Ana Virginia Pinheiro [1]
Não há palavra que sintetize o significado da morte de milhares de pessoas, que aconteceu num domingo, dia 2 de setembro de 2018. Morreram todas as pessoas que contribuíram de todas as formas, ao longo milênios, para a produção dos registros do conhecimento armazenados e que queimaram no Museu Nacional do Brasil.
Naquele domingo, morreu uma multidão de pessoas que testemunhavam, através de suas representações documentais, a dignidade humana – essa energia que se pensava imortal.
Depoimentos escritos e falados acusaram o descaso com a Memória, o atraso para a Ciência, o desastre na Pesquisa, a perda da História, e enumeraram responsabilidades, como se tudo isso pudesse fazer alguém entender o porquê dessa irrevogável destruição.
Naquele domingo, morreu parte significativa da esperança por um mundo melhor. Milhares de vozes por ouvir, em registros que ainda não tinham sido desvelados pela pesquisa, silenciaram sob o fogo e não mais oferecerão seus diferentes tons à Memória, à Ciência, à Pesquisa, à História. Por isso, a perda foi grandiosa e alertou a todos sobre os riscos prenunciados em outras instituições de igual mérito.
Situação de perda equivalente e não menos dolorosa se verificou em outro domingo, dia 8 de janeiro de 2023, quando uma turba invadiu espaços de guarda da memorabilia dos poderes executivo, legislativo e judiciário, submetendo os itens até então preservados, como obras de arte, presentes protocolares, que compunham um conjunto representativo da cultura nacional, parte dele em exposição permanente, como azulejos, quadros, esculturas, tapetes, móveis, a vandalismo inaceitável.
Naquele domingo, pixações, vidros quebrados, alagamentos provocados, peças únicas rasgadas, queimadas, quebradas, despedaçadas, laceadas, amassadas, riscadas, perfuradas não traduziram a insatisfação política propalada pelos vândalos; testemunharam falta de educação patrimonial. Por isso, a dimensão do dano equivale ao tamanho da vergonha, diante da história de preservação do patrimônio da nação brasileira, amplamente divulgada na literatura, e da comoção popular, invariavelmente, desencadeada. Esta destruição não foi de todo irrevogável, por conta da qualidade dos restauradores que se empenham pelo resgate da integridade das obras atingidas; mas, alertou a todos sobre os riscos, agora não mais prenunciados, que podem ser impostos a outras instituições de igual mérito.
Um museu, assim como as bibliotecas e os arquivos, é considerado, atualmente, uma ação política, diferenciada do que era até o início deste século XXI, porque passou a ser reconhecido como parte essencial das políticas de desenvolvimento sustentável, notadamente, no que diz respeito à saúde e bem-estar globais, à qualidade de vida.
Em 2002, a Declaração de Budapeste sobre o Patrimônio Mundial, firmada no trigésimo aniversário da Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (1972), das Nações Unidas, comprometeu os Estados-parte (como o Brasil), a reconhecer o patrimônio, em toda sua diversidade, como “instrumento de desenvolvimento sustentável”. No contexto das seis ações convencionadas, três se destacam pelas afinidades com o que ora se pondera:
[...] zelaremos pela preservação de um justo equilíbrio entre a conservação, a sustentabilidade e o desenvolvimento, de modo a proteger os bens do património mundial através de actividades adequadas que contribuam para o desenvolvimento social e económico e para a qualidade de vida das nossas comunidades; [...] uniremos esforços para cooperar na protecção do património, reconhecendo que qualquer atentado a esse património constitui um atentado ao espírito humano e à herança comum da humanidade; [...] defenderemos a causa do património mundial pela via da comunicação, da educação, da investigação, da formação e da sensibilização (DECLARAÇÃO de Budapeste sobre o património mundial, [2002?], grifos nossos).
Nesse contexto, é importante resgatar o conceito original de desenvolvimento sustentável, formalizado no Relatório Brundtland, organizado pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (apud DOCUMENTO de Política para a integração de uma perspectiva de desenvolvimento sustentável..., [2015?], p. [13]): “é o desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das futuras gerações de satisfazer suas próprias necessidades”.
Em 2015, os estados membros da ONU (como Brasil) se comprometeram a adotar a “Agenda Pós-2015” ou Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, para cumprir os 17 ODS – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, até o ano de 2030 (NAÇÕES UNIDAS, 2023), a saber:
1 erradicação da pobreza;
2 fome zero e agricultura sustentável;
3 saúde e bem-estar;
4. educação de qualidade;
5. igualdade de gênero;
6. água potável e saneamento;
7 energia limpa e acessível;
8. trabalho decente e crescimento econômico;
9 indústria, inovação e infraestrutura;
10 redução das desigualdades;
11 cidades e comunidades sustentáveis;
12 consumo e produção responsáveis
13 ação contra a mudança global do clima;
14 vida na água;
15 vida terrestre;
16 paz, justiça e instituições eficazes;
17 parcerias e meios de implementação.
O museu, à luz de sua missão e funções descritas na literatura, atende, pelo menos, grosso modo, aos objetivos 4, 5,10 e 16 – que merecem análise oportuna.
A proposta do tema oficial de 2023, pelo ICOM, para o Dia Internacional dos Museus de “assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades” vem ao encontro daqueles objetivos, que ainda repercutem como ações improváveis – especialmente, diante dos dois acontecimentos descritos, no início deste texto, ocorridos num espaço de cinco anos, entre um e outro, antes que os danos do primeiro evento cicatrizassem.
Por isso, é preciso que existam museólogos, bibliotecários, arquivistas, especialistas em preservação, microfilmagem e digitalização, curadores de coleções em alerta, comprometidos com aqueles objetivos. Urge solidarizar com esses agentes invisíveis que cuidam de acervos, na expectativa de que sobrevivam em ambiente tão adverso como o da cultura nacional – são eles que resgatam a memória que se pensou perdida, eles são o caminho.
O Museu Nacional, por exemplo, dá testemunho desse empenho com a publicação de seu catálogo de obras raras – um catálogo com “caráter de antecipação de segurança, como um instrumento de declaração de propriedade e posse [...], um recurso de preservação de continente e conteúdo” (PINHEIRO, 2022, p. 19, grifos da autora), compilado e organizado por servidoras.
Os Três Poderes reiniciaram seus trabalhos, em ambientes restaurados “por trabalhadores imbuídos do senso de responsabilidade e respeito pelo bem público” (NIEDERAUER; POL, 2023).
No mais, fica a certeza de que é preciso mais – do contrário, 2030 chegará sem sustentabilidade, justiça e inclusão, sem garantia de saúde e bem-estar globais. Afinal, o lema central da Agenda é não deixar ninguém para trás.
[1] Bibliotecária aposentada da Biblioteca Nacional brasileira, onde chefiou a Divisão de Obras Raras; e professora aposentada da Escola de Biblioteconomia da UNIRIO. É sócia honorária do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Referências
- 8 de janeiro: um ataque à democracia do Brasil. Brasília: TV Senado, 27 fev. 2023. 1 vídeo (25min02s). Publicado pelo canal TV Senado. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1LNI4u2_ajo&t=15s. Acesso em: 15 maio 2023.
- BUDAPEST [Declaration/Commitment] on World Heritage. In: CONVENTION CONCERNING THE PROTECTION OF THE WORLD CULTURAL AND NATURAL HERITAGE 30th Anniversary (1972-2002), 2002, Budapest. World Heritage. Paris: Unesco, World Heritage Committee, 6 May 2002. Disponível em: https://whc.unesco.org/archive/2002/whc-02-conf202-5e.pdf. Acesso em: 15 maio 2023.
- CONFEDERAÇÃO NACIONAL DE MUNICÍPIOS (Brasil). Agenda 2023 para o desenvolvimento sustentável. Brasília, DF: CNM, 2023. Disponível em: http://www.ods.cnm.org.br/agenda-2030. Acesso em: 15 maio 2023.
- DECLARAÇÃO de Budapeste sobre o património mundial. [Tradução portuguesa]. [Portugal: s.n., 2002?]. Disponível em: https://www.patrimoniocultural.gov.pt/media/uploads/cc/declaracaoBudapestesobrepatrimoniomundial2002.pdf. Acesso em: 15 maio 2023.
- DOCUMENTO de Política para a integração de uma perspectiva de desenvolvimento sustentável nos processos da Convenção do Patrimônio Mundial,. In: [Portal do IPHAN]. [Brasília, DF]: IPHAN, [2015?]. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Politica_desenvolvimento_sustentavel_patrimonio_mundial.pdf. Acesso em: 15 maio 2023.
- FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Sobre a Agenda 2030 e os Objetos de Desenvolvimento Sustentável. Rio de Janeiro: Fiocruz, [2023]. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/sobre-agenda-2030-e-os-objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel. Acesso em: 15 maio 2023.
- INTERNATIONAL COUNCIL OF MUSEUMS. The theme – museums, sustainability and wellbeing. Paris: ICOM, 2023. Disponível em: https://imd.icom.museum/international-museum-day-2023/the-theme-the-power-of-museums. Acesso em: 15 maio 2023.
- NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Sobre o nosso trabalho para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no Brasil. Brasília: Casa ONU Brasil, 2023. Disponível em: . Acesso em: 15 maio 2023.
- NIEDERAUER, Mariana; POL, Ana Silva. Três Poderes: servidores e funcionários se unem para restaurar sedes. Estado de Minas, Belo Horizonte, 22 jan. 2023. Política. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2023/01/22/interna_politica,1447733/tres-poderes-servidores-e-funcionarios-se-unem-para-restaurar-sedes.shtml. Acesso em: 15 maio 2023.
- PINHEIRO, Ana Virginia. Os cimélios bibliográficos da biblioteca do Museu Nacional. In: OLIVEIRA, Leandra Pereira; MENEZES, Mariângela; ALVES, Vânia M. R. de Jesus (org.) Catálogo de obras raras do Museu Nacional. Rio de Janeiro: Museu Nacional/UFRJ, 2022. Disponível em: https://museunacional.ufrj.br/destaques/docs/catalogo-obras-raras-mn/Catalogo_Obras_Raras_MN_DIGITAL.pdf. Acesso em: 15 maio 2023.
- SOUZA, Talita de. Incêndio no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, completa três anos; relembre. Correio Braziliense, Brasília, DF, 2 set. 2021. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/09/4947344-incendio-no-museu-nacional-no-rio-de-janeiro-completa-tres-anos-relembre.html. Acesso em: 15 maio 2023.
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