18 Maio 2020 - Dia Internacional dos Museus

Bruno Brulon [1] 

Escrevo este texto dos confins do meu isolamento voluntário, de onde aceito o desafio proposto de pensar os museus e a museologia em meio à pandemia ocasionada pela transmissão irrestrita do COVID-19. Do confinamento físico, observo os efeitos e desdobramentos de uma crise sanitária que se alastra por todos os outros setores da sociedade: da política à cultura, da economia global à vida privada.

Meu isolamento social teve início no dia 13 de março, quando tive a minha última reunião de pesquisa com alunas do curso de museologia na universidade. Naquela ocasião – já longínqua – discutíamos o papel do Estado brasileiro para com os museus e o patrimônio cultural, em sua história que mescla patriarcalismo e negligência, centralização e abandono, contradições estas que neste momento de insegurança global, mais do que nunca, se fazem sentir e nos ajudam a entender porque a crise da saúde dos corpos individuais se alastra tão rapidamente para o corpo do Estado e o de suas instituições fundamentais.

A pandemia atual, como a percebo – para além das ameaças à saúde coletiva e individual – reforça inseguranças e incertezas que já se espalhavam como uma doença crônica em nossos sistemas públicos e privados, e já havia, portanto, chegado de forma sensível aos museus. Penso que ela ainda irá durar, mesmo depois das perdas e da imunização dos corpos sobre-viventes e, logo, é prudente falarmos sobre o presente antes de antevermos apressadamente a sua memória no futuro.

Nas diferentes medidas em que a pandemia nos afetou e vem nos afetando, temos em comum o fato de estarmos todos sofrendo perdas, muitas delas inestimáveis, na ordem individual, mais imediata, e na ordem coletiva ou social. Gosto de pensar que a museologia é a melhor ferramenta para nos ajudar, coletivamente, a lidar com o sentimento que a perda nos traz, incluindo o sofrimento pela morte, pelas perdas materiais, pela perda de liberdade e todas as outras perdas que, neste momento, ameaçam a nossa existência perene.

Ao longo da história contemporânea, os museus e a museologia provaram o seu papel social em tempos de crise, auxiliando sociedades na recondução da vida a partir do luto. Os exemplos são inúmeros: desde o contexto pós-guerras mundiais na Europa, quando os museus, grandes e pequenos, assumiram o papel de reerguer sociedades devastas a partir de demandas globais ancoradas nas agendas da UNESCO e do ICOM; até, posteriormente, diante da onda de transformações dos anos 1960 e 1970, em que movimentos sociais e o fim do processo de descolonização formal exigiram dos museus e da museologia que se reinventassem para atender a novas demandas sociopolíticas e de um mercado cultural em expansão.

Naquele contexto de crise das instituições, em que os museus e a museologia buscavam novas forma de servir à vida em sociedade, o pensador francês, Hugues de Varine, afirmava:“O museu pode matar ou... fazer viver.[2] A ideia de que os museus podiam contribuir para a vida, além de útil, parecia inovadora no momento em que se formulava uma Nova Museologia, pautada na noção de “museu integral” que iria fundamentar a existência, entre outros modelos, do “ecomuseu” – passível de ser definido como “o museu onde habita a vida”.

Passadas quase quatro décadas desde que o movimento internacional da Nova Museologia se estruturou, essa afirmativa de Varine ecoa em nossos confinamentos e nos confins de nossos museus pandêmicos: os museus fazem viver ou operam na lógica de uma necropolítica?

Criados na época moderna e ligados à soberania do Estado, os museus são instrumentos de um poder sobre a vida (uma biopolítica, no termo usado por Foucault), atuando sobre a gestão política e econômica da existência humana e ao mesmo tempo moldando a vida ao lhe dar sentido em sua invenção coletiva. Em sua função biopolítica, os museus também servem ao luto, na medida em que nos ajudam a valorizar a vida e a acomodar os restos (Debary, 2002) deixados pelos mortos – em seu sentido material e simbólico.

Mas qual é o luto que os museus nos permitem sentir? Com que vidas estão comprometidas essas instituições biopolíticas? A compreensão de que a manutenção da vida depende do fato de uma vida “ser passível de luto”, como nos lembra Judith Butler (2015, p.32-33), não está dada necessariamente nos contextos em que a vida está constantemente sendo negociada, disputada, em que a vida tem um preço, o que há muito tempo não ficava tão evidente quanto no presente. Ao afirmar que a vida é precária, a autora assume que a possibilidade de a vida ser mantida depende fundamentalmente, não de um impulso interno do próprio viver, mas de condições políticas e sociais específicas (Butler, 2015, p.40). O pressuposto de ser enlutada, portanto, define quais são as vidas que importam – para o Estado, para o mercado global e para as instituições que gerem a vida.

Diante do atual contexto de exposição da precariedade da vida dentro dos quadros mesmos em que a vida é gerida, podemos apontar alguns sintomas da transformação iminente dos museus e da museologia nesta pandemia do século XXI. Neste relato confinado, consigo observar ao menos três tipos de lutos que nos fazem pensar sobre os museus pandêmicos e talvez sobre a crise atual da museologia:

1) Luto pela vida (ecologia)

No momento em que escrevo este texto, os dados divulgados pelos jornais indicam que, no Brasil, mais de 135 mil pessoas já foram contaminadas pelo coronavírus, e que tivemos ao menos 9.146 mortos em território nacional. Acompanhamos a notícia, a curva, o avanço da doença e marcamos a passagem do tempo de acordo com a perda da vida e sua aceleração.

Os corpos que vêm perecendo, vítimas de um mal invisível, desaparecendo sem possibilidade de despedida, cremados e destituídos de velório, fazem pensar sobre a própria imaterialidade do luto que permanece mesmo depois das cinzas e que se alastra, com a mesma velocidade de sua causa viral. Esses corpos que têm a sua precariedade evidenciada e televisionada pelo COVID-19 escondem outros corpos para os quais não há túmulo e nem crematório disponível.

Enquanto os governantes (parcialmente, ao menos), os hospitais, a polícia, os centros de pesquisa e as universidades atuam para garantir a manutenção da vida, isto é, assegurando que as pessoas vivam, ou que morram menos pessoas no momento de pandemia, os museus demitem aqueles que mais precisarão de assistência no mundo pandêmico. Estamos diante de uma crise da vida e do luto pela vida. Que museu faz viver, sem garantir o “mais viver” de seus próprios trabalhadores?

Foucault (1999 [1977-78]) nos lembra de um conjunto de técnicas a serem asseguradas pelo Estado e suas instituições para que mais do que manter a vida, seja mantido o mais viver, isto é, para que viver não seja apenas sobreviver. As instituições de salvaguarda e transmissão da memória e do patrimônio estão entre aquelas que não apenas ajudam a manter a vida mas que atuam de forma sensível sobre o mais viver.

Em tempos marcados por “uma redistribuição desigual da vulnerabilidade” (Mbembe&Sarr, 2019), a ecologia museal, isto é, a manutenção da vida dos museus, não está desvinculada da ecologia humana e social, ou seja, da manutenção da vida em geral. Como um aparato biopolítico, o museu tem, portanto, responsabilidade sobre a vida que vivemos e sobre como iremos sobre-viver à pandemia.

2) Luto pela matéria (economia)

Ao ler as notícias diárias sobre o COVID-19, tenho a sensação de que esta é a primeira pandemia em que se fala mais das perdas materiais e da crise econômica em vias de se agravar, do que da perda da vida humana, em seu sentido mais vulnerável e precário. Tal sensação me faz pensar sobre qual luto deve ser prioritário para os museus da pandemia. Estamos temendo mais pela vida ou pela vida após a morte?

Segundo a lógica do “fazer viver e deixar morrer” [3] , a crise nacional causada pelo coronavírus tem como ponto central de discussão (e de conflito político) a sobrevivência econômica e a sobrevivência das instituições que servem ao capitalismo ultraliberal. Entre estas últimas, se veem incluídos, em parte, os museus. Para sobreviverem às perdas econômicas mais imediatas, e de acordo com um projeto de Estado que vem flexibilizando leis trabalhistas (mesmo antes do COVID), muitos museus brasileiros recorreram a demissões em massa, à interrupção de projetos em andamento e à redução de salários de seus funcionários.

Como pesquisas recentes já vêm demonstrando, tal cenário atinge sobretudo os trabalhadores mais precarizados, os profissionais liberais, os terceirizados e os estagiários dos museus. É particularmente sensível neste momento, a demissão em massa de profissionais ligados aos setores educativos e de atendimento ao público nos espaços tradicionais – o que comprova uma compreensão equivocada por parte das instituições e seus gestores da complexidade da cadeia museológica que estrutura as funções básicas do museu.

Numa constatação talvez precoce, poderíamos especular que o COVID-19 provocou uma pandemia museal cujos efeitos necropolíticos já estavam aparecendo antes mesmo de o vírus se espalhar: a pandemia que se espalha por meio das novas relações de trabalho (temporárias, precarizadas, desiguais) que produz museus pouco preocupados com a vida humana mais imediata. Em sua maioria, no Brasil, ligados à soberania de um Estado que se exime da responsabilidade sobre sua manutenção, os museus se inserem com dificuldade na economia global, e como instituições da permanência e da manutenção da vida, lutam para se ajustar aos fluxos dos sistemas liberais. Tal dificuldade, e a crise atual sobre os modelos de gestão e sustentabilidade dos museus, não é nova e tampouco foi provocada pela pandemia do coronavírus.

No Brasil, começamos a ver os seus sintomas mais evidentes no momento do incêndio do primeiro museu aqui criado, o Museu Nacional do Rio de Janeiro, em setembro de 2018 [4] . Dali em diante, os museus brasileiros foram tomados por uma epidemia própria que infectou – talvez em sua totalidade – o setor museal. Enquanto se elaborava uma nova política de gestão que buscava eximir o Estado da sustentabilidade das suas instituições, a museologia se viu obrigada a re-pensar as suas bases e a provar, mais uma vez na história da disciplina, a sua relevância social. [5] 

A crise econômica, finalmente, nos leva a pensar alternativas aos modelos de gestão que vigoram na atualidade, e a considerar criticamente a relação dos museus com o capitalismo global – uma relação muito negligenciada pela museologia, e eu diria que até mesmo ignorada por teóricos da Nova Museologia no passado e por aqueles que estudam e discutem a Museologia Social no presente.

3) Luto pelos museus (museologia)

O capitalismo global e as novas formas de vulnerabilização do patrimônio mantido, sob grande ameaça neste século, como a parte perene dos Estados nacionais, provocou uma inflamação sistêmica do campo museal, agravada nos últimos anos e que vem corroendo a própria identidade dos museus no mundo contemporâneo.

A extensiva digitalização do patrimônio – cujas implicações éticas ainda estão por se discutir – e a noção de uma hipercultura irrestritamente compartilhada e supostamente acessível a todos fazem da ideia de “museu virtual” ou “cibermuseu” um trunfo para a re-existência dos museus na Contemporaneidade e, mais recentemente, o antídoto a uma crise de identidade e de funcionalidade que se agravou com a pandemia.

Os museus, que já vinham sendo definidos como “polifônicos”, “transparentes” e “democratizantes” [6] se veem obrigados a constatar que mesmo em sua versão cibernética não deixam de estar atrelados à desigualdade social do acesso à informação, e a uma reprodução de modelos comunicacionais nem sempre didáticos e que continuam a reproduzir as exclusões ainda presentes nas instituições tradicionais.

Quem pode visitar museus na internet durante a pandemia? Quem esses museus consideram o seu público? Que papel eles têm desempenhado para a sociedade pandêmica? Para aqueles que fazem e pensam os museus na atualidade, não se colocar tais perguntas significa deixar de reconhecer qualquer tipo de “papel social” que os museus e a museologia podem exercer no momento pandêmico.

Isto porque todos os que possuem condições materiais de se manter em isolamento precisam reconhecer que os museus são espaços do encontro entre experiências, onde a vida e os corpos físicos que constituem o patrimônio humano são celebrados na sua existência coletiva. Logo, se os museus são lugares relacionais, a experiência virtual ou ciber constitui apenas uma experiência possível, limitada drasticamente pelas telas planas que neste momento se tornaram uma extensão das paredes dos nossos confinamentos. Elas não comportam todas as formas de interação que os museus, em sua pluralidade e diversidade, podem propiciar.

Mais ainda, a crise de identidade pela qual atravessam os museus está ligada à uma crise de sua credibilidade – e credibilidade nas ciências, diante de um cenário mundial de ascensão do negacionismo e de teorias conspiratórias para explicar fatos e situações extremas com respostas simples, ou simplórias. Tal cenário aponta para um desafio limítrofe dos museus, que é o de se provarem como instituições de pesquisa e produção de conhecimento que precisam ser mantidas dada a sua relevância para as sociedades que dependem da ciência para sobreviver.

Como instituições científicas que produzem conteúdos socialmente relevantes, os museus não podem limitar a sua existência ao ciberespaço, mesmo em tempos de pandemia. A demissão de funcionários ligados a funções fundamentais dessas instituições em um momento de crise social e política constitui uma irresponsabilidade pela qual ainda iremos pagar um preço (talvez mais alto do que o que vem sendo cobrado agora). Ao assumirem socialmente que são menos relevantes alguns funcionários em detrimento de outros, em vez de buscarem os meios para mantê-los, os museus abrem mão de parte das suas funções basilares, descritas na teoria como as de preservar, pesquisar e comunicar.

A ideia ilusória que vem sendo propagada por algumas instituições, de que os museus podem existir solenemente transferindo as suas funções para o ciberespaço, negligencia todas as diversas e complexas etapas da musealização que permitem a um museu ter um site, ou produzir postagens em uma rede social. O problema central passa pelo entendimento do papel e da função dos museus em sociedades que testemunham a precarização dos meios de transmissão da cultura e do patrimônio como parte de um projeto político de valorização do presente mais imediato em detrimento das vivências passadas.

Os museus e a museologia, portanto, têm responsabilidade sobre o viver no mundo pandêmico, antes mesmo de o COVID-19 existir. O que dizem os museus pandêmicos sobre os trabalhadores que hoje passam fome? Sobre os indígenas que não têm terra para enterrar seus mortos? Sobre os habitantes de museus comunitários nas periferias que viraram entregadores de delivery mascarados, suprimindo suas causas identitárias para sobreviverem à pandemia dos museus?

Diante do luto pela vida e do luto pela matéria, só podemos nos dar ao luxo de especular sobre a crise crônica dos museus, a qual viemos nos referindo, no cenário atual e no pós-pandêmico. Na pior das hipóteses, veremos o dispositivo biopolítico ser completamente absorvido pelo mercado global, sistematizando a precariedade dos seus trabalhadores ao mesmo tempo em que terceirizando para as grandes empresas a proteção do patrimônio público.

Na melhor das hipóteses, os museus, em seu papel de moldar memórias e transformar realidades, irão atuar sobre o nosso imaginário de forma a reconduzir a vida para além das dificuldades do presente. A museologia, neste caso, poderá ser interpretada como uma disciplina regenerativa – e ativa sobre a vida das pessoas –, restaurativa do viver, ainda que nem sempre curativa para as nossas doenças crônicas. Seu principal instrumento de trabalho, o museu, é um reflexo material de como as sociedades lidam com as reformulações do passado no presente. Mas a museologia só serve para fazer viver, quando atua pela valorização da própria vida, isto é, contra a necropolítica que produz a desigualdade do direito ao luto e no combate a doenças que atingem não apenas a vida individual, mas também o mais viver em sociedade.


[1] Professor de Museologia do Departamento de Estudos e Processos Museológicos – DEPM da UNIRIO e do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio – PPG-PMUS (UNIRIO/MAST). Presidente do Comitê Internacional de Museologia – ICOFOM.

[2] “Le muséepeuttuer ou... fairevivre”, no original em francês (tradução nossa). Cf. Varine-Bohan, 1979.

[3] Sobre a soberania dos Estados modernos, Foucault identifica uma mudança do “fazer morrer e deixar viver” que assegurava o poder do soberano, para uma soberania baseada no poder de “fazer viver e deixar morrer” dos Estados nacionais após o século XIX. Cf. Foucault, 1999 [1977-78].

[4] Poderíamos observar os seus efeitos já nos anos anteriores, como quando o governo de Michel Temer propôs a extinção do Ministério da Cultura em 2016, provocando a reação da sociedade civil em defesa do setor no movimento Ocupa MinC.

[5] Exemplos de movimentos do setor museológico, neste contexto, incluem as mobilizações em torno do Museu Nacional por seus funcionários e por parte da sociedade civil, e o movimento estudantil Museu para Todos, iniciado em 2018 por alunos dos cursos de Museologia no Brasil. Esses movimentos têm em comum exigirem que o Estado brasileiro assegure economicamente a sobrevivência dos museus.

[6] Termos utilizados na proposta de nova definição de “museu”, proposta pelo ICOM em julho de 2019 para ser aprovada pela comunidade museal (ICOM, 2019).


Referências

  • BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
  • DEBARY, Octave. La finduCreusot ou L’art d’accommoderles restes.Paris: CTHS, 2002.
  • FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999 [1977-78].
  • ICOM website (2019). ICOM announces the alternative museum definition that will be subject to a vote. Disponível em: https://icom.museum/en/news/icom-announces-the-alternative-museum-definition-that-will-be-subject-to-a-vote/.
  • MBEMBE, Achille & SARR, Felwine. Politiques de temps. Paris: Philippe Rey, 2019.
  • VARINE-BOHAN, Hugues de.Le musée peut tuer ou… faire vivre. Technique et architecture, septembre 1979, no 326, p. 82-83.

 

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