
Figura: página de rosto gravada em metal de “Musei, siveBibliothecae” (Museu ou Biblioteca), do jesuíta e bibliotecário Claude Clément (1594?-1642?), publicada em Lyon, em 1635 (do acervo da Biblioteca Nacional brasileira).Clément consagrou-se como um importante erudito do século XVII e um dos teóricos fundamentaisda Ciência da Biblioteconomia.
A gravura em metal da página de rosto é cópia de um desenho do renomado pintor Peter Paul Rubens (1577-1640), utilizado originalmente em “Opticorum”, do jesuíta François Aguillon, publicada em Anvers, em 1613. O artista anônimo que copiou e gravou a imagem para o livro de Clément introduziu apenas as variações necessárias, para adequar a mensagem iconográfica ao conteúdo daobra (MIGUEL ALONSO, 2008).
[i] Ana Virginia Pinheiro é Bibliotecária, Chefe da Divisão de Obras Raras da Fundação Biblioteca Nacional e Professora da Escola de Biblioteconomia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
[1] Livro raro: conceito que, aqui, releva a antiguidade (obras impressas até antes de 1801), associada aos valores propostos por Pinheiro (1989): unicidade (condição verificada a partir do número de exemplares conhecidos), preciosidade (condição definida pela salvaguarda da memória pessoal) e raridade, propriamente dita (condição do que é inquestionavelmente desse modo reconhecido).
[2] Educação patrimonial: “instrumento de ‘alfabetização cultural’ que possibilita ao indivíduo fazer a leitura do mundo que o rodeia, levando-o à compreensão do universo sociocultural e da trajetória histórico-temporal em que está inserido” (HORTA; GRUBERG; MONTEIRO, 1999, p. 6 apud CARTER, 2004, p. 35-36).
[3] Desinformação (misinformation): termo proposto no lugar de fakenews por Claire Wardle, pesquisadora da Universidade de Harvard, que designa a utilização de técnicas de comunicação e informação, em diferentes formatos, para induzir ao erro ou a uma falsa imagem da realidade, de modo a influenciar a opinião pública conforme interesses privados (PIMENTA, 2017).
Referências
- BRUNO, Maria Cristina Oliveira. Definição de curadoria: os caminhos do enquadramento, tratamento e extroversão da herança patrimonial. Brasília, DF: IBERMUSEUS, 2015. Disponível em: http://www.ibermuseus.org/wp-content/uploads/2015/07/Unidad1Texto_Definicao-de-Curadoria.pdf. Acesso em: 2 maio 2019.
- CARTER, Karin Kreisman. Educação patrimonial e Biblioteconomia: uma interação inadiável. Informação & Sociedade: Estudos, João Pessoa, v. 14, n. 2, p. 31-52, jul./dez. 2004.
- MIGUEL ALONSO, Aurora. La biblioteca jesuíta, Claude Clément. In: ______. La evolucióndel “SystemaBibliothecae” de laCompañia de Jesús y su influencia em lahistoria de la bibliografia española. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2008. Disponível em: http://www.cervantesvirtual.com/nd/ark:/59851/bmcp2781. Acesso em: 2 maio 2019.
- MUSEUS como núcleos culturais: o futuro da tradição. Brasília, DF: Instituto Brasileiro de Museus, 2019. Disponível em: http://eventos.museus.gov.br/docs/17SNM/museus-como-nucleos-culturais-o-futuro-das-tradicoes.pdf. Acesso em: 5 maio 2019.
- PASTORE, Erica. The future of museums and libraries: a discussion guide. Washington, D.C.: Institute of Museum and Library Services, 2009. Disponívelem: https://www.imls.gov/sites/default/files/publications/documents/discussionguide_0.pdf. Acesso em: 9maio 2019.
- PIMENTA, Angela. Claire Wardle: combater a desinformação é como varrer as ruas. Observatório da Imprensa, ed. 966, 15 nov. 2017. Disponível em: http://observatoriodaimprensa.com.br/credibilidade/claire-wardle-combater-desinformacao-e-como-varrer-as-ruas/. Acesso em: 5 maio 2019.
- PINHEIRO, Ana Virginia. Que é livro raro? Uma metodologia para o estabelecimento de critérios de raridade bibliográfica. Rio de Janeiro: Presença, 1989.
- WATEREN, Jan van der. The importance of museum libraries. INSPEL [The International Journal of Special Libraries], v. 33, n. 4, p. 190-198, 1999. Disponível em: https://archive.ifla.org/VII/d2/inspel/99-4wajv.pdf. Acesso em: 9 maio 2019.
- WELLS, Ellen B. Scientists libraries: a handlist of printed sources. In: HISTORYOFSCIENCE.COM. Traditions & culture of collecting: articles by and about collectors, librarians, and booksellers. [S.l.]: Jeremy Norman, 2004-2019. Disponível em: http://www.historyofscience.com/articles/wells-scientists-libraries-handlist.php. Acesso em: 10 maio 2019.
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