Dia Internacional dos Museus 2022

[1] 

Ana Mae Barbosa [i] 

Nós da África e da América Latina somos submetidos há mais de quinhentos anos à dominação cultural europeia e norte americana branca. No Brasil reagimos bravamente nos anos 1960, nos afirmamos culturalmente na redemocratização dos anos 80, mas os que dominam os museus só deram conta dos movimentos decolonizadores agora no século XXI. Ainda assim o discurso é mais convincente na escrita do que na prática. Dois intelectuais Latino Americanos foram muito importantes para nos conscientizar acerca dos modos pervasivos de colonização política e cultural: Paulo Freire e Anibal Quijano. Ambos escreveram obras essenciais quase ao mesmo tempo e no mesmo lugar, no Chile que abrigou os perseguidos das ditaduras latino-americanas, até o país cair também nas mãos de uma Ditadura Militar. A tese de Quijano, escrita no Chile em 1969 e publicada em artigos a partir de 1971 e por fim em livro em 1980 sob o título de Dominação e Cultura (Editora Mosca Azul) é um libelo contra as discriminatórias políticas culturais oficiais que pretendiam integrar as culturas não oficiais ou ditas marginais mas na realidade buscavam extingui-las.

Já Paulo Freire em Pedagogia do Oprimido também escrito no Chile quando ele estava nos primeiros anos de um exilio, que duraria 16 anos, apontou o problema da colonização cultural introjetada inconscientemente pelo colonizado o que Nora Merlin [2] vem chamando de “colonização inconsciente”, que vai além da colonização cognitiva e torna-se facilmente uma colonização emocional. A Pedagogia do Oprimido foi publicada em 1968 primeiramente em inglês As ideias decolonizadoras de Paulo Freire se originam no estudo das relações entre opressor e oprimido. A falta de consciência acerca da colonização leva ao desejo do colonizado oprimido ser opressor e ele assume esse papel de multiplicador da opressão assim que pode. Da mesma maneira, intelectuais dos países colonizadores inconscientemente assimilam as estratégias colonizadoras ancestrais e perpetuam as atitudes colonizadoras embora racionalmente as critique. É o exemplo do que fizeram com a Abordagem Triangular, na qual alguns europeus não conseguiram ver a influência de Paulo Freire e declararam ser cópia do DBAE americano. Tornaram essa acusação verossímil pelo fato de eu ter estudado nos Estados Unidos [3], mas essa interpretação não é verdadeira pois parte de uma análise parcial e não de análise abrangente e desinteressada. É obvio que somos produto de diferentes influências. As influências são escolhidas, depuradas, resultam em compostos híbridos; a dependência é sistêmica, manipulada e quase sempre têm força de lei, como a última reforma educacional do Brasil em 2016 (BNCC), que reduziu o ensino das Artes ao Fazer e a Apreciação. Depois de trinta anos de sucesso escolar com a Abordagem Triangular nunca oficializada pelos governos mas largamente praticada em todo o país, como foi comprovado no II Congresso Internacional Online entre Arte, Cultura e Educação: Reconexões da Abordagem Triangular no Ensino das Artes (UFG, 2021), as leis educacionais do Brasil voltam a falar de Apreciação em lugar de Leitura e excluem a Contextualização no ensino das Artes. Nesse Congresso do qual participaram mais de duas mil pessoas, Glacy Antunes de Oliveira, Annelise Nani da Fonseca, Ana Flávia Tavares de Melo, Fábio de Castilhos e Fernanda Pereira da Cunha e Ana Mae Barbosa, realizaram uma pesquisa respondida por 1009 participantes a qual demonstrou:

        1. 58% tinham graduação em Artes;
        2. 73,7% trabalhavam em ensino da Arte. Portanto, 24,35 de professores de Artes não tinham formação em Artes, quase um quarto dos professores de Artes pesquisados;
        3. 54,9% já utilizavam a Abordagem Triangular;
        4. Apenas 184 pessoas não conheciam até então a Abordagem Triangular, portanto 826 a conheciam. [4]

Portanto, a Abordagem Triangular é de domínio de quase todos os professores de Artes, que têm formação em Artes no Brasil, apesar da campanha para sua destruição por parte dos colonizadores e dos brasileiros que atuam em suas universidades como filiais empobrecidas de Universidades estrangeiras.

Destruir a história do colonizado é o caminho mais fácil de dominação colonizadora. Desqualificar o colonizado e desacreditá-lo como criador de sua própria cultura é essencial para perpetuação da colonização. Mas a Abordagem Triangular tem origem direta na pedagogia freireana, em contato com as diferentes soluções pós modernas para o ensino da Arte, inclusive até com algumas soluções modernistas, entretanto culturalistas [5], como as Escuelas al Aire Libre do México evitando repetir erros que eu própria critico em meus livros sobre o DBAE americano.

É na contextualização que rompemos as limitações individuais e refletimos acerca do mundo que nos cerca, do mundo que nos querem impor, do mundo imaginário e do mundo que queremos construir.

Contextualização é conscientização.

A volta de Paulo Freire ao Brasil em 1980 representou a volta da conscientização na educação mas eu diria que só entre os anos 88 a 93 suas ideias começaram a atingir os museus.

Neste período ele deu um seminário no Instituto de Estudos Avançados (IEA)da USP a meu convite e foi uma conversa extraordinariamente decolonizadora sobre Museus. Também em 1992 Anibal Quijano esteve como convidado do IEA na USP. O MAC respondeu ao convite para a decolonização sob veementes protestos da burguesia e de universitários colonizados mas sobrevivemos interculturalmente. Hoje é com alegria que vejo florescer no Itaú Cultural o programade exposições denominado OCUPAÇÃO que de início apenas multicultural, o que já era uma vitória do respeito à diferença, hoje pode ser classificado como decolonizador.

É com entusiasmo que vou agora falar da OCUPAÇÃO Paulo Freire.

A extrema direita do Brasil nunca imaginou que o espírito de Paulo Freire habitasse em nós e nos desse tanta energia.

Os 100 anos de Paulo Freire o ano passado foram comemorados em todo o mundo, da Nova Zelândia a São Tomé.

O Coletivo Paulo Freire, criado por Erundina e muito bem coordenado por aqueles e aquelas que trabalharam com ele, vem esperançando todos nós e acaba de lançar o livro dos 100 anos escrito por 100 colaboradores.

 Ocupação Paulo Freire

Na data de 19 de setembro de 2021, no exato dia do aniversário de 100 anos de Paulo Freire, o Itaú Cultural abriu a Ocupação Paulo Freire no segundo andar de seu edifício. Os organizadores da Ocupação deram uma aparência alegre à instalação, escolheram recortes de vídeos que o apresentam em conversas descontraídas. Em um dos vídeos ele, que era um grande contador de casos, conta a história de se surpreender com a assimilação inconsciente das normas e preconceitos culturais que já havia contado para mim e meu marido no passado. Eis a história: No seu exílio no Chile, fez amizade com um professor e um dia os dois estavam conversando e Paulo Freire coloca a mão no ombro do colega enquanto conversava, o que era um hábito comum para ele no Recife. O amigo encabulado o adverte que no Chile um homem não coloca a mão no ombro de outro homem, pois isso pode ser mal interpretado.

Paulo Freire conversando, ao fundo de um lixão, com o educador popular Antonio Denilson Rodrigues Pinto, em 1996,
um ano antes de sua morte colocando como habitualmente a mão no ombro do educador.

Ele volta para casa pensando que devia haver algo errado naquela terra por condenar um gesto simples de afeto.

Tempos depois na Tanzânia, na África, sai de uma aula com um colega para passear pelo campus e o colega pega a mão dele e sai andando. Então foi a vez de Paulo Freire ficar muito encabulado pensando o que diriam seus amigos do Recife ao vê-lo passear de mãos dadas com outro homem e, assim que pode, guarda a mão no bolso. Moral da história. Como dizia minha avó “cada roca tem seu fuso e cada terra tem seu uso”. As interdições culturais afetivas nos penetram sem delas termos consciência.

A epistemologia de Paulo Freire está baseada na conscientização e no diálogo que levam à decolonização de si e da história.

Além de muitas fotos reveladoras de sua cativante personalidade, havia muito material produzido em espanhol que eu não conhecia. O design expositivo era muito atraente, claro e ondulantemente motivador. Trabalhei na Escolinha de Arte de São Paulo com Madalena, sua filha, e uma foto me comoveu. Uma de Madá, com mais ou menos 16 anos - de acordo com nosso cálculo, meu e de Regina Machado, com quem visitei a exposição - como monitora da experiência de alfabetização no Rio Grande do Norte em 1963.

Entre os livros expostos com os comentários de Paulo Freire no próprio livro (marginalia) está um de Aldous Huxley, que meu marido e eu líamos avidamente na juventude. Chegamos a conhecê-lo pessoalmente numa verdadeira aventura de fãs que atacam o ídolo.

Paulo Freire é um decolonialista, portanto, não é coincidência que sua Ocupação, a de número 53, tenha coincidido com a de número 52, em homenagem a Sueli Carneiro, uma intelectual negra que tem liderado a luta antirracista como ativista, filósofa e professora muito inteligente e destemida. Nessa exposição, a filha de Sueli conta uma história engraçada. Muitas vezes ela pedia para comprar algo e a mãe dizia que não dava porque estava “dura”. Um dia ela perguntou: -Mãe você compra isto para mim quando você estiver “mole”?

As Ocupações do Itaú Cultural se constituem num dos primeiros projetos culturais e de curadoria decolonizadora em São Paulo. As Ocupações se apropriam de métodos de pesquisa feministas e dos métodos baseados em história de vida.

Decolonialismo se desenvolve através de ações, não no discurso verbal. Decolonialidade em museus e centros culturais é a consciência da prática. Já não funcionam os disfarces do multiculturalismo aditivo que vemos na maioria dos museus.

Isto é, fazer uma exposição que exalte os códigos de Arte europeus e norte-americanos brancos e no meio do cubo branco, modelo copiado da Europa, colocar uma peça, quadro, desenho ou escultura de artista indígena ou afro para fingir igualitarismo.

Esta é a prática instrumental do colonizador para fazer proliferar o processo da colonização escondida que nos oblitera há mais de 500 anos.

É necessária a “vigília cívica” para nos defendermos do colonialismo insidioso.


[i] .

[1]  O título é homenagem a Tese de Anibal Quijano publicada em livro com esse título que me foi enviada como presente por Mario Mongrovodo Perú.

[2] Nora Merlin, intelectual argentina desde sua primeira palestra em abril de 2019 no Congresso Ensino/Aprendizagem das Artes na América Latina: colonialismo e questões de gênero, por mim organizado com a ajuda de representantes de todo o país, vem sendo muito lida e citada pelos arte/educadores decolonialistas no Brasil (ver: Revista GEARTE).

[3] Critico o DBAE por ser disciplinar no livro A imagem no ensino da Arte (São Paulo: Editora Perspectiva, 1991) no qual lanço a Abordagem Triangular depois de quase 10 anos de pesquisas em locais diferentes. Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul por Analice Dutra Pillar e Denise Alcade com alunos de Escolas Públicas e Privada, no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo como mediação cultural e na Secretaria de Educação do Município de São Paulo no período que Paulo Freire foi Secretário de Educação continuando com Mario Sergio Cortella. A Abordagem Triangular compreende fazer Arte, Leitura da imagem da obra ou do campo de sentido da imagem e do objeto e a Contextualização.

[4] A pesquisa será publicada na integra pela Revista GEARTE brevemente.

[5] Em um Congresso em Sevilha, Juan Carlos Araño aventou a possibilidade de eu ter sido influenciada pelo Critical Studies de David Thristlewood, com o qual concordo, pois David esteve duas vezes no Brasil a meu convite eu era frequente participante de seus eventos profissionais.


Bibliografia

  • BARBOSA, Ana Mae A Imagem no Ensino da Arte. São Paulo; Editora Perspectiva. 1991.
  • MERLIN, Nora Colonização da subjetividade e neoliberalismo em Revista GEARTE, Porto Alegre, v. 6, n. 2, maio/ago. 2019. (número especial sobre o Congresso de Ensino/ Aprendizagem das Artes na América Latina: colonialismo e questões de gênero SESC/SP Abril 2019).
  • OCUPAÇÃO PAULO FREIRE. Catálogo São Paulo: Itaú Cultural , 2021.
  • QUIJANO, Aníbal. Dominação e Cultura. Chile: Editora Mosca Azul, 1980.

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