Anelise Pacheco [i]
Para alguns historiadores como Lilia Schwartz, a pandemia do Covid-19, que acabamos de atravessar, antecipou mudanças que já estavam em curso: como o trabalho remoto, a educação à distância, a busca por sustentabilidade e a cobrança por parte da sociedade que as empresas fossem socialmente mais responsáveis. Outros valores menos perceptíveis como o fortalecimento da solidariedade e empatia, e o questionamento de um modelo de sociedade baseado no consumismo e no lucro a qualquer custo pareceram também ganhar força com essa revisão de valores provocada pelo advento da pandemia. [1]
Museu do Futebol (São Paulo)
Muitos museus aproveitaram a oportunidade da pandemia para desenvolverem suas habilidades em atividades à distância como webinars, e exposições e visitas virtuais. E, com isto, alguns poucos, através da incorporação da utilização destas novas ferramentas de atividades à distância em suas práticas, se sentiram aliviados em não ter mais que se preocupar em atender ao público em uma larga escala, ou ainda, em criar locais de pertencimento para as grandes massas da população. E, conscientes ou não, parecem ter retornado para o modelo dos museus na década de 50, quando podiam ser considerados como uma espécie de "country club estético", dirigidos por ricos e cultos e voltados para ricos e cultos.
Outros profissionais de museus abraçaram, por um lado, com satisfação, o advento da pandemia, pois apostavam que este advento iria banir para sempre os "selfies-to-go", ou ainda, aquela horda de visitantes que entra em um museu não para contemplar os objetos, mas para tirar infinitos selfies, o que lhes incomodava em demasia.
O crítico de arte Jonathan Crary, em recente entrevista ao Jornal O Globo, acredita que não dá para consertar a internet e que é urgente pensar em alternativas ao mundo em que não se desliga. Segundo ele, não basta ajustar como usamos as redes. Mas precisamos alargar nossa imaginação social, política e inter-humana. "Pois nossa capacidade de imaginar um mundo transformado corre perigo de desaparecer. Se não conseguirmos imaginar maneiras diferentes de viver, não vamos enfrentar a mudança climática que ameaça nosso futuro. E acreditar que podemos continuar usando a tecnologia digital do mesmo jeito é uma fantasia perigosa." [2] E acrescenta: "a própria qualidade de vida humana está sendo degradada neste mundo que nunca desliga. A consequência disso é terra arrasada, é um mundo erodido, significativamente danificado. Os prejuízos não são só ambientais, mas também sociais. Somos encorajados a interagir com telas todas as horas que passamos acordados, o que elimina nossa possibilidade de sonhar acordado, de nos deslumbrar, de sentir ternura da experiência. A imaginação se tornou um fluxo contínuo e monetizado de imagens e informação e temos até medo de desligá-lo" [3]. Ou ainda, diz ele: "o complexo internético se esforça para transformar os jovens em consumidores previsíveis. E o objetivo é impedir a emergência de uma juventude como a dos anos 1960" [4].
Todavia, é preciso nos recordar o que Zygmunt Bauman nos disse sobre o nosso paradigma atual de mundo: a dúvida pós-moderna deixa de ser a que não oferece uma descrição convincente e acordada, ou seja, que homens de conhecimento reconheceriam como sua, para se transformar naquela em que o conhecimento não é a única verdade possível dos fatos, nem mesmo a melhor versão, nem sequer a única capaz de se postular a mais bem testada: a ambiguidade e a complexidade passaram a habitar cada vez mais a nossa realidade. [5]
Os museus se alargaram em termos de conceito, forma e abordagem. Há todo tipo de espaço para todo tipo de público. Desde os museus ícones como o Museu do Louvre em Paris e o Smithsonian em Washington, como o Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos em Belo Horizonte. Ou ainda o Museu do Futebol em São Paulo, que leva os moradores de rua do entorno para se apropriarem do espaço do museu. Os museus não devem ser concebidos para explicar, mas para levantar questões. Não devem ser feitos para apaziguar curadores ou profissionais de museus, mas para tirá-los o tempo todo de sua zona de conforto. Pois se os museus não se tornarem "máquinas de guerra" para gerarem espaços de pertencimento, tal como preconizava Deleuze e Guattari, e para um mundo não mais linear, mas complexo, tal como nos propôs Bauman, dificilmente serão criados espaços de pertencimento, seja para indivíduos que se sentem cada vez mais isolados, seja por conta do uso exacerbado das novas tecnologias, ou por conta das novas patologias sociais, ou ainda por um cientificismo levado a extremos. A potência do Museu de Arte Moderna do Rio na década de 60 se sobressaiu dos demais museus das demais décadas justamente por ter como premissa a “máquina de guerra" de Deleuze e Guattari que gera continuamente pertencimento na população.
A tarefa maior da sociedade está em afirmar os indivíduos e os coletivos contemporâneos, apesar de habitarmos a complexidade e a ambiguidade. Ou seja, nos fazer pensar uma ética em que os indivíduos sejam vistos fora da oposição binária "pessoa livre, responsável, autônoma, apta a escolher racionalmente" versus "ser assujeitado, irresponsável, instável, manipulável e manipulado a bel-prazer." [6]
Quando Nietzsche dizia que "Temos a Arte para não morrer da Verdade" era para escapar do cientificismo exacerbado que visionariamente antecipou para o século XX. Talvez possamos fazer uma releitura hoje deste mesmo aforisma nos questionando se a arte possui potência suficiente para nos salvar do estado de coisas do século XXI, ou seja, das patologias sociais e de nós mesmos enquanto seres individualistas, sem empatia, ensimesmados, avassalados pelo capitalismo e cada vez mais fragilizados e sozinhos.
A minha aposta, como a de Lilia Schwartz, é que as máscaras que a pandemia da Covid-19 nos obrigou a utilizar vieram para nos libertar do século XX, e inaugurar o século XXI. Os museus agora têm a escolha de permanecer no pensamento linear e dicotômico do século XX, ou se aventurarem na complexidade e na ambiguidade do pensamento do século XXI, talvez capaz de diminuir as desigualdades sociais, acalentar dores e patologias sociais, e, quem sabe, fortalecer a solidariedade e empatia entre os homens.
[i] Bacharel em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1985), mestre em Ciência da Computação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1988), mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1994) e doutora em Comunicação e Sistemas de Pensamento pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1999). Foi Diretora do Museu da República de 1993 a 2003. Foi diretora do Museu de Astronomia e Ciências Afins de 2018 a fevereiro de 2021.
[1] El País, 13 de abril de 2020.
[2] O Globo, Segundo Caderno, 08 de abril de 2023.
[3] O Globo, Segundo Caderno, 08 de abril de 2023.
[4] O Globo, Segundo Caderno, 08 de abril de 2023.
[5] Bauman, Z.; Modernidade e ambivalência, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p.252.
[6] David, G. ,La Démocratie, Mémoires et perspectives d'unprojet politique, Paris: Éditionsdu Temps, 1998, p.187
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