Adler Homero Fonseca de Castro [1]
Nos Estados Unidos, todos os anos, mais de um milhão de visitantes vai ao National Archives, o Arquivo Nacional dos Estados Unidos, em Washington, lá aguardam em longas filhas para ver a declaração da Independência do País, escrita em 1776. Tal documento, de imensa importância histórica para o país, sempre esteve em exposição, sendo que, nos seus primeiros cem anos de existência, sem condições adequadas de exibição. Excesso de luz e outros fatores fizeram com que o documento se encontre praticamente ilegível nos dias de hoje, os visitantes precisam se curvar sobre a vitrine para tentar perceber o que está escrito nele.
O interesse dos visitantes do National Archives pode parecer estranho: o texto da declaração da Independência pode ser facilmente encontrado em livros didáticos, obras de divulgação e na internet. De fato, uma pesquisa o Google encontrou nada menos do que 199.000 sítios que contém seu texto completo. Além disso, ela foi copiada em fac-símile em 1820, quando foi constatado que o original já estava fragilizado – uma dessas cópias impressas da declaração, de 1824, foi vendida em 2019 em leilão, por 975.000 dólares. No caso, o importante é notar que esses fac-símiles, hoje em dia, são bem mais legíveis que o original e podem ser facilmente reproduzidos usando métodos modernos, gerando cópias virtualmente indistinguíveis do original em seu melhor momento. Dessa forma, aparentemente, não haveria motivos para um visitante perder seu tempo em uma fila para ver um documento muito apagado.
Reprodução impressa da declaração da Independência dos EUA feita em 1824.
Essa questão levanta um ponto que é relevante na museologia moderna, sobre a preservação dos objetos. Há profissionais de renome na área que defendem que todos os artefatos preservados em museus têm uma vida útil, um dia vão acabar. Como consequência disso, a prioridade dos museus não deveria estar na preservação, mas sim na divulgação e ação educativa. Não pretendemos entrar nessa discussão sobre a prioridade da questão da preservação, ela é muito complexa. No entanto, podemos dizer que o tema ignora um fator importante, bem ilustrado na visitas à declaração da Independência dos EUA: existe um fetiche, talvez irracional, em torno do fator de originalidade e antiguidade de uma coisa que é “testemunha” da história.
O fetiche por um objeto original justifica que em feirinhas de bairro, se vendam objetos “antigos”, sem utilidade ou valor material real, como uma antiga máquina de costura ou um ferro de passar roupa aquecido a carvão, quando se pode adquirir produtos atuais, que efetivamente podem ser usados ou até mesmo réplicas modernas exatas dessas “antiguidades”. Isso porque o objeto antigo nos permite estabelecer relações sentimentais com o passado, o que não pode ser feito com uma reprodução moderna ou com um objeto cujo valor esteja somente em sua utilidade para executar uma tarefa. A apreciação pelo passado e pela autenticidade é uma característica humana, da qual os museus se valem para atrair e cativar visitantes, que, de outra forma, teriam várias outras opções para obterem “educação, estudo ou deleite”, nos termos da definição de museu do ICOM.
É um fator bem conhecido para todos os profissionais da área de museus, de todos os tipos. Entretanto, implica em um problema real, que é como os museus podem ser atraentes para o público em geral se uma parcela desse mesmo público não pode ir até a instituição? É uma pergunta importante, que sempre existiu na realidade das instituições museológicas, mas que, na situação atual, de uma pandemia, a do COVID-19, se acentuou. Afinal, com os museus fechados, até a comunidade mais próxima da instituição museológica se viu impedida de visitá-la, a fim de se reduzirem os riscos de contaminação.
Aviso de fechamento de museu por causa da pandemia.
Como seria possível resolver esse problema? Em nossa opinião, a pandemia, por ser uma catástrofe de imensas dimensões, nos obriga a repensar o papel dos museus e seu funcionamento. Durante a epidemia, em circunstâncias de crescimento do número de pessoas afetadas, é evidente que o modelo usual de visita presencial é inviável, seria uma imensa irresponsabilidade dos administradores das instituições forçarem a abertura delas, aumentando o risco de proliferação da doença. Só que, como escrevemos, um dos problemas criados pela pandemia já existia antes e continuará a existir depois de seu fim: como dar acesso aos museus para aqueles que não tem condição de ir até eles?
A Revista Museu, em números anteriores, já abordou a questão, como quando dedicou uma edição para tratar de Museus Hiperconectados: Novas abordagens, novos públicos. E cremos que agora, com a crise do COVID-19, é o momento ideal para que as instituições museológicas voltem a pensar o assunto, o que deve ser feito o quanto antes. Há iniciativas, como o Google Arts & Culture, que disponibiliza mais de 2.500 museus para visitas virtuais. Além disso, outras organizações museológicas têm programas próprios, disponibilizados na internet para visitas virtuais.
No entanto, poucas dessas instituições investiram na contratação de pessoal ou empresas especializadas em transformar o conteúdo tradicional de uma visita em uma experiência adequada ao meio virtual. Esse é um aspecto que, mesmo que ignorado, continua vital, pois a mensagem precisa, necessariamente, que se adequar ao meio. Dessa forma, um artigo colocou que uma pessoa “que entra pela primeira vez em um museu pelo Google Arts & Culture, possivelmente vai se entediar e sair zonzo nos primeiros minutos” [2]. Uma opinião com a qual concordamos, devido à inadequação da ferramenta de exposição para uma proposta de exposição virtual: a pessoa “passeia” por um museu usando a tecnologia do Google Street View, que reproduz, de forma descompassada, os movimentos de uma pessoa no circuito de visitação.
Sendo assim, cremos que o momento atual de crise é uma oportunidade para reflexão sobre o futuro dos museus: o que é preciso para lidar com a questão de difusão do conteúdo específico de cada instituição para as pessoas que não possuem condições de visitá-la? Como manter um registro perene das atividades executadas em uma instituição cultural, já que a forma tradicional é efêmera? De que maneira atrair visitantes – virtuais e presenciais – para as instituições? Finalmente, de que jeito poderemos atingir plenamente os objetivos da definição de museu do ICOM, de uma instituição que eduque, permita o estudo e a diversão de seus usuários?
A internet abriu possibilidades para resolver, de forma relativamente simples e barata, todas essas questões. Na verdade, vai muito mais além, pois permite resolver problemas que sempre afligiram os museus: quando trabalhei no Museu Histórico Nacional, a diretora sempre alertava contra os riscos dos textos da exposição, não deveriam ser longos, para não se tornarem “livros em pé”. Um risco real, pois textos extensos são enfadonhos e, normalmente, o visitante normal não os lê. Contudo, o trabalho dos profissionais de museologia produz uma imensa quantidade de informações, que não pode ser repassada em textos curtos – é uma contradição. Mas é uma contradição se pensarmos apenas no formato tradicional de exposição. Em uma exibição virtual é possível dar acesso opcional a diferentes níveis de informação, de um mais resumido até um que contemple o conteúdo completo sobre as pesquisas que embasaram a escolha dos objetos, permitindo que o visitante escolher o que deseja conhecer. Além disso, o formato permite usar ferramentas de realidade aumentada ou interativas, assim como outros recursos museográficos que estão além das possibilidades de uma exposição física. Tudo isso pode ficar armazenado na internet de forma permanente, podendo ser recuperado e estudado a qualquer momento, por qualquer pessoa.
Essas possibilidades não implicam que o formato tradicional de exposições tenha se esgotado e deva ser abandonado – se fôssemos perguntados sobre isso, nossa resposta seria um enfático não. E isso não é uma opinião meramente pessoal, basta ver a reação das pessoas que formam filas para ver a declaração de independência dos EUA. A questão da apreciação da realidade tangível, do valor histórico do objeto real, da antiguidade das coisas, ainda existe e não vemos que vá se alterar em um futuro próximo. De fato, se mudar, os próprios museus perderão sua razão de ser, pois uma reprodução de uma pintura poderá atender tão bem os desejos das pessoas quanto ir ver o objeto em um circuito de exposições. Entretanto, cremos ser necessário começar a discutir o futuro das instituições museológicas em face a uma mudança de paradigma tecnológico que já ocorreu, não é uma coisa de um futuro mais ou menos distante, uma necessidade que a crise do COVID-19, ao nos afastar das visitas presenciais, deixou evidente. Entretanto, essa discussão tem que ser a mais ampla o possível, implicando na formação de novos tipos de profissionais, bem como mudanças na formação acadêmica dos profissionais de museologia, já levando em consideração os novos problemas e possibilidades da atualidade.
[1] Historiador, doutor em história, pesquisador do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e conselheiro do Museu de Armas Históricas Ferreira da Cunha. Foi pesquisador do Museu Histórico Nacional e curador do Museu Militar Conde de Linhares.
[2] LAVIGNE, Natália. Visitas virtuais e overdose de lives causam cansaço e vertigem. Folha de São Paulo, caderno Ilustrada, Sexta feira, 17 de abril de 2020. p. B16.
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