Ana Virginia Pinheiro [1]
A proposta original deste ensaio tinha como finalidade discernir sobre as complexas disparidades que se estabelecem, conscientemente ou não, nos museus e nas bibliotecas (aqui, abordadas sob um de seus perfis – o de museus do livro), especificamente, nas relações com seus visitantes e usuários.
Essas disparidades, associadas teoricamente às condições financeiras de diferentes parcelas da população, ocasionam competências diversificadas que delineiam uma espécie de gráfico social cujos limites são o ótimo e inexistente acesso a produtos e serviços. Por sua vez, esses produtos e serviços são produzidos e prestados sob o discurso de atender a direitos igualitários.
Em princípio, essas disparidades se fomentam em contextos que relevam etnia, gênero, identidade sexual, capacidade física, religião, orientação política, poder aquisitivo e outras abordagens que a própria sociedade constrói e desconstrói.
Surpreendentemente, a COVID-19, enquanto ameaça, coloca as pessoas em situação igualitária – o vírus não é seletivo. A disparidade começa a se impor, num período muito breve, definido pela capacidade que cada um tem de se proteger; e, num momento imediatamente seguinte, nos recursos que cada um terá para se manter.
Mas, não. Não será essa abordagem deste ensaio. Será relevada, aqui, uma outra e inovadora forma de disparidade, produto das circunstâncias inéditas da pandemia que ora se vivencia, associado ao fortalecimento daquelas disparidades, potencializando muito mais suas antigas restrições que suas recentes conquistas. A limitação de trânsito imposta às populações, sob o argumento de controle da pandemia, obrigando-as ao resgate de recursos e competências materiais e intelectuais pré-existentes (ou não), formalizam novos grupos socialmente vulneráveis, independentemente de seu poder aquisitivo – os que têm e o que não têm acesso aos diferentes estágios de tecnologia, oferecidos (ou não) por museus e bibliotecas, desde antes da pandemia.
Qual o papel, nesse momento de tantas dúvidas, dos museus e das bibliotecas, concentrados em ações que objetivam manter em casa o maior número de pessoas, de quaisquer idades, por conta do risco de contaminação? Qual o potencial de enfrentamento remoto dessas instituições, considerando que as obras que salvaguardam e que expunham presencialmente a visitantes e usuários dependem, pelo menos em dado momento, do toque para a apreensão de texturas, do olhar próximo para obter o sentido mais exato de proporção, da justaposição de corpos para alcançar a noção de tridimensionalidade?
Talvez, a pergunta correta seria: o que já fizeram os museus e as bibliotecas para garantir o acesso e promover a satisfação em circunstâncias potenciais de exceção?
Cabe, ainda, uma segunda pergunta: a disseminação e a preservação da cultura, gerenciadas por essas instituições, correm riscos diante de uma eventual falta de planejamento para situações de exceção?
A palavra exceção define, agora, uma situação de emergência, que é mundial e plena de incertezas de sucesso e da certeza de perdas lamentáveis.
A verdade é que não se sabe exatamente o que fazer. Todas as iniciativas são tentativas de erro e acerto, porque o que é possível fazer está alicerçado em experiências anteriores em que preponderavam ideias de um futuro “regular”.
Pois bem, não existem visitas virtuais a museus, agora, que não tenham sido planejadas em outras circunstâncias, sob critérios determinados e para outros fins, que não uma pandemia.
Não existe acesso digital a livros em bibliotecas, agora, que não tenha sido planejado em outras circunstâncias, sob critérios que tinham relevância e fins específicos, que não uma pandemia.
Museus e bibliotecas, historicamente, são alvos dessas situações de exceção e lutam para garantir o bem social – aqui, entendido, como o direito de acesso igualitário.
É importante esclarecer: existem pessoas capazes de se deslocarem para museus e bibliotecas próximos e distantes e de, ao mesmo tempo, serem incapazes desse cometimento de modo digital – ou por falta de recursos financeiros e técnicos, ou por falta de interesse pelo que não lhe permite exercitar integralmente suas sensibilidades.
A pandemia potencializou essa incapacidade, transformando-a em uma forma cruel de diversidade, dividindo as pessoas entre aquelas que têm e as que não têm determinada informação. O direito à informação está previsto na “Declaração Universal dos Direitos Humanos” e vem se configurando no mundo como inalienável (direito do qual a pessoa não pode ser privada), isto é, desde que não afete outros direitos fundamentais.
Esse direito tem três fundamentos: “o direito do indivíduo de se informar (liberdade de buscar e obter a informação, sem que haja qualquer tipo de censura); o direito de informar (liberdade de transmitir ou comunicar informação); e o direito de ser informado” (NUNES, 2011).
Esses fundamentos alicerçam, por exemplo, a luta contra diferentes formas de censura e de desinformação. Essas práticas, que ao longo de séculos funcionaram como meios de controle e de manipulação de opiniões, com a pandemia, assumem caráter quase incontrolável. Resta aos museus e às bibliotecas o empenho para preservação do estado da arte da informação antes, para promover sua difusão depois da pandemia.
Esse empenho envolve a interação com o acervo e solidariedade entre os profissionais de informação comprometidos com essa ação de preservação.
A história do livro e das bibliotecas tem ótimos testemunhos desse empenho; por exemplo: a censura chegou oficialmente ao Brasil-Colônia com a publicação do Index Librorum Prohibitorum, (1551) em Lisboa – o livro raríssimo e dele só se conhecem dois exemplares: um na Biblioteca de Évora (ANSELMO, 1926, ref. 640) e outro na Biblioteca Nacional brasileira, proveniente da Real Bibliotheca portuguesa, adquirida por compra pelo Império brasileiro em 1825 (PINHEIRO, 2001, p. 244). Pois bem, na lista dos livros proibidos, consta a informação “todos os livros de Martinho Lutero” – o inquisidor sequer se deu ao trabalho de listá-los. Na Biblioteca Nacional, os exemplares de edições preciosas da obra de Lutero sobreviveram porque não foram expostos ao conhecimento público. Foram, literalmente, “descatalogados” para que não fossem submetidos a qualquer tipo de expurgo, ao longo dos anos. Assim como no Brasil, “bibliotecas de todo o mundo acumularam silenciosamente o que conseguiram salvar da mão que lança à chama aquilo que não se quer que leia” (PINHEIRO, 2017, p. 5). Só por ocasião das comemorações dos 500 anos das 95 teses de Lutero, em 2017, que os exemplares existentes e identificáveis no acervo da Biblioteca Nacional foram restaurados, digitalizados e disponibilizados para consulta.
A censura, naquela época, agia “em nome de Deus” e da "Infalibilidade" da Igreja. Uma obra censurada depois de impressa, comumente, era recolhida e destruída. No entanto, dependendo do prestígio dos envolvidos “se expurgaram, eliminaram as passagens conflitantes com os critérios da época” (PINHEIRO, 1989, p. 58). Essa obra “expurgada” poderia circular em circunstâncias excepcionais.
Há casos de livros proibidos donec corrigantur, isto é, até que as passagens minuciosamente registradas pelo Index fossem rasuradas, inviabilizando sua leitura (BUONOCORE, 1952, p. 108). Depois da rasura, escrevia-se na página de rosto do livro a indicação da censura: Non prohibetur – abreviação do aforismo jurídico Permittitur quod non prohibetur (“É permitido o que não está proibido”). Essa rasura era feita por bibliotecários responsáveis pelo item censurado, resultava da escolha entre a rasura ou o fogo.
Em períodos mais recentes, de dolorosa memória, livros foram censurados, proibidos de circular. Como era comum em todas as épocas de exceção, “artistas e intelectuais de todas as áreas foram exilados, presos ou mortos, e suas obras, escritos literários ou científicos, relegados ao esquecimento [..]” (FLORIÊNSKI, 2012, p. 9).
Na Biblioteca Nacional, por conta de Lei do Depósito Legal que à época vigorava (BRASIL, 1907), se promovia a “descatalogação” desse livros, isto é, sua localização de forma não localizável, condenando os livros (em princípio, temporariamente), ao anonimato – este é um dos motivos das notícias que muito repercutem sobre ‘descobertas” de tesouros em bibliotecas e em outras unidades de informação.“Descatalogar” era um recurso de efetiva preservação do continente e do conteúdo dos livros. Esse comportamento dos bibliotecários pode ser justificado na citação de Paulo Freire (apud GERMANO, 2018, p. 25), recuperada no do texto extraordinário sobre “Educação em tempos de exceção” do Professor titular aposentado e Emérito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte José Willington Germano: “Em tempo algum pude ser um observador ‘acinzentadamente’ imparcial, o que, porém, jamais me afastou de uma posição rigorosamente ética [...]. O meu ponto de vista é o dos ‘condenados da Terra’, dos excluídos”.
Neste momento, prevalece uma situação que envolve a necessária preservação da informação– aquela informação prevista na Constituição Federal (BRASIL, 1988, Art. 220) e na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1996-2020) como um direito inquestionável. Falar de preservação da informação e reiterar seu poder de disseminação, porque informação preservada é informação divulgada equitativamente – em que há equidade, igualdade, equivalência. Mas, evidentemente, a pandemia inviabilizou a disseminação da informação nesses termos.
Então, qual é a saída?
Ora, não há ingenuidade nos processos que geram universos inventariados em museus e bibliotecas. O museólogo e o bibliotecário não são meros repetidores de normas, sem senso crítico, sem um posicionamento social sobre o significado de seu papel no jogo de xadrez da história.
A saída está na própria missão do museu e da biblioteca – fazer o bem social, sem ver a quem. O usuário desse bem não conhece seu benfeitor, porque o trabalho do museu e da biblioteca é anterior à sua demanda e não decorrente dela.
O museu e a biblioteca serão agora tão acessíveis, integral ou seletivamente, conforme foram planejados, formados e desenvolvidos.
O benfeitor (isto é, o museólogo, o bibliotecário e, consequentemente as instituições que representam) colhe, agora, os frutos que plantou.
Mas, qual o papel desses profissionais agora?Atender remotamente seus beneficiários, facilitando o uso e o acesso às estruturas sistêmicas que construíram, cientes de que os produtos e serviços oferecidos hoje pressupõem uma anterioridade de tarefas que se caracterizam como essenciais e que dependem de continuidade – fala-se, aqui, evidentemente,de interação continuada com os beneficiários. No âmbito da Biblioteconomia, trata-se do Serviço de Referência, prestado ao usuário presencial ou remoto.
A consideração das ideias ora apresentadas precisa de amplo debate para uma necessária revisão dos papéis sociais da Museologia e da Biblioteconomia, para incluir em suas missões o que antes era imponderável.
Nesse contexto, é oportuna a citação de trecho do discurso de Érico Veríssimo (1976), para formandos em Biblioteconomia nos anos de 1970, intitulado “O livro e bomba”, e que poderia ter sido dito ontem, se interpretarmos metaforicamente a palavra “bomba”:
Temos dentro de nós muito do homem primitivo, do animal de presa. Esse bárbaro que habita as cavernas de nosso inconsciente sobe com demasiada frequência à tona de nossa vida, e dita nossas palavras, dirige nossos gestos e pode um dia levar-nos a apertar o botão que desencadeará a guerra atômica, pois o bruto parece ter tendências suicidas. [...] O que eu, porém, desejo e espero é que, dentro de cada um de nós, o troglodita jamais domine o homem civilizado [...]. Creio que esta é a melhor mensagem que posso trazer a este grupo de estudantes que terminam seu curso de biblioteconomia e que hão de ser amanhã, por assim dizer, os municiadores dos legionários de boa vontade na sua luta contra a Besta e a Bomba.
[1] Bibliotecária (Fundação Biblioteca Nacional). Professora (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO).
Referências
- ANSELMO, António Joaquim. Bibliografia das obras impressas em Portugal no século XVI. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1926.
- BRASIL. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, 5 out. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 17 maio 2020.
- BRASIL. Decreto nº 1.825, de 20 de dezembro de 1907. Rio de Janeiro, 1907. Dispõe sobre a remessa de obras impressas à Bibliotheca Nacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/historicos/dpl/DPL1825-1907.htm. Acesso em: 17 maio 2020. Revogado pela Lei nº 10.994, de 2004.
- BUONOCORE, Domingo. Vocabulário bibliográfico. Santa Fé, Argentina: Librería y Editorial Castelví, 1952.
- DECLARAÇÃO Universal dos Direitos Humanos. [Paris]: United Nations Human Rights, Office of the High commissioner, 1996-2020. Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/UDHR/Pages/Language.aspx?LangID=por. Acesso em: 17 maio 2020.
“Artigo 19° Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de [...] procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão” (grifos nossos). - FLORIÊNSKI, Pável. A perspectiva inversa. Tradução de Neide Jallageas e Anastassia Bytsenko. São Paulo: Editora 34, 2012.
- GERMANO, José Willington. Educação em tempos de exceção. Revista Extensão & Sociedade – PROEX/UFRN, p. 25-32, 2018. Edição Especial Comemorativa dos 60 anos.
- INDEX LIBRORUM PROHIBITORUM. Este he o rol dos livros defesos por o Cardeal Iffante Inquisidor Geral nestes Reynos de Portugal. Foi impresso... em a muy nobre et sempre leal cidade de Lixboa: per Germam Galharde, a viij de Julho 1551.
- NUNES, Simone Lahorgue. Advogada defende o direito à informação. Comunicação Millenium, [S.l.], 13 out. 2011. Disponível em: https://www.institutomillenium.org.br/advogada-escreve-sobre-direito-informao/ Acesso em: 17 maio 2020.
- PINHEIRO, Ana Virginia. Da Real Bibliotheca à Biblioteca Nacional. In: PEREIRA, Paulo Roberto (org.). Brasiliana da Biblioteca Nacional: guia das fontes sobre o Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional: Nova Fronteira, 2001. p. 241-250.
- PINHEIRO, Ana Virginia. Lutero, 500 anos da Reforma [apresentação da curadoria da exposição comemorativa]. In: LUTERO, 500 anos da Reforma [guia da exposição]. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2017. p. 5.
- PINHEIRO, Ana Virginia. Que é livro raro? uma metodologia para o estabelecimento de critérios de raridade bibliográfica. Rio de Janeiro: Presença; Brasília: INL, 1989.
- VERÍSSIMO, Érico. O livro e a bomba [discurso numa formatura de bibliotecários]. Boletim da Biblioteca Pública Estadual, Porto Alegre, v. 3, n. 1, p. 7-9, 1976.
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