Anelise Pacheco [i]
Se para o historiador Eric Hobsbawn o século XIX só terminou depois da Primeira Guerra Mundial, para a historiadora Lilia Schwarcz a pandemia do Covid-19 marca o final do século XX, que foi o século da tecnologia. Segundo ela “nós tivemos um grande desenvolvimento tecnológico, mas agora a pandemia mostra esses limites.” [1] Para alguns futuristas internacionais, a pandemia que vivemos antecipa mudanças que já estavam em curso como o trabalho remoto, a educação à distância, a busca por sustentabilidade e a cobrança por parte da sociedade que as empresas sejam socialmente mais responsáveis. Outros valores menos perceptíveis como o fortalecimento da solidariedade e empatia, e o questionamento de um modelo de sociedade baseado no consumismo e no lucro a qualquer custo parecem ganhar força com essa revisão de valores provocada pela pandemia. Mas quais as consequências desta quebra de paradigma para o mundo da cultura, e, em especial, para o mundo dos museus?
Analisaremos agora como os “gabinetes de curiosidades” do século XIX se transformaram no século XX em espaços que prescindem de acervo, e, às vezes, até mesmo de existir fisicamente.
Até a década de 80, os artistas, de maneira geral, enxergavam o museu como algo do passado, que pouco tinha a contribuir para a dinâmica do movimento artístico. O artista Filippo Tommaso, em 1909, faz a apologia da destruição dos museus, das bibliotecas e de todo e qualquer tipo de academia. Os museus eram, para ele, como os cemitérios, uma espécie de dormitório público onde se deita para sempre ao lado de seres conhecidos ou odiados. Ele enfatizava a importância do amor ao perigo, da coragem, da audácia e da revolta. Exaltava uma ação progressiva, uma insônia febril, e glorificava a guerra como única possibilidade de higiene do mundo. Corbusier, em 1925, ressalta a impossibilidade dos museus espelharem a totalidade da vida e, por isso, os considerava parciais. Picasso diz, em 1935, que os museus são um bando de mentiras e que as pessoas ganham dinheiro com arte são, para ele, na maioria das vezes impostores. [2]
Marcel Duchamp afirma, em 1967, que os quadros, assim como os homens, são mortais. Para ele, a história da arte é o que permanece de uma época em um museu. Contudo, ele ressalta que nem sempre esta história reflete o melhor da época. E acrescenta que algumas vezes expressa basicamente a mediocridade de uma época. [3]
Allan Kaprow, em 1967, diz que o contexto ambiental da obra de arte é mais importante do que suas formas específicas. Segundo ele, o espírito e o corpo de nossa arte estão nas telas de TV e nas pílulas das vitaminas. Os museus deveriam ser transformados, no seu ponto de vista, em discotecas ou piscinas, ou esvaziados e deixados como uma escultura ambiental. [4]
Também em 1967, Robert Smithson vê o museu como um entretenimento especializado, pois o percebe cada vez mais parecido com uma discoteca e menos com o aspecto da arte. Segundo ele, o vazio poderia ser definido como a instalação da arte de sua época. [5]
A partir da década de 80, vemos todo um movimento se produzindo em torno da revalorização dos museus, por parte dos artistas, e sua crescente apropriação pelo mercado. Donald Judd, em 1982, define a arte como a desculpa para o prédio que a abriga e diz que toda cidade tem que ter um museu, assim como tinha de ter uma catedral no passado. Hans Haacke, em 1983, denuncia que os museus estão cada vez mais envolvidos com o mercado imobiliário. Os modismos gerados em torno dos bairros do Soho, de Nova York, e depois no Lower East Side, no sentido de forçar e promover a abertura de galerias de arte, escondiam, segundo ele, o interesse em valorizar o preço dos imóveis destes locais, cujos donos eram em grande parte curadores ou trabalhavam nos grandes museus. [6]
Mesmo o PS1, escola pública ocupada por artistas para realizarem suas instalações na década de 60, que sintetizava o próprio movimento de vanguarda e cujo intuito era provocar críticas às instituições culturais, não conseguiu resistir ao final do século XX. Desativado já há algum tempo, foi comprado em 2000 pelo MoMa para ser transformado em um anexo do museu.
Segundo Hans Haacke, cidades como Kassel e Bilbao apoiam eventos de arte, como a Documenta de Kassel ou constroem museus-espetáculos como o Guggenheim de Bilbao, apenas por interesse econômico e como estratégia para fomentar o turismo e atrair investimentos para cidades, que estariam, a princípio, fora de qualquer circuito de arte. Para ele, os interesses são sempre políticos ou financeiros. E dá o exemplo do colecionador Peter Ludwig, que adquiriu uma grande coleção de arte soviética com o objetivo de abrir o mercado soviético para a sua fábrica de chocolate. [7]
Não obstante, é inegável o fato de que as novas tecnologias foram capazes de dar voz para uma diversidade de povos, crenças, costumes e ideologias. Como por exemplo o Muquifo, museu dos quilombos e favelas na cidade de Belo Horizonte, o Museu da Pessoa em São Paulo, o Museu da Maré no Rio de Janeiro e o Museu da Diversidade Sexual em São Paulo, entre outros.
Já o Museu do Amanhã, por sua vez, inaugurado em 2015 pela Prefeitura do Rio em parceria com a Fundação Roberto Marinho, pode ser considerado como exemplo do ápice do paradigma da tecnologia a serviço do homem. Com uma arquitetura majestosa de Santiago Calatrava, foi um dos primeiros museus a serem criados com o intuito de não possuir acervo e ser completamente virtual. Criado para explorar os desafios e oportunidades que a humanidade teria que lidar nas próximas décadas, o Museu do Amanhã, todavia, foi o primeiro museu a ter que desligar os seus módulos interativos com o anúncio da pandemia.
A reclusão forçada pela pandemia provocou uma mudança drástica no comportamento da sociedade, em particular, na diminuição forçada do número de selfies e em um esvaziamento forçado da síndrome de FOMO(Fear of Missing Out). Talvez todos os nossos sentidos como visão, olfato, paladar, tato e audição tenham que ser revistos após esta pandemia. A Terceira Guerra Mundial chegou de forma invisível e mutante. O inimigo não é mais um elemento químico criado pelo homem para a destruição em massa, mas um vírus biológico, invisível e de natureza mutante.
A saída imediata para esta freada brusca tecnológica foi fazer uso das ferramentas digitais de comunicação para proporcionar visitas virtuais a coleções e a base de dados, buscando promover interações entre o público e as coleções dos museus e instituições culturais. Como resposta ao isolamento social, os artistas e produtores culturais passaram a apostar em shows e espetáculos online.
Todavia, estas ferramentas funcionam via de regra como suporte e complemento para acervos de museu. Apesar da arte eletrônica ser já um campo consagrado e estabelecido, ela nunca deixará de ser um nicho dentro das artes de uma maneira geral. E a tendência para o uso excessivo destas ferramentas é atingir um ponto de saturação e esgotamento. Pois essa overdose de lives que assistimos e os tours virtuais que nos são propostos se assemelham mais aos gabinetes de curiosidade do século 19, quando a “construção disciplinarizante da visualidade resultava em uma experiência misturada a sensações de cansaço de vertigem.” [8]
Se de fato saímos do século XX, não podemos mais nos balizar por polaridades válidas e existentes até então como: real x virtual; verdadeiro x falso; local x global; natureza x cultura, indivíduo x multidão. E devemos nos perguntar que tipos de experiências farão sentido para os indivíduos a partir de agora? E de que forma as novas histórias que os indivíduos querem ouvir deverão ser contadas? A partir destas perguntas poderemos ter uma pista do tipo de experiência que os museus deverão investir daqui por diante. E da nova cara que a cultura irá se desvelar para nós neste novo século.
[i] diretora do MAST.
[1] El País, 13 de abril de 2020.
[2] McShine, K; The Museum as Muse, Nova York: The Museum of Modern Art New York, 1999, p. 200.
[3] McShine, K., op. cit., p.212.
[4] McShine, K., op. cit., p.213.
[5] McShine, K., op cit., p. 230.
[6] McShine, K, op cit., p. 233.
[7] McShine, K, op cit, p.234.
[8] Folha de São Paulo, Nathalia Lavigne, 17 de abril de 2020.
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