Alexander W. A. Kellner [i]
Fernanda Cristina Cardoso Guedes [ii]
O incêndio no Museu Nacional/UFRJ pode ser considerado a maior tragédia no âmbito cultural ocorrida no Brasil. Quando, no dia 2 de setembro de 2018, o Paço de São Cristóvão ardia em chamas - drama acompanhado ao vivo por milhares de pessoas pela televisão, por diversos portais da internet, pelas mídias sociais e presencialmente -, também queimava parte da memória do país, produzindo uma onde de choque que ultrapassou fronteiras.
Desde então, tem sido a tônica geral da instituição a atuação nos esforços para a sua reestruturação e recuperação de sua sede principal, o Palácio de São Cristóvão, para que futuramente seja possível voltar a receber as exposições e atividades públicas, o que trará inúmeros benefícios para o país (KELLNER, 2019). Nesta edição especial da revista para o Dia Internacional dos Museus, apresentamos um breve resumo [1] de duas das principais ações em curso: o Projeto Museu Nacional Vive e a campanha Recompõe. Procuramos demonstrar não apenas o poder do Museu Nacional/UFRJ nos esforços de agregar diferentes segmentos da sociedade para sua reconstrução, mas também no sentido de dar a maior transparência possível às diferentes etapas de sua reconstrução.
Vale lembrar que o Paço de São Cristóvão (Figura 1), complexo arquitetônico tombado pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o IPHAN, como residência das famílias real portuguesa e imperial brasileira, teve entre seus moradores alguns dos principais atores relacionados com a vida política nacional, como os imperadores D. Pedro I e II e as imperatrizes Leopoldina e Teresa Cristina. OPalácio foi palco de vários acontecimentos que levaram à independência do país, em 1822, sendo, décadas depois, após a Proclamação da República, sede da primeira Assembleia Constituinte brasileira, entre 1889 e 1891. É somente em 1892, aliás, que o Museu Nacional passa a ocupar o Palácio, deixando para trás sua sede inicial, no Campo de Santana, de quando foi fundado em 1818.
Figura 1: Fachada principal do Palácio de São Cristóvão, sede do Museu Nacional/UFRJ. Foto: Alexander W. A. Kellner
Sobretudo no ano de 2022, quando se comemora o bicentenário da independência, e levando-se em conta a temática escolhida pelo ICOM para a comemoração do Dia Internacional dos Museus - O Poder dos Museus -, nosso texto reflete sobre o poder de transformação de uma instituição como o Museu Nacional/UFRJ. Reconhecidamente um museu das classes populares (GUEDES, 2018) na cidade do Rio de Janeiro e o mais antigo em atividade do país, é uma instituição cuja história tem íntima ligação com o processo de independência do Brasil, da evolução das ciências brasileiras e, claro, de nossa República.
Projeto Museu Nacional Vive
O nome Museu Nacional Vive intitula uma campanha de Comunicação criada pela instituição logo após o incêndio, com o objetivo de fomentar as ações e parcerias realizadas, trazendo visibilidade, engajamento e transparência em torno da reconstrução e reestruturação do Museu Nacional/UFRJ. Desde março de 2020, oficialmente, esse também passou a ser o nome do projeto que congrega todas as ações da reconstrução do Museu, através de uma cooperação técnica entre a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e o Instituto Cultural Vale.
O embrião para que o projeto acontecesse teve início em 2019, por uma aproximação do Instituto Cultural Vale com a UFRJ, intermediada pela UNESCO, que esteve apoiando o Museu logo após o incêndio. Depois de reuniões preliminares, um protocolo de intenções envolvendo as três instituições, com acompanhamento do BNDES, foi firmado no dia 31 de agosto de 2019 dentro do Palácio de São Cristóvão — especificamente no auditório Roquette Pinto, local em que, segundo a perícia técnica, teve início o incêndio que atingiu o prédio. Para a assinatura do protocolo, estiveram presentes representantes de todo o espectro político da Bancada dos Deputados Federais do Rio de Janeiro, de instituições públicas e privadas, além de servidores e colaboradores do Museu (Figura 2). Nessa ocasião, foi divulgado um vídeo produzido pela Coordenadora de Comunicação da UFRJ sobre as ações de resgate desempenhadas dentro da edificação, como também firmada a primeira doação expressiva de peças para a recomposição das coleções do Museu: um conjunto de objetos africanos, realizada pelo pesquisador Wilson Savino.
Figura 2: Evento de 31 de agosto 2019 para assinatura do protocolo de intenções relativo ao Projeto Museu Nacional Vive firmado entre UFRJ, Instituto Cultural Vale e UNESCO. Foto: Coordenadoria de Comunicação UFRJ.
Foi pouco antes da COVID-19 ser caracterizada como uma pandemia pela Organização Mundial da Saúde que, em 3 março de 2020, a formalização dessa cooperação ocorreu, em cerimônia realizada no Palácio Universitário (Campus Praia Vermelha) da UFRJ. Por esse acordo ficou estabelecido um modelo de gestão do Projeto Museu Nacional Vive, formado por três instâncias:
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- O Comitê Executivo, responsável pela implementação das ações do projeto, é constituído por dois representantes da UFRJ, dois do Instituto Cultural Vale, um da UNESCO, um do Museu Nacional/UFRJ e outro da sociedade civil.
- O Comitê Institucional tem como função principal, além de possibilitar uma ampla transparência do processo, assessorar o Comitê Executivo, apresentando sugestões que possam ser desenvolvidas no âmbito do projeto. Participam diversas sociedades, como a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a Sociedade Brasileira de Progresso para a Ciência (SBPC), a Câmara Comunitária de São Cristóvão, o ICOM e o MEC,e instituições do exterior como o Governo da Alemanha, o Instituto Goethe, o Instituto Camões, o Governo da Áustria. Este comitê ainda busca novos parceiros para contribuir com as ações de reconstrução.
- Por último, o Grupo de Trabalho de Segurança e Sustentabilidade, coordenado pelo BNDES, tem a responsabilidade de pensar as ações de sustentabilidade do Museu após a sua inauguração. Seguramente esse modelo de gestão poderá servir de base para outros projetos culturais envolvendo entes públicos e privados, adaptando-se às especificidades das instituições envolvidas.
- O Comitê Executivo, responsável pela implementação das ações do projeto, é constituído por dois representantes da UFRJ, dois do Instituto Cultural Vale, um da UNESCO, um do Museu Nacional/UFRJ e outro da sociedade civil.
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Mais informações sobre o projeto podem ser obtidas no site do projeto ( museunacionalvive.org.br ).
Campanha Recompõe
Como se sabe, durante o incêndio no Museu Nacional/UFRJ tivemos a perda de um acervo inestimável, obtido ao longo de dois séculos. Mesmo durante o império, o Palácio de São Cristóvão já era um local incipiente nos estudos de história natural e antropologia, uma vez que abrigava peças do chamado Museu do Imperador (DANTAS, 2007). Tal iniciativa teve como força motriz o desejo da própria Imperatriz Leopoldina e foi expandida, pessoalmente, pelo seu filho, D. Pedro II (1825-1891), considerado um mecenas da cultura e da ciência no Brasil.
Dos 20 milhões de itens estimados que formavam as coleções do Museu, cerca de 85% foram afetados. Houve um intenso esforço de resgate dos objetos que se encontravam sob os escombros do palácio, onde houve o colapso dos andares. Esse trabalho recuperou expressivos itens das coleções, como Luzia (Figura 3), o registro ósseo mais antigo da ocupação humana na América do Sul; meteoritos como o Angra dos Reis; material arqueológico como peças da coleção da Imperatriz Teresa Cristina, das cidades de Pompéia e Herculano, além de acervo lítico do Egito antigo (RODRIGUES-CARVALHO,2021).Importante registrar que grande parte dos recursos providos para esse trabalho de resgate vieram do Ministério da Educação (MEC) e do Governo da Alemanha, como também a partir de uma campanha de doação organizada pela Associação Amigos do Museu Nacional (SAMN). Porém, a perda foi muito grande, particularmente considerando o material expositivo.
Figura 3: Apresentação à imprensa dos fragmentos do crânio de Luzia. Foto: Fernanda Guedes.
Dento desse contexto, já no dia seguinte ao incêndio, foi anunciado pela direção que o maior desafio na sua reconstrução seria a recomposição do acervo. Para incrementar e chamar a atenção para a necessidade de doações, foi lançada no dia 2 de setembro de 2021, quando se registrou a passagem de três anos da tragédia, a campanha Recompõe. Utilizando como pano de fundo a declaração da independência, a principal peça da campanha é um vídeo (disponível em inglês e português) realizando uma nova declaração, a de compromisso com a recomposição das coleções do Museu Nacional. Com a participação de pesquisadores e técnicos da casa, o vídeo da campanha estabelece os compromissos básicos para com o novo acervo que venha a ser incorporado à instituição.
Um dos pontos importantes a serem destacados é o escopo da campanha, que tem por objetivo principal obter acervo original para as novas exposições, cuja necessidade é estimada em cerca de 10 mil peças. Naturalmente, nesse processo também serão obtidas peças de interesse científico que farão parte da reserva técnica, mas o esforço principal é direcionado ao material expositivo.
Cabe salientar que a campanha não terá sucesso sem uma importante participação da comunidade internacional! Até a presente data, já foram obtidos milhares de exemplares, dos quais, pouco mais de mil serão utilizadas de imediato nas novas exposições. Mais dados podem ser obtidos no site da campanha ( recompoe.mn.ufrj.br ).
Desafios
Com segurança, pode-se afirmar que o projeto de reconstrução do Museu Nacional/UFRJ é o mais complexo e importante em andamento no país, no campo do patrimônio histórico, científico e cultural. Devolver o Museu de forma plena para a sociedade, com áreas expositivas e suas atividades e instalações para a prática científica e acadêmica recuperadas requer uma ação integrada de diversos agentes. A participação de entes públicos e particulares, nas mais diferentes esferas governamentais e sua atuação conjunta é certamente um grande desafio, que vem sendo vencido dia a dia.
Entre outros pontos que merecem atenção está a questão da obtenção de peças para as exposições. Esta ação requer um trabalho mais intenso junto à comunidade internacional, que deve acreditar na capacidade do Museu e, por extensão, do país, em cuidar do novo acervo que venha a ser doado, evitando a sombra de que uma tragédia como a de 2 de setembro de 2018 ocorra novamente. Seria uma demonstração de que o país aprendeu a cuidar melhor do seu patrimônio científico e cultural, que muitas vezes engloba também objetos representativos da cultura de outros países e nações. Para tal é imperativo que o Paço de São Cristóvão seja reconstruído com as melhores medidas de segurança, tanto para as pessoas que forem ocupá-lo (os visitantes e servidores da instituição), como, também, para as novas coleções.
Finalizando, devemos dizer que, para a sua reconstrução, o Museu Nacional/UFRJ necessita de um engajamento da sociedade brasileira, pois o país precisa do seu primeiro museu em plena atuação o quanto antes! Temos a oportunidade de reconstruir um museu de história natural e antropologia, com uma importante vertente histórica, que vai servir de referência para outras instituições museais, não apenas no Brasil, mas para a América do Sul. Uma oportunidade que não pode ser perdida!
Queremos virar uma página, mas sem esquecer o longo e árduo caminho que nos trouxe até aqui. Lembrando tanto dos inúmeros esforços que serviram para tornar a instituição referência histórica, cultural e científica do país, como também das dificuldades enfrentadas ao longo de sua trajetória. É nosso desejo que as futuras gerações possam conhecer um Museu Nacional/UFRJ acessível, sustentável e preocupado em incitar as reflexões sobre o ambiente em que vivemos e que incite a sonhar!
[i] Direção do Museu Nacional/UFRJ; Departamento de Geologia e Paleontologia, Museu Nacional/UFRJ - Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
[ii] Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF)/ Núcleo de Comunicação & Eventos do Museu Nacional/UFRJ - Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
[1] O presente artigo foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento dePessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
Referências
- DANTAS, Regina Maria Macedo Costa. A Casa do Imperador: do Paço de São Cristóvão ao Museu Nacional. Rio de Janeiro, 2007. Dissertação (Mestrado em Memória Social). Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação em Memória Social, 2007.
- GUEDES, F. C. C. 2018. Uma visita ao Museu Nacional. Classes populares e o consumo da cultura expresso em sites de redes sociais. 2018. 176 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade Federal Fluminense, Niterói-RJ. Disponível em: https://app.uff.br/riuff/bitstream/handle/1/21489/DISSERTA%C3%87%C3%83O%20FERNANDA%20GUEDES%20PPGCOM%20UFF%20REVISADA%20FINAL.pdf?sequence=1 Acesso em 25 abr. 2022.
- KELLNER, A. W. A. 2019. A reconstrução do Museu Nacional: bom para o Rio, bom para o Brasil, Revista Ciência e Cultura, volume 71, p.4-5.
- RODRIGUES-CARVALHO, C. (ed). 2021. Série Livros Digital: 22, 500 dias de Resgate - Memória, coragem e imagem. Rio de Janeiro: Museu Nacional. Disponível em: https://www.museunacional.ufrj.br/destaques/docs/500_dias_resgate/livreto_500_dias_de_resgate.pdf Acesso em 25 abr. 2022.
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