Sérgio Lima Silva

[1]

Sérgio Lima Silva [2]

Peço perdão pela minha ignorância
Eu venho assim desde a minha infância
Itamar Assumpção

Walter Benjamim entra num shopping center de uma cidade contemporânea. Está à procura de Giorgio Agamben. E, finalmente, o encontra na praça de eventos, com o seu kit multimídia de apresentação de conferências. A praça está cheia, inúmeros consumidores circundam Agamben, enquanto os parapeitos dos andares acima estão ocupados por crianças barulhentas. Após várias tentativas inúteis de aproximação junto à Agamben, Benjamim permanece desconfortável entre as pessoas. De repente, uma menina (utopia?) surge ao seu lado e lhe oferece uma Coca-Cola.

Agamben, retira do bolso do casaco Armani, um pendrive Kingston de 64 GB, e o conecta ao seu Macbook Pro com tela Retina de 15 polegadas, com processador Intel Core i7 quad-core de 2.8 GHz e 1 TB de memória flash, e sistema operacional Apple Mac OS X, de última geração. O tema da conferência aborda a utilização daquele espaço comercial como um templo do capitalismo, do trabalho como liturgia, e o dinheiro como objeto. Há uma clara tentativa do conferencista em converter os seguidores do capitalismo em profanadores do shopping.

O público consumidor, ao perceber a intenção do conferencista, fica indignado e, rapidamente, começa a se retirar da praça. Curiosamente, apenas as crianças permaneceram, e o encorajavam a continuar a palestra. Elas demonstravam alegria, e entendiam que estavam diante de uma nova brincadeira. E, com ansiedade, esperavam o momento em que aquela brincadeira pudesse se tornar mais duradoura. Enquanto isso, a menina (utopia?) da Coca-Cola, olhava fixamente para Agamben, demonstrando aprovação.

O que devemos fazer com as nossas profanações? A partir dos conceitos de Benjamim e Agamben, como devemos nos comportar diante do que nos é imposto como religião? Sem que ao menos soubéssemos que somos seguidores? Estes questionamentos talvez sejam respondidos durante a elaboração desse texto. Ou muito provavelmente, não conseguiremos respostas. O que importa, nesse momento, é a tentativa de resolução do problema proposto.

A utilização dos museus como instrumentos de profanação nos leva, em princípio, a questionar que tipo de museu está sendo proposto como instrumento de profanação. A proposição carrega essa sutileza: o museu não como local, mas como instrumento. Entre os diversos conceitos de museu, encontramos, inicialmente, o entendimento do museu vinculado às musas por herança materna – são locais de guarda de memória (NORA, 1984). Por outro lado, há a vinculação com a herança paterna, o patrimônio, com configurações de dispositivos de poder (CHAGAS, 2009). E tal como dispositivo de poder, seu conceito é institucionalizado, conforme o Sistema Brasileiro de Museus:

Os museus são casas que guardam e apresentam sonhos, sentimentos, pensamentos e intuições que ganham corpo através de imagens, cores, sons e formas. Os museus são pontes, portas e janelas que ligam e desligam o mundo, tempos, culturas e pessoas diferentes. Os museus são conceitos e práticas em metamorfose.

O ICOM – Comitê Internacional de Museus, aprovou na 20ª Assembleia Geral em Barcelona, no dia 6 de julho de 2001, a seguinte definição:

Instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público e que adquire, conserva, investiga, difunde e expõe os testemunhos materiais do homem e de seu entorno, para educação e deleite da sociedade.

Estamos diante de dois conceitos oficiais, enquanto o ICOM nos oferece um conceito frio e burocrático, o Sistema Brasileiro de Museus, nos encaminha para um conceito poético, e finaliza enfatizando que esses conceitos e práticas estão em metamorfose. O conceito apresentado pelo Sistema Brasileiro de Museus, por si só, merece um estudo mais aprofundado, não sendo esse o momento desse aprofundamento, o utilizaremos como contraponto ao conceito de museu apresentado por Agamben:

Museu não designa, nesse caso, um lugar ou espaço físico determinado, mas a dimensão separada para a qual se transfere o que há um tempo era percebido como verdadeiro e decisivo, e agora já não é. (AGAMBEN, 2007, p.73)

O conceito de Agamben habita o mundo das ideias. A partir dos conceitos do sagrado e do profano, ele aponta o museu como o tópico exemplo da não utilização do objeto. Entendemos que o objeto se torna sagrado, ao ser retirado da esfera do direito humano, por outro lado, ocorre a sua profanação, quando do retorno, deste mesmo objeto, ao uso humano.

Observa-se, ainda, que em seu conceito de museu, ele atribui ao objeto sacralizado propriedades de verdade e decisão, propriedades que se perdem ao serem sacralizadas, significando que as coisas incluídas nesse espaço denominado museu, perdem a sua potência, conclui ser uma dimensão separada de transferência de objetos despotencializados.

Apresentados os conceitos de museu, e as ideias de sagrado e profano a partir de Agamben, voltamos ao problema da utilização desse espaço como instrumento de profanação. Precisaremos, primeiramente, estabelecer qual dos conceitos de museu, ora apresentados, será o mais adequado para a proposição. A partir do conceito institucional e burocrático do ICOM, a utilização dessa noção de museu, como instrumento de profanação, torna-se impossível. Os objetos materiais do homem e seu entorno - elementos que a instituição retirou da convivência humana – tornam-se objetos prisioneiros de um espaço “aberto ao público”. Há, nesse espaço delimitado, regras institucionalizadas que não permitem sequer o toque do visitante, e a forma mais simples de profanação é o toque. (AGAMBEN, 2007).

Por outro lado, há o interessante conceito do Sistema Brasileiro de Museus, onde a instituição museu é apresentada como um local de guarda de sonhos, pensamentos, sentimentos e intuições. A partir desse conceito, a possibilidade da utilização do museu, como instrumento de profanação torna-se possível, uma vez que sonhos, pensamentos, sentimentos e intuições, são passíveis de profanação, simplesmente ao serem revelados. Enquanto habitantes do terreno do imaginário e da afetividade, estão sacralizados, enquanto são profanados, no momento da revelação. Evidencia-se que este último conceito, embora poético – e talvez por sê-lo – não tem utilidade prática, desconhecemos museus onde os sonhos, pensamentos, sentimentos e intuições, liga e desliga mundos diferentes.

Antes de abordarmos o conceito de museu utilizado por Agamben, precisamos esclarecer o que o fez chegar até a este conceito. Agamben recorre a Walter Benjamim para estabelecer o capitalismo como uma religião. A religião, segundo Agamben, não significa religar a divindade com o humano, significa o que os distingue. Essa distinção, permite à religião não se opor à descrença e ao desprezo, mas se opor à negligência, ou seja, uma atitude displicente em relação ao “religio das normas”. Diante disso, ele considera profanar, também, a possibilidade de negligenciar essa distinção entre sagrado e profano.

Num segundo momento, Agamben cita os jogos surgidos a partir dos rituais sagrados. Alguns rituais sagrados, foram profanados, e se transformaram e jogos. Embora a “religião capitalista” tenha tornado essas atividades parte do culto capitalista, logo, improfanáveis.

No texto de Agamben, apresentado na proposição, as crianças encorajam, fanaticamente, Dom Quixote, no seu intento de salvar Dulcinéia. As crianças entram no jogo do herói, o sagrado jogo do cinema sacralizado pelo capitalismo, foi profanado pelo devaneio do cavaleiro e, juntando-se a ele, as crianças entendem a situação como uma brincadeira a ser compartilhada.

(...) Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor,
mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. (...)
(MANOEL DE BARROS, 1993)

Há, a partir da lógica infantil, a possibilidade da utilização do museu como instrumento de profanação. Não existe, para uma criança, a percepção do verdadeiro e do decisivo. Como na canção de Itamar Assumpção, mencionada na epígrafe, onde o personagem consegue manter a “ignorância infantil”, e pede perdão, ou o que observamos no poema de Manoel de Barros, a criança escuta a cor dos passarinhos, ao mudar a função de um verbo e, com isso, provocando o seu delírio. Podemos imaginar que a curadoria de uma criança, seria puro delírio. Documentos de relevância absurda, para os adultos, se transformariam em papéis de desenhos ou em pipas. Vasos raros se transformariam em panelas de comidas imaginárias. A entrega da gestão do museu para as crianças, seria um ato agudo de utilização do museu como um instrumento de profanação.

Cabe ressaltar que essa gestão imaginária dos museus por crianças, pode ser aplicada para quaisquer tipos de conceitos aqui apresentados, ou outros conceitos que, de qualquer forma, não fogem das características aqui apresentadas. Um museu tradicional ou um museu do sonho, tanto faz, para o imaginário infantil, essas diferenças, não são relevantes.

Essa perspectiva é absolutamente possível. Estaríamos aqui diante do perfeito acontecimento da utopia: a menina que oferece Coca-Cola a Benjamim e, ao mesmo tempo, ri com aprovação para Agamben durante o seu discurso. Caso em algum momento esse fato acontecesse, o capitalismo tornaria esse ato de profanação, em algo improfanável, pois absorveria esse acontecimento como parte do ritual capitalista. Como no caso da atriz pornô que olha para a câmera, profanando a ação do filme (AGAMBEN, 2007), e este gesto é incorporado ao ritual capitalista, todas as atrizes passam a olhar para a câmera e, logo, se torna algo improfanável.

Poderíamos citar outros exemplos de conversão – utilizando um termo religioso – os casos clássicos do mictório e da roda de bicicleta de Marcel Duchamp. Sua ideia inicial de profanar o museu com objetos de consumo e a conversão pelo museu dessas obras como parte do seu acervo, sacralizando-as. Outro caso recente, é o do grafiteiro inglês Banksy, cujas obras carregam uma grande carga crítica ao governo inglês, inclusive alguns dos seus grafites foram cobertos por tinta preta – embora as autoridades inglesas neguem ter sido sua iniciativa – no entanto, algumas obras de Banksy estão sendo comercializadas, catalogadas e já constam em algumas galerias londrinas.

Por este motivo, a impossibilidade de profanação no museu, ou a impossibilidade de utilização do museu como instrumento de profanação, torna a instituição museu um local ideal para a utilização da analogia: capitalismo e religião (AGAMBEN, 2007). A museificação do mundo, transformou os museus em templos onde se celebra a impossibilidade do uso.

Agamben propõe, a partir da questão da profanação da defecação – visto tratar-se de uma separação que ocorre na esfera do corpo – desconsiderando, ainda, todas as implicações sociais e psicológicas do ato da defecação, uma nova maneira de utilização das fezes como faz as crianças, antes da proibições e repressões, mais uma vez a atividade infantil, como já citada anteriormente, permite a profanação de um ato.

Retornar o objeto sagrado ao seu uso anterior não é uma simples profanação, é necessário buscar um novo uso, como fazem as crianças. Segundo Agamben, novas formas de uso, só poderão ser conseguidas de maneira coletiva. A pergunta que deixamos para reflexão é: a sociedade atual quer adotar novos usos para antigos objetos? Quer abandonar a religião capitalista? Agamben acrescenta que tentativas individuais, na busca dessas respostas, não passarão de meras paródias, como a que inicia esse texto.


[1] Problema apresentado na Disciplina Comunicação e Museus, no curso de Museologia do Departamento de Museologia e Antropologia da UFPE, pelo Professor Doutor Francisco Sá Barreto, no ano de 2013.

[2] Museólogo. Escritor.


Referências

  • AGAMBEN, Giorgio. Profanações. RJ, Boitempo Editorial: 2007.
  • ASSUMPÇÃO, Itamar. Às próprias custas. LP. SP, Baratos Afins: 1981.
  • BARROS, Manoel de. O livro das ignorãças. RJ, Ed Civilização Brasileira, 1993.
  • BENJAMIM, Walter. O capitalismo como religião. RJ, Boitempo Editorial: 2013.
  • CHAGAS, Mario. Memória e Poder: Dois movimentos. Cadernos de Sociomuseologia, v.19, n. 19, junho 2009. ISSN 1646-3714. Disponível em: <http://revistas.ulusofona.pt/index.php/cadernosociomuseologia/article/view/367>. Acesso em: 23 Abr 2013.
  • NORA, Pierre. Entre história e memória. A problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo: PUC, vol.10, n.10, p.7-28, dez/1993.

 

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