Alejandra Saladino [i]
Nelson Cayer [ii]
Por mais um ano, a Revista Museu abre um espaço para a reflexão sobre o setor museal a partir do tema escolhido pelo Conselho Internacional de Museus (ICOM) para as comemorações do Dia Internacional dos Museus. Mais uma vez, recebemos e aceitamos com honra e alegria o convite para participar daquela iniciativa – já configurada como ex-libris da efeméride em tela – compartilhando ilações e inquietações com parceiras [iii] do campo do Patrimônio Cultural. O resultado dessa troca apresentamos na forma deste breve texto, cujo objetivo, mais do que comemorar uma data e expor nossas “minhocações” sobre um tema específico, trata de convidar e/ou instigar as leitoras ao pensamento crítico.
O poder dos museus foi o tema escolhido para celebrar o Dia Internacional de Museus de 2022 e motivar a realização de ações museais voltadas ao público, bem como a reflexão por parte da comunidade museal e acadêmica sobre as matérias e questões a ele associadas.
Desta vez, os pontos referentes estão declaradamente explícitos no texto-referência divulgado na página web da entidade supracitada. Assim sendo, os museus e as agentes a eles relacionadas durante o ano corrente estarão dedicadas às seguintes temáticas: o poder dos museus alcançarem a sustentabilidade, de inovarem em digitalização e acessibilidade e, finalmente, de colaborar na construção da sociedade por meio da educação.
Por hábito e por vício de profissão [iv], iniciamos nossas urdições a partir da compreensão do termo-chave para o tema em questão, nomeadamente o poder. De acordo com o Dicionário Priberam [v], poder (vocábulo derivado do latim vulgar possum) enquanto verbo transitivo e/ou intransitivo significa ter a condição, a faculdade e a possibilidade de realizar algo e, ainda, a autorização, a permissão, o direito, a razão ou motivo e a força e a autoridade para fazê-lo.
Já na forma de substantivo masculino, o termo está associado à possibilidade, à faculdade, à atribuição, ao meio e ao recurso, à força e à influência, ao mando, à autoridade e à importância para fazer algo.
Frente a tantos significados, aparentemente assemelhados, e voltando-nos à diversidade museal conhecida por nós autoras, imediatamente surgiram três questões: Os museus têm mesmo poder? E que tipo de poder(es) exerceria(m)? Estariam exercendo esse(s) poder(es)?
Ao considerarmos as bases e trajetórias dos museus pós-Revolução Francesa e, principalmente as mudanças de paradigmas resultantes da adoção de correntes teóricas específicas, como os pensamentos pós-colonial e decolonial, a reflexão sobre o termo em questão ampliou-se para sua relação com o termo potência, aparentemente um sinônimo.
Então outra questão irrompeu como um raio, no que diz respeito aos três tópicos destacados no texto-referência disponibilizado pelo ICOM (sustentabilidade, acessibilidade e educação): os museus manifestam e/ou têm condições de exercerem o seu poder de forma potente?
Obviamente, essa questão não se contenta com uma única e reduzida resposta, visto que está completamente atrelada à consideração da missão, escolhas e trajetórias institucionais, bem como com a relação estabelecida entre entidades e sociedade ao longo do tempo.
Além do mais, os indicadores de poder dos museus (sustentabilidade, acessibilidade e educação) são complexos devido às diversas interpretações. Sobre a sustentabilidade, podemos tomar duas vias de reflexão e ação. A primeira refere-se à sustentabilidade institucional, tema referente ao Programa de Financiamento e Fomento da estrutura do Plano Museológico [vi], questão espinhosa e nebulosa visto que ainda hoje as entidades compreendem que um plano de sustentabilidade pode estar alicerçado única e exclusivamente na participação de editais. A segunda está relacionada ao papel dos museus na sustentabilidade da sociedade, garantindo a fruição do patrimônio cultural por meio de estratégias direcionadas aos Objetivos de Desenvolvimento Social (ODS) [vii].
O tópico da sustentabilidade igualmente guarda uma complexidade referente à crescente desigualdade social do planeta, um fosso cada vez mais profundo entre aqueles que gozam de condições e instrumentos para acessar a cultura e a educação e os que vivem abaixo da linha da pobreza, sem qualquer possibilidade de utilizar internet ou apreender as narrativas elitistas, ainda voltadas para um público com um capital cultural que indica a desigualdade social, o descaso quanto aos direitos sociais e culturais da sociedade. Cabe lembrar que esta realidade também pode ser estendida às próprias entidades, algumas dotadas de condições e ferramentas que oferecem vivências como a realidade ampliada e outras que sequer internet possuem.
Sem a pretensão de aprofundar, visto que não é objetivo deste texto e que também não há espaço para tal, o tema da educação também é bastante complexo, visto que em pleno século XXI ainda há muitas entidades que desenvolvem programas educativos sem a percepção e a atenção sobre a educação como via de mão dupla e com o objetivo de desenvolvimento do pensamento crítico e emancipação do indivíduo [viii].
Entretanto, é possível destacar alguns exemplos de museus e processos museais alinhados à ideia das boas práticas, que ilustram a manifestação do poder dos museus na sua plena potência, o poder da memória (CHAGAS, 2002).
Entre outros casos, na Colômbia podemos ver, o Museu Itinerante da Memória e da Identidade dos Montes de Maria (MIM) “El Mochuelo” [ix], o Museu do Vidro de Bogotá [x], Casa Museu do Pescador [xi], o Museu Comunitário do Guainía [xii], o Museu Comunitário de Mulaló [xiii], a Aliança Colombiana de Museus [xiv], a Rede Colombiana de Lugares de Memória [xv] e a Rede de Museus Comunitários de Colômbia [xvi].
E no que diz respeito aos processos museais é mister salientar as ações das diversas redes de museus voltadas ao desenvolvimento e à mudança social e à democratização do acesso ao patrimônio museológico no Brasil, como, por exemplo, a Rede de Museologia Social do Rio de Janeiro [xvii], a Rede de Museus Indígenas [xviii] e a Rede de Museus e Acervos Arqueológicos e Etnográficos (BRUNO et al, 2020).
Todavia, uma vez que nosso objetivo é provocar a reflexão sobre o tema do Dia Internacional dos Museus, voltamos à via analítica alicerçada no entrelaçamento dos termos poder e potência.
A grosso modo, potência pode ser considerada um sinônimo de poder, visto que igualmente relacionada à ideia de faculdade, possibilidade e/ou força. Se tomarmos as sendas abertas por Aristóteles, reconhecemos a existência de uma potência ativa, referente ao ser em devir, e uma potência passiva, associada à possibilidade de manifestação, ou não.
Destarte, podemos ensaiar uma resposta provisória àquelas questões por nós propostas. De fato, os museus, enquanto espaços de legitimação de discursos e repositórios de referências patrimoniais, têm um inconteste poder, cuja potência passiva se manifesta em conformidade às escolhas, padrões e trajetória institucionais, bem como as circunstâncias conjunturais.
Entretanto, se considerarmos a corrente filosófica que alinha Baruch Spinoza, Friedrich Nietzsche e Gilles Deleuze, poder e potência não podem ser considerados sinônimos justamente pela ênfase nas ideias de autoridade, mando, influência, autorização e força associadas ao primeiro termo citado. Assim sendo, o poder dos museus manifesto dessa forma resulta na despotencialização, na impossibilidade da afirmação da potência em sua plenitude.
Esta via interpretativa também nos possibilita esboçar outra resposta provisória às questões elencadas. Sem sombra de dúvida, os museus enquanto equipamentos de legitimação e manutenção da gramática e da dinâmica colonialistas, normatizando e reduzindo seus discursos e práticas e silenciando e invisibilizando narrativas historicamente marginalizadas, têm um poder inconteste, a memória do poder (CHAGAS, 2002), identificado em diversas entidades ainda no século XXI.
Dito isto, convidamos à reflexão e à ação com vistas à potência ativa, aquela que deixa o campo da virtualidade e se manifesta na transvaloração dos princípios e dos valores estabelecidos, criando novas maneiras de relação e, assim, contribuir efetiva e concretamente para o desenvolvimento da sociedade na sua plena potência. Somente abdicando do poder mando/autoridade, os museus deixarão de ser impotentes parasitas da potência da sociedade, da nossa capacidade de criar novos valores, paradigmas e relações.
[i] Museóloga e Arqueóloga, professora visitante do Departamento de Pré-História e Arqueologia da Universidade Complutense de Madrid e membro do corpo docente permanente do Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural do IPHAN.
[ii] Sociólogo, Historiador e Museólogo,professor da Graduação em História, com ênfase em Patrimônio Histórico e Museologia, da Universidade Autônoma da Colômbiae docente do Departamento de Humanidades da Universidade de Boyacá.
[iii] Com o fito de alinhamento à linguagem inclusiva, optamos por utilizar o artigo feminino em referência ao termo pessoa, implícito em nosso discurso.
[iv] Enquanto museólogas, responsáveis pela decodificação e discursos e produção e legitimação de narrativas, parece-nos incontornável o cuidado com o uso dos termos que compõem tais textos.
[v] https://dicionario.priberam.org/Consultar.aspx
[vi] Art. 23 do Decreto 1.8234/13.
[vii] A título de sugestão, recomenda-se a leitura da Agenda 2030 e a reflexão sobre a falta de destaque do patrimônio cultural nas políticas dirigidas à sustentabilidade das cidades.
[viii] Em vista do limite de palavras para escrever, os exemplos aqui citados, somente fazem referência aos países de origem de cada um dos autores ou autoras do texto.
[x] https://museodelvidriodebogota.org/
[xi] https://www.facebook.com/watch/?v=742625422754786
[xii] https://www.facebook.com/people/Museo-Comunitario-Guainia/100005977630053
[xiii] https://museomulalo.org/
[xiv] https://alianzacolombianademuseos.co/manifiesto
[xv] https://redmemoriacolombia.org/
[xvi] https://www.facebook.com/redmuseoscomunitarioscolombia/
[xvii] http://rededemuseologiasocialdorj.blogspot.com/
[xviii] https://www.facebook.com/redeindigenamemoria/
Referências
- BRUNO, M. C. O. et al. (2020). Acervos arqueológicos relevâncias, problemas e desafios desde sempre e para sempre. Revista de Arqueologia, v. 33 n. 3, p. 10. DOI: https://doi.org/10.24885/sab.v33i3.845 . Disponível em: https://www.revista.sabnet.org/index.php/sab/article/view/845/4 . Acesso em: 7 de mai. 2022.
- CHAGAS, M. Memória e Poder: Dois Movimentos. Cadernos de Sociomuseologia: Museu e políticas de Memória. Lisboa, v.19, n.19, p.43-81, 2002. Disponível em: https://revistas.ulusofona.pt/index.php/cadernosociomuseologia/article/view/367 . Acesso em: 08 mai. 2022.
- DUROZOI, G; RUSSEL, A. (1993). Dicionário de Filosofia. Campinas, SP: Papirus.
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