Alejandra Saladino [i]
Artur Barcelos [ii]
Diante do desafio proposto pelo tema do ICOM a comemorar, neste ano de 2021, o Dia Internacional de Museus, decidimos aceitar, da forma mais radical que for possível neste momento de grandes mudanças e incertezas potencializadas pelo segundo ano da pandemia do SARS-COV-2, a provocação de pensar sobre o futuro dos museus. Assim, propomos apresentar os primeiros resultados de nossas inquietações e ilações compartilhadas na forma de um texto futurista, um ensaio sobre os desafios da musealização na era da digitalização da vida.
Para início, entendemos ser importante apresentar o lugar e a perspectiva da qual parte tal reflexão. Enquanto arqueólogo e museóloga de formação, professores e, em certa medida, ativistas da Arqueologia Pública voltados para a reflexão, a pesquisa e a ação sobre a preservação e socialização do patrimônio arqueológico, musealizado ou passível de musealização, partilhamos algumas premissas básicas, a saber:
- Arqueologia e Museologia são campos disciplinares da área das ciências humanas e sociais que, a despeito das pré-noções do senso comum e das práticas curatoriais sobre a cultura material (que, em certa medida, reduzem seus potenciais à geração, estudo e comunicação da herança cultural manifesta na materialidade das coisas), são projetivos, isto é, partindo do passado, miram para o futuro;
- Arqueologia e Museologia são disciplinas que criam sentidos, inventando acervos e narrativas e, portanto, exercem papel fundamental nos processos de patrimonialização;
- Arqueologia e Museologia, junto a outras disciplinas de diversas áreas, podem ser reunidas junto a estas no termo guarda-chuva de Ciências do Patrimônio [iii];
- na cibercultura, as pessoas têm outra forma de registro das memórias, nomeadamente, o registro digital, no qual a materialidade se esvai a olhos vistos;
- tal forma de registro apresenta desafios à gestão e comunicação das memórias decorrentes da velocidade na sua geração, bem como no volume sem precedentes mas, principalmente, pelo rompimento do monopólio da produção das memórias nas mãos de grupos e setores sociais específicos, visto que qualquer pessoa detentora dos artefatos básicos poderá participar ativamente desse fenômeno social;
- a digitalização da memória e da vida é acelerada e potencializada pela pandemia do SARS-COV-2 e compreendemos que tal processo é irreversível, a despeito do fim da mesma e o retorno às formas tradicionais de construir e registrar as memórias, onde a materialidade das coisas e do espaço se destacam.
Tendo em vista a inexorabilidade e aceleração da digitalização da vida, propomos um exercício de reflexão futurista, na forma da seguinte questão: como museólogas/os e arqueólogas/os, atuantes nos museus da metade do século XXI e trabalhando sobre o suporte das memórias digitalizadas, lidarão com os desafios relacionados à sua musealização?
Tal pergunta relaciona-se a outras: como a digitalização da vida impacta na construção das memórias? de que forma tais memórias poderiam ser tratadas na cadeia operatória da museologia, especialmente pelas atividades relacionadas à comunicação e fruição, enfim à socialização?
Isto posto, cabe salientar que nosso olhar ajusta o foco sobre área de interseção entre Arqueologia e Museologia, especificamente sobre a Musealização da Arqueologia. Avançamos em nosso percurso mal traçado com alguns marcos referenciais a nos guiar nesse esforço projetivo de pensar os processos curatoriais de ambas as disciplinas nos museus do futuro. O primeiro deles refere-se ao campo da Museologia, designadamente a relação entre musealidade e musealização. O segundo, às especificidades da Arqueologia, especialmente sobre o processo de atribuição de sentidos e valores às coisas relacionadas à condição humana.
A observação e reconhecimento do potencial valor patrimonial e comunicacional atribuído às coisas pode ser compreendido conforme a sua musealidade e, portanto, a sua ressignificação em musealia, os objetos de museu, aptos a serem tratados e transformados na cadeia operatória da Museologia, um complexo e articulado conjunto de ações de salvaguarda, pesquisa e comunicação, que produz narrativas.
Uma parte considerável do que se encontra atualmente em museus, tanto em exposição quanto nas reservas técnicas, provém de trabalhos arqueológicos. A Arqueologia é uma ciência que se dedica a estudar o ser humano em sua capacidade de produzir, utilizar, simbolizar, ressignificar e descartar artefatos. Essa ciência acaba por oferecer à sociedade uma série de interpretações sobre sociedades do passado e do presente através da análise de relação entre humanos, artefatos e meio-ambiente, tendo a cultura material como eixo para compreender fenômenos humanos em todos os aspectos possíveis. Neste sentido, a Arqueologia, assim como a História, a Antropologia, a Sociologia e a Museologia, para citar estas cinco áreas das ciências humanas, contribuem não apenas para a compreensão de como se constroem as identidades coletivas, mas também oferecem, ainda que não de forma intencional, elementos para que estas identidades sejam construídas. As sociedades, das mais diversas maneiras, se apropriam de parte dos conhecimentos que estas ciências produzem para estabelecer símbolos e ícones materiais e imateriais no complexo jogo de construções identitárias. Assim, cada vez que a Arqueologia revela um artefato, lhe dá relevância como dado de informação, lhe confere um lugar em uma determinada explicação ou interpretação, pode estar oferecendo um elemento que termine sendo apropriado como um bem patrimonial. Dentre milhares de bens arqueológicos, que são patrimônio cultural por força de Lei no Brasil, alguns acabam sendo selecionados para serem usados para muitos fins. E estes usos podem ser: converter um sítio arqueológico em local de visitação pública, criando ou reforçando laços entre uma sociedade imaginada do passado e uma sociedade atual; Expor artefatos em museus, selecionados para compor uma “narrativa” visual e material de determinado tema ao qual o museu se dedique; Criar as condições para que um lugar acabe sendo sinalizado por placas, roteiros e monumentos, que servem de marcadores históricos e, consequentemente, identitários de uma determinada sociedade.
Agora, devemos imaginar que essa característica da Arqueologia depende fundamentalmente de técnicas de prospecção, escavação, registros em campo (croquis, desenhos, fotos, vídeos, medições, etc.), análises, tratamento em laboratório, formas de conservação e restauro. Além disso, também depende das fontes bibliográficas (livros, artigos), documentais (diários, relatórios, fichas, planos) e visuais (fotos, vídeos, desenhos, croquis, perfis, etc.). Até pouco tempo atrás estas práticas de gerar dados era analógica.
Nas últimas décadas, as tecnologias digitais começaram a ser usadas em todas as etapas de uma pesquisa arqueológica. Há hoje milhares de livros e artigos em PDF disponíveis em sites da Internet; milhares de fotos e vídeos disponíveis em sites de Internet; vários satélites em órbita produzindo e disponibilizando imagens de lugares em alta definição; equipamentos como o LiDAR [iv] que permitem gerar imagens 3D de parcelas do solo que evidenciam a presença de estruturas mesmo entre selvas densas ou no subsolo; a possibilidade de qualquer membro de uma equipe arqueológica realizar registros em fotos e vídeos e visualizá-los imediatamente através de smartphones; a impressão em 3D de artefatos que tem auxiliado na análise de materiais e na exposição em museus; tecnologias que permitem exposições interativas em museus, quase dispensando a necessidade de artefatos; um avanço das tecnologias digitais entre as crianças e adolescentes e uma geração que já cresce aprendendo cada vez mais por meios digitais, o que implica uma mudança no campo da Educação.
Com base nesse avanço das tecnologias digitais podemos imaginar que, em algumas décadas, estarão mais desenvolvidas ainda. Byung-Chul Han (2021) assevera que vivemos em um tempo em que a relação com o tempo se alterou de tal forma que já não é importante reconstituir a narrativa que conduz à uma conclusão. Imagens são formas de conclusão. Resultam de um roteiro com início e meio, mas em geral, as pessoas estão contemplando apenas o resultado. Da mesma forma, o tempo da contemplação está em declínio: “As imagens hoje, são construídas de tal modo que não é mais possível fechar os olhos. Ocorre um contato imediato entre elas e o olho, que não permite nenhuma distância contemplativa.” (HAN, 2021:16)
Ao pensarmos em museus e materiais arqueológicos, na construção interpretativa do objeto desde o sítio arqueológico até a exposição ao público, não há como ignorar que os fenômenos da digitalização da vida como um todo irão afetar toda a cadeia que leva à conclusão, no sentido atribuído Han.
Como lidarão os arqueólogas/os e museólogas/os do futuro diante de um público gestado em uma sociedade que não distingue percursos explicativos e consome imagens como um dado descontextualizado à espera da próxima imagem?
É preciso franqueza e assumir que não temos sequer possíveis respostas provisórias. Entretanto, ao aceitar o desafio proposto pelo ICOM, compreendemos ser importante frisar que a questão vai muito além de discutir sobre a inexorável incorporação, por parte dos museus, dos meios e tecnologias da cibercultura nas ações que configuram a cadeia operatória da Museologia. Nos parece que a questão reside sobre a reflexão de como poderão e deverão ser os processos curatoriais gestados em ambas as disciplinas para dar conta dessa realidade que já é presente, essa outra forma de experienciar e de construir memórias, desnarrativizadas e desterritorializadas. Em suma, que tipo de narrativas será possível construir a partir da memória virtual, “um amontoado de lixo e de dados, um ‘depósito de tralhas’ (Paul Virilio), que está inteiramente entupido com todo o tipo possível de imagens e símbolos desgastados e mal adquiridos” (Han, 2021: 19-20) Como os museus do futuro poderão lidar com a Mnemósine desmemoriada e desterritorializada, gerada pela digitalização da vida?
[i] Museóloga e arqueóloga, professora associada do Departamento de Estudos e Processos Museológicos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e do Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural do Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
[ii] Historiador e arqueólogo, professor associado do Bacharelado em Arqueologia e do Programa de Pós-Graduação em Geografia PPGEO da Universidade Federal do Rio Grande FURG. Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
[iii] Ciências do Patrimônio: campo transdisciplinar constituído pelas ciências humanas e naturais, que contempla “aspectos físicos e materiais que dão suporte à Conservação-Restauração, mas também à gestão, registro, documentação e interpretação do patrimônio cultural” (GONÇALVES, 2019).
[iv] O LiDAR (acrônimo de Light Detection and Ranging) é um método de detecção de estruturas no solo e subsolo através de projeção de raios laser a partir de uma aeronave.
Referências
- GONÇALVES, W. de B. Ciência do Patrimônio. Associação Nacional de Pesquisa em Tecnologia e Ciência do Patrimônio. Disponível: http://lacicor.eba.ufmg.br/antecipa/ index.php/ciencia-do-patrimonio/. Acesso em: 20 out. 2019.
- HAN, Byung-Chul. Favor fechar os olhos. Em busca de um outro tempo. Petrópolis: Editora Vozes, 2021.
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