Luciana Pasqualucci [1]
As narrativas criadas no museu e difundidas fora dele são, de certo modo, resultado de um processo de seleção baseado em apreciações particulares e epistemológicas. Entretanto, na relação entre o sujeito e a cultura no museu, quem decide sobre os sentidos que devem ser preservados e os novos sentidos que serão adotados?
O vínculo entre a cultura como manifestação dos sentidos de uma sociedade, em uma determinada época, e o trabalho de atualização desses sentidos enfatizam a necessidade da tomada de consciência da sociedade por si mesma por meio do contato daquilo que pertence a ela mesma. O museu pode ser o lugar dessa afirmação, onde sujeitos ou comunidades poderão reivindicar sentidos diferentes para determinados objetos.
Para Pinto (1979), a cultura representa a mediação histórica que possibilita a aquisição de outros dados culturais, que condiciona a expansão do conhecimento.E, segundo Adorno (1975), o conhecimento, a experiência e a formação cultural possibilitam a educação para a emancipação. Submetendo-se à ordem e ao assujeitamento, o indivíduo não tolera o diverso e repudia tudo o que não é a sua imagem e semelhança. Dessa forma, trata de expurgar aquilo que é heterogêneo, que é não eu, que é alteridade. E o que é a identidade senão aquilo que dizemos de si e tudo o que acolhemos sobre o que dizem sobre nós?
A identidade é uma vivência, uma experiência e, assim sendo, um marcador subjetivo e social construído em comunidade. O egoísmo que move o pensamento obstinado na identidade gera um modo de racionalidade obsessiva que culmina na indiferença. Seria o não reconhecimento de si no outro um dos problemas provocados e enfrentados pela cultura espetaculosa, discursiva e imagética que produzimos e da qual somos resultado atualmente? Qual é o nosso envolvimento frente à arte e à produção cultural apresentada pelos museus? Percepções mediadas por uma tela digital? Selfies?
Quanto mais envolvimento do sujeito frente ao objeto, mais chances de concretização do conhecimento. A prioridade do objeto não elimina a função do sujeito; ao contrário, o exige cada vez mais. Em Dialética Negativa, Adorno (1975)faz uma nota a esse respeito refletindo sobre a situação da educação. Resgatar o papel ativo do sujeito frente ao conhecimento é fundamental para garantir experiências formativas. A racionalidade desprovida de sujeito conserva certa irracionalidade em favor de uma falsa democracia do objeto.
Podemos, dessa forma, apreciar os componentes qualitativos da arte e da cultura com essa consciência desregrada, mediada e exibicionista? Ao eliminar uma possibilidade de reconhecimento individual e social, por meio da cultura, preocupando-se com a selfie, o sujeito aliena-se no sentido de que transfere para o outro o poder de avaliar a si mesmo. Dever-se-ia, então, restringir a selfie? Não. Quanto mais a sociedade dispõe de novos e avançados recursos técnicos e materiais, a capacidade do sujeito de interferir em suas condições de existência transforma-se. A selfie no museu não significa que o sujeito não se disponibiliza, integralmente, a uma experiência de formação cultural.
Em uma sociedade em que quase tudo pode ser substituído, trocado e negociado, as condições sociais da educação reforçam a subordinação, mas a intencionalidade institucional em provocar e inferir experiências culturais pode livrar o sujeito dos prejuízos em decorrência de uma formação que abriu mão da cultura.“A cultura é o lugar da busca da unidade perdida” (DEBORD, 1997, p. 120). Discorrer sobre essas valorações permite reconciliar interesses divergentes, de modo a manifestar a legitimidade da intervenção pública na construção dos sentidos atribuídos à arte e à produção cultural.
Debord (1997) define o conceito de espetáculo como o exagero na apropriação da cultura pela mídia, o que acontece quando aquilo que é feito para comunicar ultrapassa os limites. O processo de semiformação concretizar-se-ia aqui. A semiformação retira da cultura o poder formativo de uma codificação teórica, em que o arranjo conceitual está imutável e o potencial cognitivo e oposicionista da cultura, inacessível. “O espetáculo decorreria do fato de o homem moderno ser demasiadamente espectador” (DEBORD, 1997, p. 130).
A semiformação não pode ser compreendida somente como um processo cultural que não se construiu por completo. Ela é a deformação que impede e degrada a formação cultural autêntica. Para Adorno (1996), o semientendido e o semiexperimentado não representam um processo de formação incompleto, mas, sim, um inimigo letal desse processo.
O esclarecimento como consciência de si […] é condicionado culturalmente e, nos termos a indústria cultural, limita-se a uma “semiformação”, a uma falsa experiência restrita ao caráter afirmativo, ao que resulta da satisfação provocada pelo consumo dos bens culturais. (ADORNO, 1996, p. 23).
No entanto, de que modo a indústria cultural pode ser subvertida pelo compromisso social e formativo do museu? A produção cultural é também produção econômica e pode manter o seu caráter formativo, por mais que seja espetaculoso, quando mantém o seu espaço de contradição, de experiência, de diálogo, de inclusão, de produção de sentidos, de reconstrução de significados e de valores sociais. “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens” (DEBORD, 1997, p. 14).
Adorno(1975) propõe elementos de interpretação da realidade e demonstra o quanto sujeito e objeto nunca são plenamente sujeito e objeto, eles carecem de um momento que deve superá-los, mas que não pode transcendê-los. O autor deixa claro, com sua filosofia, a dimensão histórica e particular do conhecimento. A filosofia de Adorno propõe a antinomia e não se contenta com o permanente, mas propõe ordenações que durem o tempo suficiente para que se perceba sua insuficiência e contradições, gerando novas questões. Não seria a arte e a cultura fontes intermináveis de insuficiência e contradições?
O conceito de experiência formativa e o movimento de expansão da consciência crítica relacionam-se com condição subjetiva, autorreflexiva, imaginativa, produtiva, histórica, qualitativa e relacional. É a superação da indiferença e da impotência frente ao que é dado, e, ao mesmo tempo, uma capacidade de sensibilização profunda e não coisificada.
A perda de experiências formativas despotencializa a educação. Contra isso, a cultura e a arte podem fazer frente à medida que estimulam a percepção de inúmeros sentidos em relação à coletividade, à construção da identidade, da autonomia, auxiliando o sujeito a tornar-se produtor de conceitos.
Ao indagar, por meio da arte, os motivos e os acontecimentos culturais que produzem a representação de uma sociedade e de uma nação, tornamo-nos atentos a refletir sobre as influências a que estamos submetidos e sua validade temporal. “A consciência crítica retira da concepção histórica da realidade as categorias com que a aprecia” (PINTO, 1960, p. 87).
O museu como instituição anuncia, por meio de suas exposições e de seus programas, a importância e a necessidade da experiência cultural, artística e museológica crítica para a formação do sujeito. A investigação permanente dos conceitos que envolvem um objeto de arte apresenta-nos a pluralidade dos termos que o constituem, criando representações qualitativamente inéditas, incentivando a substituição das crenças espontâneas da consciência pela representação dos fatos nas suas relações causais e circunstanciais. Desse modo, o museuproduz e reproduz modos de vida e apresenta condições para que os sujeitosexercitemesse movimento. Os modos originários de formação de uma instituição museológica podem, em longo prazo, transformar os sujeitos de uma geração.
[1] Doutora e mestre em Educação: Currículo, pela PUC-SP. Docente dos cursos de Museologia e formação cultural: práticas e pesquisas interdisciplinares e de Patrimônio Cultural: gestão, políticas públicas e memória, na PUC-SP. Vinte anos de atuação na área educacional como docente, autora, consultora, palestrante e gestora. Pesquisadora do grupo Políticas de Educação/Currículo no Brasil -CNPq/PUC-SP e do GEPI, Grupo de Estudos e Pesquisas em Interdisciplinaridade,- PUC/CNPq. Membra cofundadora do projeto PUC MUSEUS - PUC-SP. Membra do ICOM: The International Council of Museum / CECA: Committee for Education and Cultural Action. Experiência em gestão e educação museológica, atuando principalmente nos seguintes temas: arte moderna e contemporânea, interdisciplinaridade, desenvolvimento de projetos, cursos de formação e coordenação de equipe. Desenvolve pesquisas sobre Formação Cultural, Estética, Interdisciplinaridade, Currículo e Fenomenologia. Possui, ainda, experiência em análise educacional e editorial, projetos pautados em metodologias ativas e gestão de parcerias.
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Referências
- ADORNO, Theodor. Teoria da Semicultura. Educação & Sociedade, Campinas, n. 56, ano XVII,p. 388-411, dez. 1996.
- ADORNO, Theodor. Dialética negativa. Madrid: Taurus Ediciones, 1975.
- DEBORD, Guy. A Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
- PINTO, Álvaro Vieira. Consciência e realidade nacional. A consciência ingênua. v. 1. Rio de Janeiro: Textos Brasileiros de Filosofia, 1960.
- PINTO, Álvaro Vieira. Teoria da Cultura. In: PINTO, Álvaro Vieira. Ciência e existência. problemas filosóficos da pesquisa científica. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 119-138.