Bianca Luiza Freire de Castro França [1]
O Museu Nacional, antes do incêndio de setembro de 2018, que destruiu grande parte de suas coleções formadas por 20 milhões de itens de Zoologia, Arqueologia, Etnologia, Geologia, Paleontologia e Antropologia Biológica, possuía salas de exposições organizadas em seções: Evolução da Vida (a história da Terra e dos primeiros seres que a povoaram), Nos Passos da Humanidade (a evolução do Homem), Culturas Mediterrâneas (arte e artefatos greco-romanos), Egito Antigo, Arqueologia Pré-colombiana (arte e artefatos dos povos que habitavam as Américas), Arqueologia Brasileira (onde se destacava Luzia, o esqueleto mais antigo das Américas), Etnologia Indígena Brasileira (a diversidade, a arte e o engenho dos índios brasileiros) e Culturas do Pacífico, além das diversas seções dedicadas à Zoologia [2].
A sala de Etnologia Indígena Brasileira foi inaugurada no dia 28 de novembro de 2008, com apoio da Caixa Econômica Federal, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Associação de Amigos do Museu Nacional, com curadoria do antropólogo Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira (PPGAS – Museu Nacional/ UFRJ), também curador do acervo do Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional.
A exposição era formada por 142 peças dispostas em: um tablado central do rito da Moça Nova [3] com 11 máscaras; uma vitrine com um barrete de penas que foi reproduzido em aquarela no então Museu Imperial de História Natural do Rio de Janeiro por Jean-Baptiste Debret em 1822; uma vitrine com uma máscara com “cara de macaco”, que foi reproduzida, também, por Jean-Baptiste Debret em 1817 - 1829; uma vitrine de cestaria com 30 peças; uma vitrine de cerâmica com 30 peças; um painel de armas com 24 peças; uma vitrine de instrumentos musicais com 24 peças; uma vitrine de arte plumária com 09 peças; um mapa de localização dos grupos indígenas brasileiros; um painel com remos e canoas; um painel com texto explicativo sobre os Ticuna e um painel com texto sobre o rito da Moça Nova.
Segundo João Pacheco de Oliveira [4], a concepção da exposição partiu de um desenho feito por ele e adaptado pela museóloga Fátima Nascimento com montagem da historiadora e museóloga Thereza Baumann. A ideia inicial da montagem da sala era recuperar o movimento da dança dos mascarados em torno do “curral” da Moça Nova. Toda a sala seria montada em torno da reprodução dessa dança. No espaço central da sala, onde se encontrava um tablado central com as máscaras em exposição, seria montado o “curral” feito com tururis [5] e totalmente vedado, com as máscaras ao redor. O efeito pensado seria de o visitante passar pelos dois lados, fazendo um movimento circular como se dançasse junto com os mascarados ao redor da moça, que estaria “confinada” dentro do “curral”, o que contribuiria para a interpretação da lógica do rito. Um indígena Ticuna, provavelmente ligado ao Museu Magüta [6], seria convidado para contribuir com a montagem.
Porém, o material requisitado para montagem do “curral” não pode ser enviado, bem como, o indígena Ticuna convidado não pode vir ao Rio de Janeiro na ocasião. Diante de tantas intempéries, foi necessário procurar uma solução museológica possível. Foi montada a nave central com as máscaras expostas, conforme as imagens a seguir.
Imagens 01 e 02: Exposição permanente Sala de Etnologia do Museu Nacional.
Fonte: Relatório Final da Exposição. Setor de Museologia do Museu Nacional (SEMU/ Museu Nacional)
Quanto à participação de indígenas Ticuna na inauguração da exposição, João Pacheco diz que na época convidaram sim, porém, apenas a liderança indígena Nino Fernandes (* 1954 – 2018+) [7] compareceu enquanto diretor do Museu Magüta, na época.
A importância de rememorar esta exposição, ainda que brevemente, se dá pelo fato da mesma ter se perdido em sua totalidade não podendo ser recuperada. As peças desta exposição se destacavam por serem produzidas no século XX pelos herdeiros dos primeiros povos indígenas do Brasil. Todas as peças provinham da reserva técnica do Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional.
Na exposição, os objetos refletiam os conhecimentos, usos e rituais indígenas trazendo aos visitantes uma amostra da produção criativa, e maravilhosa, dos povos indígenas brasileiros que permaneceram presentes e manifestando-se ao longo da cena política e cultural do país.
Uma interessante alternativa para a curadoria do Setor de Etnologia e da exposição, seria a montagem, com colaboração dos museus indígenas brasileiros como o Museu Magüta, de uma nova exposição de Etnologia Indígena Brasileira, aos moldes da exposição Quando Nem Tudo era Gelo – Novas Descobertas no Continente Antártico, que é a primeira exposição do Museu Nacional após o incêndio e que foi montada no prédio do Museu e Centro Cultural Casa da Moeda [8]. Ou quem sabe, ainda, uma exposição itinerante como a exposição Os Primeiros Brasileiros [9], também de curadoria de João Pacheco de Oliveira. Quem sabe, nessa nova montagem, com curadoria participativa dos povos indígenas, realizem a primeira ideia de exposição com a construção de um curral da Moça Nova com máscaras doadas pelos indígenas? Trazendo inclusive uma nova leitura para a exposição a partir do olhar de consultores indígenas.
Enquanto tal ideia surge apenas enquanto uma sugestão, dessa ex-estagiária do Setor de Etnologia e apaixonada pelo Museu Nacional, rememoramos essa exposição tão querida. Continuamos, pois navegar é preciso.
[1] Mestra em Preservação de Acervos de Ciência e Tecnologia (PPACT/ MAST). É pesquisadora, licenciada em História (Unirio, 2015) e especialista em Sociologia (UCAM, 2017). Pesquisa os Ticuna e as coleções de objetos Ticuna que formam o acervo do Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional desde 2013. Trabalha desde 2017 com acervos digitais de antropologia e etnologia. Seus interesses acadêmicos giram em torno dos processos de formação de coleções etnográficas no século XX e da revisitação, releitura e curadoria participativa dos acervos etnográficos dos indígenas brasileiros pelos povos que os produziram. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
[2] Retirado do site do Museu Nacional. Disponível em:<http://www.museunacional.ufrj.br/dir/exposicoes/index.html>. Acesso em: 11 de fev. de 2019.
[3] A Festa da Moça Nova se trata de um rito de passagem feminino dos indígenas Ticuna, de significado complexo e de muita importância para este povo. Quando da primeira menstruação da moça, esta é confinada em um local especialmente confeccionado para a clausura, sob cuidados das mulheres da família e durante todo o rito homens mascarados dançam no entorno deste “curral”, a fim de tentá-la. No rito as moças aprendem como se comportar enquanto mulheres adultas e os mascarados representam entidades da floresta que também representam os perigos do mundo. Para saber mais sobre o Rito da Moça Nova ver em: NIMUENDAJÚ (1952); CARDOSO DE OLIVEIRA (1964; 2000); FAULHABER (2000, 2007a, 2007b); REIS E SILVA (2009; 2010); OLIVEIRA FILHO (1977; 1988a; 1999; 2000; 2016); COSTA (2017); FRANÇA (2018).
[4] Em entrevista concedida no dia 19 de dezembro de 2017 em sua sala no Departamento de Antropologia do Museu Nacional.
[5] “Entrecasca de árvore das famílias Lecitidáceas, Esterculiáceas e Moráceas. Na Amazônia, o líber (ou tapa) é conhecido sob a alcunha de tururi. É empregado pelos indígenas na indumentária cotidiana e, sobretudo, a ritual de dança, para fazer painéis decorativos para divisórias das malocas, escabelos, aventais pintados masculinos, tipoias, saquinhos, etc.” (RIBEIRO, BERTA G., 1988, p.189)
[6] Museu fundado em articulação entre pesquisadores do Museu Nacional e lideranças Ticuna, no ano de 1986 no município de Benjamin Constant. Para saber mais sobre o Museu Magüta ver em: OLIVEIRA FILHO, 2012
[7] Ver mais sobre Nino Fernandes em: <https://osbrasisesuasmemorias.com.br/nino-fernandes/>. Acesso em: 10 de jan. 2019
[8] Ver sobre a exposição em:< https://oglobo.globo.com/rio/museu-nacional-organiza-primeira-exposicao-apos-incendio-23377312>. Acesso em: 11 de fev. de 2019
[9] A exposição é resultado de um projeto de pesquisa desenvolvido há muitos anos pelo antropólogo João Pacheco de Oliveira, com participação e apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da FAPERJ, que tem por objetivo rever a história do Brasil assinalando as formas pelas quais os indígenas do Nordeste foram vistos e incorporados.As peças coletadas para a exposição fazem parte de uma relação dialógica de parceria com indígenas de vários povos, os quais doaram ou venderam peças em comum acordo, inclusive político, com o antropólogo em visita às aldeias. Além do consentimento, houve a participação ativa dos indígenas na produção e escolha das peças, que muitas vezes foram entregues com recomendações escritas a serem tomadas para preservação e exposição das mesmas.A exposição passou por outras seis capitais: Brasília (DF), Recife (PE), Fortaleza (CE), Rio de Janeiro (RJ), Natal (RN), e Salvador (BA), além de Córdoba, na Argentina, em 2013. Ver mais em: Para saber mais sobre a exposição Os Primeiros Brasileiros, ver em:<http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-09/unicas-pecas-do-acervo-indigena-do-museu-nacional-estao-em-brasilia>. Acesso em: 06 de jan. 2019.
Referências
- CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. A imagem dos Tükúna no contexto de um trabalho antropológico: fotografias de Roberto Cardoso de Oliveira. Revista de Antropologia, 2000, v. 43, n. 1, p. 239-246.
- _______________________________. O índio e o Mundo dos brancos. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 3ª edição, 1964.
COSTA, May Anyely Moura da. “Nós, Ticuna, temos que cuidar da nossa cultura”: um estudo sobre o ritual de iniciação feminina entre os Ticuna de Umariaçú I, Tabatinga, Alto Solimões (AM). Manaus: EDUA, 2017. - FAULHABER, Priscila. O ritual e seus duplos: fronteira, ritual e papel das máscaras na festa da moça nova Ticuna. In: Boletín de AntropologíaUniversidad de Antioquia, 2007a, v. 21, n. 38, p. 86-103
- _________________. Refletindo sobre as Máscaras Ticuna. In: GT Antropologia Indígena. XXIV Reunião Anual da ANPOCS, 2000.
- _________________. Interpretando os artefatos rituais Ticuna. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 2007b, n. 17, p. 345-363.
- FRANÇA, Bianca Luiza Freire de Castro. “Mil peças”: coleções Ticuna do Museu Nacional no contexto da Antropologia (séculos XX - XXI). 2018. Dissertação (mestrado) – Curso de Preservação de Acervos de Ciência e Tecnologia, PPACT, Museu de Astronomia e Ciências Afins, Rio de Janeiro, 2018.
- NIMUENDAJÚ, Curt. The Tukuna. Berkeley-Los Angeles: University of California Publications in American Archaeology and Ethnology, 1952, v. 45.
- OLIVEIRA, João Pacheco. As facções e a ordem política em uma reserva Ticuna. 1977. Dissertação (Mestrado em Antropologia). UnB, Brasília, 1977.
- ____________________. ´ O Nosso Governo ´. Os Ticuna e o Regime Tutelar. Rio de
- ____________________. Os Atalhos da Magia. Reflexões Sobre Os Relatos dos Naturalistas Viajantes e A Etnografia Indígena. Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi. Belém, 1988.
- ____________________. A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. Rio de Janeiro: Contracapa, 1999.
- ____________________. Máscaras: objetos étnicos ou recriação cultural? In: BRITO, Joaquim Pais de. Os Índios, Nós. Lisboa: Museu Nacional de Etnologia, 2000, p.308-314
- ____________________. A refundação do Museu Magüta: etnografia de um protagonismo indígena. In: MAGALHÃES, Aline Montenegro & BEZERRA, Rafael Zamorano (orgs.). Coleções e colecionadores. A polissemia das práticas. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2012
- ____________________. A Epifania das Máscaras. Revista Museologia e Interdisciplinaridade. 2016, v. 5, p. 77-87.
- REIS E SILVA, Hiram. Os Tikunas e o Ritual da Moça Nova. 2009. Disponível em: < https://pbrasil.wordpress.com/mudamos-para-www-planobrasil-com/espaco-do-leitor/amazonia-nossa-selva/os-tikunas-e-o-ritual-da-%E2%80%98moca-nova%E2%80%99/>. Acesso em: 17 de jan. 2018.
- ___________________. Desafiando o rio-mar: descendo o Solimões. Porto Alegre: PUC-RS, 2010.
- MUSEU NACIONAL. Relatório Final da Exposição Sala de Etnologia Indígena Brasileira. Setor de Museologia do Museu Nacional (SEMU – Museu Nacional/UFRJ), 2008.
- RIBEIRO, Berta. Dicionário do Artesanato indígena. Coleção Reconquista do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, s. 3, v. 4, 1988.