Thiago Cirne [1]
1 GUTENBERG E A EXPLOSÃO DA INFORMAÇÃO
Peter Burke analisa, em seu artigo Problemas causados por Gutenberg, algumas consequências imprevistas a partir da invenção da imprensa de tipos móveis, chamadas por ele de “efeitos colaterais”. Segundo o autor, parece ser inevitável que nas atividades humanas todas as soluções de um problema, cedo ou tarde, acabem por gerar outras dificuldades.
Para tal sustentação, Burke evoca as consequências da Revolução Industrial, onde muitos operadores de teares manuais não conseguiram competir com a então nova tecnologia. Lembra também da presença de mão de obra infantil nas novas fábricas (2002, p. 174).
No caso da imprensa, consta a descrição, do humanista francês Guillaume Fichet, segundo a qual ela seria um “cavalo de Tróia”. Essa visão foi corroborada pelo fato de diferentes grupos sociais levantarem, à época, críticas ao novo instrumento. Copistas, vendedores de livros manuscritos e contadores de histórias estavam entre aqueles que temiam que a imprensa os privaria de seu meio de vida (BURKE, 2002, p. 174).
A divulgação de impressos e o crescimento no número dos leitores trouxe preocupações de âmbito político e religioso. Alguns perguntavam se a invenção da tipografia não traria mais malefícios do que vantagens (2002, p. 174), uma vez que os leitores poderiam analisar textos por conta própria e não seriam, a rigor, submissos às autoridades.
Subsequente à invenção da imprensa o autor identifica a “explosão” da informação, que trouxe a necessidade de novos métodos de gerenciamento de informação. Para Burke, se na Idade Média o problema era a escassez de livros, no século XVI o problema era a superfluidade, o que alguns consideravam como uma “desordem de livros”, que necessitava de controle.
Para a classe de bibliotecários o problema também estava formado. Com o crescimento de acervos era necessária a projeção de novos prédios para o armazenamento dos exemplares, o que, àquela altura, exigiria financiamentos (BURKE, 2002, p. 176). Outro questionamento a ser refletido era o acesso e a consulta às obras. Imprimiram-se alguns catálogos e a elaboração de uma bibliografia impressa entrou em pauta. Surgem, então, bibliografias gerais e, posteriormente, bibliografias específicas e livros de referência.
As demandas informacionais causam impactos editoriais nos livros impressos, em função de sua estrutura e organização, como no caso do surgimento da ordem alfabética em substituição à organização por assunto. Surgem novas ocupações como editores, revisores, além dos bibliotecários, indexadores e compiladores (2002, p. 181).
A partir das implicações causadas pela tipografia e pelo desenvolvimento editorial, Peter Burke (2002, p. 183) salienta que “tudo o que se poderia fazer nas novas circunstâncias era tentar evitar a mesquinhez intelectual pelo incentivo ao ‘espírito filosófico’, estabelecendo conexões e extraindo as implicações mais amplas de estudos especializados”.
2 ENTRE SOCIEDADE E INFORMAÇÕES
Organização da sociedade, vigilância e os modernos aspectos informacionais são alguns dos tópicos presentes no trabalho de Helio Ferreira Jr. a partir de uma abordagem histórica e tecnológica, chamando, para tanto, a atenção às propostas de Paul Otlet.
Desde 1916, ainda longe do fim da Primeira Guerra Mundial, Paul Otlet já previa a inevitável interdependência internacional que resultaria daquele conflito mundial (FERREIRA JR., 2006, p. 10). Otlet entendia que cumpria conscientizar e organizar a sociedade civil em prol de uma organização mundial da informação. O autor menciona o Mundaneum [“Cidade do conhecimento”, antigo Palais Mondial] para o qual estaria reservado o papel de ajudar a transformar a interdependência dos países em solidariedade dos povos (2006, p. 10).
Ferreira Jr. cita o regime do Panoptismo, que tem suas raízes no esquema de quarentena empregado no século XVII, que se caracterizava pela constante vigilância da população em esquema disciplinar. Todos poderiam ser vigiados com o objetivo de enclausurar, observar, caracterizar, classificar e controlar o indivíduo.
Em qualquer das suas aplicações imaginadas (prisão, hospital, empresa, escola etc.), sempre a busca incessante pela eficiência no exercício do poder. Pela redução dos recursos empregados, pela extensão de seu alcance a todos os elementos da comunidade envolvida, pela multiplicação dos controlados e, principalmente, pela utilização, inconscientemente voluntária, da contribuição dos próprios esforços dos vigiados para a obtenção do resultado final (FERREIRA JR., 2006, p. 12).
Considera ainda a metáfora do panóptico em Foucault:
Em Foucault, o panóptico podia ser visto como uma metáfora do moderno poder disciplinador, sempre que baseado em isolamento e supervisão, tal que os indivíduos se sentissem forçados a policiar a si próprios, agindo sempre de tal forma a prevenir punição por parte de seu controlador. Para ele, todos, em alguma circunstância, exercem poder de vigilância e controle sobre outrem. Mas, se as relações de poder são inerentes a todo agrupamento humano, disto não decorre, necessariamente, que sua criação seja privilégio do poder dominante, vale dizer, do Estado. Na verdade, em sociedade, existem inúmeras relações de poder das quais não participa o Estado e que, inclusive, estão fora do alcance da atuação estatal (FERREIRA JR., 2006, p. 12).
Helio Ferreira Jr. comenta a distância deste quadro da idéia de Otlet sobre a biblioteca universal. Esta era concebida como um repositório do saber mundial e informada pelos princípios de “totalidade, simultaneidade, gratuidade, voluntariedade, universalidade e mundialidade”. Aponta que no conjunto desses princípios, em mais uma evidência de sua capacidade de sonhar o futuro, “poderíamos enxergar as raízes do projeto contemporâneo do acesso livre. Na verdade, recuando ainda mais no tempo, vários autores imaginaram encontrar na Internet os ecos de uma Ágora ateniense” (FERREIRA JR., 2006, p. 12).
Mas o próprio autor demarca pontos que merecem atenção. Ele propõe uma reflexão segundo a qual a Ágora grega, e outras mais que lhe pretenderam suceder, não era privilégio de todos, sequer da maioria. “Não obstante, a possibilidade de uma Ágora contemporânea, baseada na democratização do conhecimento por meio da internet, ainda segue sendo um sonho perseguido por muitos” (2006, p. 13).
Aqui mora um dos principais problemas identificados por Ferreira Jr, sob o ponto de vista tecnológico informacional. A possibilidade de acesso amplo e eficiente tem sua moeda de troca na perda de privacidade através da vigilância (panoptismo) digital. Assim como na Ágora grega, o privilégio digital que ofereça liberdade a todos não parece ser claro. Estar suscetível ao monitoramento de empresas, gravação de dados em cookies e rastreamento através de cliques em janelas publicitárias, como indica o autor, é uma das formas de vigilância mais presentes no século XXI.
3 CARTAS E LISTAS: DISCUSSÃO E QUESTIONAMENTOS
O terceiro texto a ser apresentado nesta resenha, intitulado Das cartas iluministas às listas de discussão, foi escrito em 2000, momento em que a web, no Brasil, ainda não havia completado sequer uma década de popularização. Não por isso seu teor perde relevância. Ao contrário, torna-se renovado se transposto para os atuais espaços de discussão.
Conforme analisam as autoras Solange Puntel Mostafa e Marisa Terra, em uma abordagem retrospectiva, as primeiras revistas científicas nasceram como um prolongamento das cartas científicas do século XVII:
as cartas eram enviadas para as sociedades científicas que as imprimia, divulgando-as para a comunidade, como foi o caso da Royal Society of London. Já nessa época a superprodução de livros levava Barnaby Rich afirmar em 1613: ‘Uma das doenças desta época é a multiplicidade de livros; sobrecarregam o mundo de tal maneira que não é possível digerir a imensa quantidade de matéria inútil que cada dia deabrocha e é lançada ao público’ (MOSTAFA; TERRA, 2000).
Constam relatos sobre a irritação e resistência de Isac Newton com relação à publicação rápida e periódica dos seus escritos antes que eles tivessem adquirido maturidade e formato completo para ser exibido na forma de livro (MOSTAFA; TERRA, 2000). Diante deste quadro, informam as autoras, as primeiras revistas nascem para repertoriar os livros, resenhando-os e permitindo aos europeus a "navegação" às livrarias européias através das revistas de resumo e ou comentários dos livros.
Neste ponto discute-se a questão da atualização prescindindo dos contatos pessoais e das viagens. “Foi só numa segunda fase, a partir de 1850 que as revistas científicas começam a assumir a funcionalidade que elas tem hoje, a de serem veículos para contribuições originais que denotam a noção de rede na estrutura cumulativa da ciência” (MOSTAFA; TERRA, 2000).
O trabalho debate ainda sobre a ideia de que a publicação orienta os cientistas no desenvolvimento dos seus temas, onde “ocorrem muito menos coincidências na corrida pelo ouro da descoberta científica do que em séculos anteriores”. Vale perguntar-nos se a ciência continua a ser a representação privilegiada do real e mais que isso, em que medida as páginas web do tipo comerciais são menos nobres que as páginas ditas informacionais (acadêmicas). Em que medida as páginas pessoais (as homepages) são mais ou menos arbitrárias do que as páginas que passaram pelo processo do "peer review" (MOSTAFA; TERRA, 2000).
Outra abordagem visível no artigo é se “os pares do atual colégio invisível chamado Internet são numerosos demais para que se destaque um grupo avaliador privilegiado. A ausência de controle ou de centro controlador faz a novidade da Internet” (MOSTAFA; TERRA, 2000). Reflete-se que a ciência que sempre foi ciosa de seu afastamento do senso comum agora ficou muito perto dos discursos comuns, podendo ser confundida com eles e com o meio que a veicula.
As cartas científicas de séculos passados transformaram-se nas listas de discussão dos tempos atuais. “Mas as listas não são mais assinadas apenas por Newton, Laplace ou Voltaire como eram as cartas científicas do iluminismo. Nem referem-se apenas à física, astronomia ou filosofia. Todos discutem sobre tudo” (MOSTAFA; TERRA, 2000).
Conclui as autoras que ainda é necessário encontrar nas listas de discussão - à época uma das maiores novidades da Internet - os pontos comuns com as cartas iluministas da ciência: “aqui também as listas funcionam como quadro de avisos, serviços de alerta ou discussão propriamente dita. Tal como as cartas nunca foram exclusividade da ciência, também as listas são assinadas por mensageiros diversos” (MOSTAFA; TERRA, 2000).
4 CONCLUSÃO
Os textos apresentam visões sobre momentos em que o volume de informações publicadas, tanto em meio impresso como em ambientes digitas (assim como sua exposição e circulação), causaram impactos sobre diversos segmentos da sociedade, em épocas distintas.
O debate apresentado pelos autores pode ganhar ainda mais ênfase se confrontados com os veículos atuais como os blogs e as recentes mídias sociais. Observa-se uma crescente apropriação destes recursos como espaço de divulgação de informações de interesse científico, cultural e social.
Mostafa e Terra lembram que a “ausência de controle ou de centro controlador faz a novidade da Internet”. Será que tal barreira seria intransponível após as evoluções tecnológicas contemporâneas?
Se em Gutenberg saímos dos “livros de menos”, para os “livros demais”, no século XXI deixamos aos poucos (ou pretende-se deixar) a exclusão digital e caminhamos para a inclusão compulsória (cf. Burke; Ferreira Jr.). Em Burke, Ferreira Jr. e Mostafa e Terra encontramos, então, a convergência de necessidades comuns a todos os suportes e recursos informacionais: a adequada mediação da informação e o comportamento da sociedade frente às transformações do porvir.
Bibliografia
BURKE, Peter. Problemas causados por Gutenberg: a explosão da informação nos primórdios da Europa moderna. Estudos avançados, São Paulo, jan./abr. 2002, n. 44, v. 16, p. 173-185.
FERREIRA JR., H. da. Otlet, realizador ou visionário? O que existe em um nome? Ci. Inf., Brasília, v. 35, n. 2, p. 9-16, maio/ago. 2006.
MOSTAFA, Solange Puntel; TERRA, Marisa. Das cartas iluministas às listas de discussão. Datagramazero: Rev. de Ci. Inf., v. 1, n. 3, jun. 2000.
Postado em: segunda-feira, 16 de julho de 2015 | 16:29 por Editoria RM
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