18 Maio 2021 - Dia Internacional dos Museus

Anelise Pacheco [i] 

Presenciamos em março de 2020, no Brasil, a entrada do mundo no século XXI devido ao advento da pandemia da Covid-19. Imersos na fragilidade e na impossibilidade de fazer valer qualquer previsibilidade, os indivíduos foram forçados a rever seus sistemas de valores. E, mais do que isso, tiveram que rever o próprio conceito de indivíduo. Faremos então, a seguir, uma breve reflexão sobre a constituição do indivíduo moderno.

Segundo Jean-Claude Guillebaud, nossas sociedades democráticas recusaram todo tipo de heteronomia. Elas queriam se fundar de maneira autônoma, ou seja, auto-instituindo-se ou auto-organizando-se. Ou melhor, elas concediam a cada membro a capacidade de escolher livremente, respeitando os limites da lei, os valores aos quais queriam aderir, os princípios morais que se reconheciam legítimos e as crenças que queriam assumir. A simples hipótese de um valor oriundo de fora, de cima, ou de cima, ou de outro lugar, era percebida como um atentado à vida de cada um.

A utopia moderna conjugou então o individualismo e autonomia, colocou o “eu” no centro do seu projeto e afrontou sem a ajuda de uma transcendência, sua própria incompletude. [1] Mas é justamente esta suposta fatalidade de heteronomia que as nossas sociedades democráticas recusam. Os indivíduos não querem renunciar à autonomia conquistada, mas precisam, ao mesmo tempo, viver em sociedade. Surge então em nossa sociedade o paradoxo de forças políticas com bases cada vez mais locais em um mundo estruturado por processos cada vez mais globais. Há, com isso, a produção de uma identidade de entrincheiramento no que se entende como conhecido contra a imprevisibilidade do desconhecido e do incontrolável. [2] 

Alexis de Tocqueville prevê que um dos principais perigos para as democracias futuras será a impossibilidade de proteger a liberdade de todos contra o individualismo de cada um:

“Gostaria de imaginar sob que novos traços o despotismo poderá se produzir no mundo. Vejo uma multidão de homens semelhantes e iguais que se voltam incessantemente para si mesmos à procura de pequenos prazeres que preencherão suas almas. Cada um separadamente será como um estrangeiro para o destino de todos os outros. E seus filhos e amigos formarão para ele toda a espécie humana.” [3] 

Podemos dizer que nenhuma sociedade antes da nossa tentou fazer com que convivessem individualidades que não se submetessem a nenhum absoluto e a nenhum dogma (mitológico, filosófico ou religioso) sobre a natureza do bem comum. E que nenhum grupo experimentou essa coabitação de liberdades diferentes, de crenças disparatadas, que chegam a ser quase microssoberanias.

Contudo, uma questão se impõe à medida que o individualismo avança é que não apenas a sociedade corre o risco de se desfazer em fragmentos, como o próprio individualismo acaba se voltando contra o indivíduo. “A liberação do eu fracassa ao se deparar com um muro invisível. Ao alcançarmos a vitória, ultrapassamos o estado de liberação para entrar no estado de solidão. [4]; e se a democracia do mercado foi construída em cima da valorização frenética do indivíduo, na realidade ela fez pouco caso da pessoa, pois não é mais o indivíduo que se torna útil ao assumir uma função produtiva, é a sociedade que lhe concede um emprego; o trabalho, mesmo pesado e mal pago, passa a ser visto como um privilégio.

É para dentro do grupo que olhamos agora. Uma nova dor se instaura. Não é mais a emancipação que reivindicamos. É a exclusão que tememos. Estamos menos apressados em combater as pressões sociais do que em impedir o deslocamento final das solidariedades. Procuramos menos a dissidência heroica do que a afiliação reconfortante. “O individualismo desejado do passado é substituído pelo individualismo submetido de hoje. Uma espécie de individualismo negativo, habitado pelo medo e pela desconfiança do outro. Não é mais um desejo de emancipação que exprimimos, mas um desejo de sociedade. [5] 

A fragilização do coletivo favoreceu, ao mesmo tempo, uma perda de confiança em si e nos outros e a consciência de fazer parte de um mundo instável errático, dominado por potências invisíveis e incontroláveis. A questão que vigorava na virada do século XX volta com toda força à cena: “Como constituir e manter uma sociedade?” Será que a tradição do liberalismo político, que privilegiou o indivíduo como sujeito de direito, pode continuar sem riscos a se afirmar como tal, independente de quaisquer pertencimentos a identidades coletivas e da pluralidade de sistemas de valor culturalmente induzidos? [6] Como devemos proceder para tornar o nós constitutivo do eu?

Já que os paradigmas pelos quais a sociedade foi balizada no século XX não valem mais, podemos nos perguntar então quem será este novo individuo que os museus irão considerar para montar suas exposições, desenvolver suas mediações e suas atividades educativas e estruturar os seus planos de negócios?

Faremos um retorno à Rousseau e teremos museus a céu aberto que façam odes à natureza? Ou será que os centros comunitários ocuparão o lugar dos museus para que a periferia e as minorias tenham voz e se sintam reconhecidas pela sociedade? As lives e os tours virtuais roubarão a cena e os prédios físicos com o acervo se transformarão em grandes reservas técnicas?

Mas será que não existe espaço para que uma identidade pessoal se forje em simbiose com uma identidade coletiva? E que os museus tenham como missão realizar a ressignificação do que seja a humanidade de cada indivíduo a partir de agora?

A minha aposta é que os museus serão capazes de recuperar a identidade coletiva da sociedade formada a partir de culturas compartilhadas pelos grupos, e reimaginar que seja possível forjar uma simbiose entra a nossa identidade pessoal com a identidade coletiva. Para com isso, resgatarmos a arte, a ciência, a cultura, e, principalmente, os indivíduos. Pois queremos saber o que nos tornamos como indivíduos do século XXI. E para tal é fundamental começar resgatando o conceito de humanidade.


[i] Bacharel em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1985), mestre em Ciência da Computação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1988), mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1994) e doutora em Comunicação e Sistemas de Pensamento pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1999). Foi Diretora do Museu da República de 1993 a 2003. Foi diretora do Museu de Astronomia e Ciências Afins de 2018 a fevereiro de 2021.
[1] Essa incompletude transposta do Teorema de Goëdel para as ciências humanas, nos diz que nenhuma coletividade é capaz de encontrar nela mesma aquilo que a funda.
[2] Castells, M.; La Société em réseaux, Paris: Fayard, 1998, p.80.
[3] Guillebaud, J. -C,; La Refondation du Monde, Paris: Seuil, 1999, p.230.
[4] Guillebaud, J.-C., ; La Refondation du Monde, Paris: Seuil, 1999, p.233.
[5] Idem, p.234.
[6] Renaut, A. e Mesure, S.; Alter Ego, Paris: Aubier, 1999, p.99.


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