Dia Internacional dos Museus 2022

Ana Virginia Pinheiro [1] 

Os museus e as bibliotecas, assim como os arquivos, são os meios pelos quais o Estado cumpre o poder-dever de oferecer “acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação” (BRASIL, 2022, Art. 23, V), de modo que esses direitos, associados, “permitam às pessoas participar dos padrões básicos de sua sociedade” (ROBERTS, 1997, p. 11).

Esses direitos estão fundamentados no acesso à informação, que é um dos termos da garantia, a todos, de igualdade perante a lei. A igualdade é um valor democrático capaz de proporcionar o exercício pleno da cidadania e dos direitos culturais, baseados em princípios como o “direito à educação e à aprendizagem ao longo da vida” e na instituição de “políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes”. (BRASIL, 2022, Art. 5º, XIV; 205; 206, IX; 216-A).

Esta abordagem não se restringe às instituições públicas, mas a toda instituição comprometida com os direitos e deveres inerentes à cidadania social, que afeta a qualidade das cidadanias civil e política, “que possibilita a participação igualitária de todos os membros de uma comunidade, [... de modo] que as pessoas compartilhem da herança social e tenham acesso à vida civilizada segundo os padrões prevalecentes na sociedade” (MARSHALL, 1964 apud ROBERTS, 1997, p. [13]).

Detalhe do fólio 92v, uma das 645 xilogravuras que ilustram a “Crônica de Nuremberg”, de Hatmann SchedelFigura 1: Detalhe do fólio 92v, uma das 645 xilogravuras que ilustram a “Crônica de Nuremberg”, de Hatmann Schedel (Nuremberge: Anthonius Koberger, [12 jul.] 1493), atribuídas ao artista alemão Michael Wolgemut (1434-1519). Segundo Panofsky (1982 apud BATORÉO, 2001), é possível que parte das gravuras sejam de um artista iniciante, ativo em na oficina de Wolgemut: Albrecht Dürer. Acervo: Fundação Biblioteca Nacional (Brasil).

Nesse contexto, o acesso ao livro antigo, impresso e editado a partir do advento da tipografia no século XV até antes de 1801 (FEDERAÇÃO..., 1985, p. 1), e identificado como raro (PINHEIRO, 2018), se configura como uma questão aparentemente contraditória, porque pressupõe o acesso seletivo, definido pelo estágio da formação educacional e cultural de seu potencial usuário.

Há que resgatar, aqui, o caráter do livro impresso, antigo e raro, como objeto de arte e como bem patrimonial.

Se no livro brasileiro do século XX, através da edição de arte da página impressa, “nomes como Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e Aldemir Martins deram sua contribuição para a evolução das artes do livro, junto com artistas fundamentalmente ligados à produção editorial, como Santa Rosa e Poty” (ROCHA; GIACOMELLI, 2012, p. 2), nos séculos XV ao XVIII, artistas como Wolgemut ou Dürer (Figura 1), Leonardo da Vinci (Figura 2) e Rubens (Figura 3), promoveram a harmonia entre o texto impresso artesanalmente e a gravura original, em madeira ou metal.

Como a informação que se desvela está implícita em duas linguagens, icônica e materialística, há uma ‘retórica silenciosa’, que se expande e se torna perceptível à medida que se vê e que se toca o livro [...]. Essa percepção é produto de uma experiência graálica simultaneamente visual e táctil, que não diz respeito à literalidade, mas à objetivação do livro (PINHEIRO, 2021, p. 237, 238, grifos da autora).

As gravuras, inseridas na paginação ou hors-texte sobre papéis de trapos, atribuem ao livro antigo e raro que as preserva o indiscutível caráter de objeto museal, que pode ser estudado fora do contexto da biblioteca, da coleção que originalmente compõe, assumindo valores culturais, estéticos e históricos próprios (NASCIMENTO, 1994). Isto se evidencia quando se considera, como válido, o pressuposto de que a “apreensão do objeto captado da ‘realidade’ pelo ‘homem’ por meio dos sentidos (Rússio [1981]) ou pela compreensão histórica (Gregorová [apud BARAÇAL, 2008]) lhe confere destaque ou ‘musealidade’ (Stránský [2008])” (GOMES, 2015, p. 25, grifos da autora).

Um poliedros (icosaedro) de Leonardo da Vinci, dentre as 87 figuras que delineou, gravadas em madeira, e que compõem a obra “Divina proportione”, de Luca PacioliFigura 2: Um poliedros (icosaedro) de Leonardo da Vinci, dentre as 87 figuras que delineou, gravadas em madeira, e que compõem a obra “Divina proportione”, de Luca Pacioli (Venetiis: A. Paganius Paganinus, 1509). Acervo: Fundação Biblioteca Nacional (Brasil).

Esta condição torna mais extenso o foco referencial do livro antigo e raro, com efeitos positivos que dependem de empenho continuado de educação patrimonial. Afinal, “o trato com o livro raro reitera incondicionalmente uma tradição museal arquetípica: possibilita a leitura do mundo – do mundo da erudição e do mundo da arte” (PINHEIRO, 2019).

Para ratificar o caráter museal do livro antigo e raro, convém destacar a contribuição de um dos artistas-ilustradores citados, entre outros tantos: Peter Paul Rubens (1577-1640).

Rubens era um ilustrador ocasional de obras produzidas pela tipografia Plantin-Moretus, ativa em Anvers (Antuérpia) do século XVI ao XIX. Seus desenhos eram assinados, seguidos da assinatura do gravador.

Os exemplares com gravuras a partir de desenhos de Rubens, impressos na tipografia plantiniana e disponíveis na Biblioteca Nacional brasileira, por exemplo, primam “pelos registros imagéticos e imagens textuais, que oferecem um discurso não tão evidente quanto aquele do livro que ilustram. Há uma retórica para além da simbólica, na imagem e no texto imagético [...], que emerge com a análise bibliológica, com o exame da materialidade do impresso” (PINHEIRO, 2014, p. 373) e que pode ser registrada na descrição bibliográfica, formalizando um testemunho da interdisciplinaridade da Museologia e da Biblioteconomia.

Página de rosto de “Poemata”, do papa Urbano VIII (Antverpiae: Ex Officina Plantiniana Balthasaris Moreti, 1634), gravada em metal, a partir de desenho de Peter Paul Rubens (1577-1640)Figura 3: Página de rosto de “Poemata”, do papa Urbano VIII (Antverpiae: Ex Officina Plantiniana Balthasaris Moreti, 1634), gravada em metal, a partir de desenho de Peter Paul Rubens (1577-1640). Acervo: Fundação Biblioteca Nacional (Brasil).

E é esta interdisciplinaridade que impõe como necessário que a biblioteca guardiã consuma sua função precípua de difusão, delineando e estabelecendo outros meios de acesso ao livro impresso, antigo e raro, objeto de arte e bem patrimonial, para além da consulta ao original, ampliando o universo de usuários potenciais para o modo não seletivo, relevando obviamente a preservação e as tecnologias disponíveis.

Desse modo, certamente, a biblioteca-guardiã cumprirá, nos limites de suas atribuições, uma das funções básicas do museu definidas por Peter Van Mensch (1992 apud CARVALHO, 2007, p. [3]): “a comunicação [que] compreende todos os métodos possíveis para transferir a informação” – criando oportunidades, educando usuários reais no uso e manuseio de tesouros bibliográficos e promovendo uma sociedade mais informada – a partir de então, de forma indistinta, igualitária, como deve ser e garantir o exercício pleno da cidadania.

Rio de Janeiro, 14 maio 2022.


Referências

  • BATORÉO, Manuel. Gravuras de incunábulos em pintura portuguesa manuelino-joanina. In: FARINHA, António Dias; CARREIRA, José Nunes; SERRÃO, Vítor (coord.). Uma vida em história: estudos em homenagem a António Borges Coelho. Lisboa: Caminho, 2001. p. 287-314.
  • BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Casa Civil, 2022. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em: 10 maio 2022.
  • FEDERAÇÃO INTERNACIONAL DAS ASSOCIAÇÕES DE BIBLIOTECÁRIOS E DAS BIBLIOTECAS. ISBD(A): descrição bibliográfica internacional normalizada das monografias antigas. Tradução de Maria da Graça Pericão e Maria Isabel Faria. Lisboa: Instituto Português do Patrimônio Cultural, 1985.
  • GOMES, Carla Renata. O pensamento de Waldisa Rússio sobre a Museologia. Informação & sociedade: estudos, João Pessoa, PB, v. 25, n. 3, p. 21-35, set./dez. 2015. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/ies/article/view/23934/14520 . Acesso em: 10 maio 2022.
  • NASCIMENTO, Rosana. O objeto museal como objeto de conhecimento. Cadernos de Sociomuseologia, Lisboa, v. 3, n. 3, 1994. Disponível em: https://revistas.ulusofona.pt/index.php/cadernosociomuseologia/article/view/304 . Acesso em: 10 maio 2022.
  • PINHEIRO, Ana Virginia. A Biblioteca-Museu do passado no presente, e o futuro do livro raro. Revista Museu: cultura levada a sério, Rio de Janeiro, 18 maio 2019. Edição comemorativa. Disponível em: https://www.revistamuseu.com.br/site/br/artigos/18-de-maio/18-maio-2019/6566-a-biblioteca-museu-do-passado-no-presente-e-o-futuro-do-livro-raro.html . Acesso em: 10 maio 2022.
  • PINHEIRO, Ana Virginia. Cimélios flamengos que atravessaram o mar: uma página ilustrada da Real Biblioteca portuguesa na Biblioteca Nacional brasileira. In: THOMAS, Werner et al. (org.). Um mundo sobre papel: livros, gravuras e impressos flamengos nos impérios português e espanhol (séculos XVI-XVIII). São Paulo: Ed. USP; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014. p. 367-381.
  • PINHEIRO, Ana Virginia. O espírito e o corpo do livro raro: fragmentos de uma teoria para ver e tocar. Revista Museu: cultura levada a sério, Rio de Janeiro, 4 dez. 2018. Artigo publicado, originalmente, em 23 abr. 2003. Disponível em: https://www.revistamuseu.com.br/site/br/artigos/5677-o-espirito-e-o-corpo-do-livro-raro-fragmentos-de-uma-teoria-para-ver-e-tocar.html . Acesso em: 10 maio 2022.
  • PINHEIRO, Ana Virginia. A retórica silenciosa do livro antigo. In: BARBOSA, Sidney. Da leitura e suas escrituras: histórias sobre a história da leitura. Teresina, PI: Elã, 2021. p. 236-258.
  • ROBERTS, Bryan R. A dimensão social da cidadania. Tradução de Vera Pereira. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 12, n. 33, fev. 1997. Disponível em: http://anpocs.com/images/stories/RBCS/33/rbcs33_01.pdf . Acesso em: 10 maio 2022.
  • ROCHA, Claudio; GIACOMELLI, Julio. Artistas do livro. Tupigrafia, São Paulo, n. 10, p. 2-12, abr. 2012.

[1]  Bibliotecária de Livros Raros. Professora da Escola de Biblioteconomia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).


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