Márcio Couto Henrique [1]
Numa manhã de agosto de 2008, o historiador da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará (FSCMP), situada à rua Oliveira Belo, bairro do Umarizal, em Belém do Pará, recebeu a notícia de que uma das luminárias da capela antiga da instituição havia sumido. Ao se dirigir à capela a fim de averiguar a denúncia, tal foi seu espanto ao perceber que, na verdade, todos os bancos da capela haviam sumido. Depois de uma breve busca de informações pelos corredores, o historiador recebeu a informação de que os bancos estavam sendo lavados na parte externa do prédio. Ao chegar ao local, soube que determinado funcionário havia doado os referidos bancos à Igreja Quadrangular, atendendo solicitação de um prestador de serviços que trabalha na FSCMP. “Os bancos,” disse o prestador de serviços, “estavam apodrecendo na capela e eu achei melhor doá-los à Igreja Quadrangular”.
Depois de uma discussão acirrada, o historiador conseguiu impedir a tempo a doação, mas infelizmente, todos os bancos já estavam descaracterizados, posto que, a fim de adequá-los a seu novo destino, o prestador de serviços havia serrado a base anterior que servia para apoio dos pés e/ou mais exatamente para os devotos ficarem de joelhos nas cerimônias.
Bancos da capela antiga da Santa Casa: patrimônio amontoado e mutilado
Foto: Márcio Couto Henrique
Este episódio deixou clara a necessidade de reflexão e mudança de atitude dos funcionários da FSCMP com relação ao patrimônio da instituição. A Santa Casa de Misericórdia do Pará foi fundada em 1650, mas o prédio atual data de 1900. Os bancos da capela antiga, atualmente fechada por apresentar riscos de desabamento, correspondem ao prédio de 1900, possuindo, portanto, 109 anos. O episódio acima narrado ocorreu justamente no momento em que o historiador trabalhava num projeto de captação de recursos para a restauração da capela.
O Museu/Arquivo Histórico da Santa Casa (MAHSC) foi fundado em 1987, por iniciativa do médico Alípio Bordalo. Além das atuais 15 coleções que compõem o acervo, ele também é responsável pela capela antiga da instituição. Inicialmente, o MAHSC funcionava num dos porões do hospital, passando a funcionar no local atual (antiga farmácia), a partir de 1999. Mesmo com 22 anos de existência, é curioso observar a invisibilidade do museu dentro do hospital, mesmo estando situado atualmente no corredor principal do prédio, onde diariamente circulam centenas de pessoas, entre funcionários, visitantes, pacientes e médicos. A começar pelos responsáveis pela vigilância do prédio, que vez ou outra proíbem a entrada de visitantes que se dirigem ao hospital unicamente para conhecer o museu. “Existe um museu aqui?”, esta é uma pergunta ainda comum entre vigilantes e funcionários do hospital. Dentre os funcionários, é comum o relato de muitos que trabalham no hospital há mais de três anos e nunca visitaram o museu. Alguns, apenas o fazem quando motivados por algum visitante externo, admitindo meio envergonhados que não conheciam o espaço. Há ainda aqueles que consideram o museu um espaço “macabro” e os que dizem que ele atrapalha o crescimento do hospital, ocupando um espaço que poderia servir para fins considerados mais “úteis”. Como vimos no artigo “Um museu hospitalar”, publicado nesta revista, felizmente os pacientes e visitantes que frequentam o MAHSC não compartilham desta miopia que atinge muitos funcionários da FSCMP.
Infelizmente, a frustrada doação dos bancos da capela antiga não constitui um episódio isolado. Uma antiga Gerente de Informação do Paciente, responsável pelo arquivo que guarda a documentação dos pacientes do hospital, vez ou outra dizia em alto e bom tom que ia “exonerar documentos”. Infelizmente, a ignorância expressa no uso da palavra errada (ela queria dizer “incinerar”), não impediu que muitos documentos fossem, de fato, incinerados ou destruídos no triturador de papéis até hoje existente no arquivo da instituição. Com relação ao museu, muitos outros exemplos de incompreensão ou desrespeito pelo patrimônio podem ser enumerados. O Salão Nobre do MAHSC, que reúne parte do mobiliário da antiga Sala das Sessões do Conselho da FSCMP, já serviu de local de reuniões de médicos da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (SOBRAMES). Ou seja, os médicos sentaram nas belas cadeiras centenárias que compõem o acervo do museu, que por volta de 1900 eram utilizadas pelo provedor e demais membros da diretoria da Santa Casa. Algumas cadeiras tiveram suas fibras vegetais que lhe serviam de assento trocadas por fibras plásticas, numa descaracterização que nem de longe compensa a comodidade dos seguidores de Esculápio. Como dizer aos visitantes que é proibido sentar nas mesmas cadeiras em que eles veem os médicos confortavelmente sentados? Como se já não bastasse o critério elitista utilizado na composição do acervo de muitos museus, posto que apenas preservam objetos que remetem à cultura da elite, impedir que visitantes sentem em cadeiras que os médicos podem sentar constitui um prolongamento dos privilégios de classe. Faz-se necessário lembrar que não estamos falando de um museu interativo, onde as peças podem e devem ser tocadas, manuseadas pelos visitantes, tal como o Museu do Marajó que Anna Linhares apresenta em seu artigo “Museu do Marajó: o museu de curiosidades interativas da região amazônica”, também publicado na Revista Museu.
Triturador de papéis do arquivo da FSCMP: se mal usado, um inimigo da memória
Foto: Márcio Couto Henrique
Em outra ocasião, o historiador foi consultado sobre a possibilidade de empréstimo da mesa do provedor da SCMP, posto que haveria o lançamento de um livro organizado por médicos da instituição e seria necessário “uma mesa bonita” para a noite de autógrafos. Eventos como o Natal também apresentam um desafio à conservação do patrimônio do MAHSC. Assim, quando o espaço conhecido como Brinquedoteca programou uma atividade em que se distribuiriam presentes às crianças internadas, o historiador se deparou com uma solicitação de empréstimo de uma das cadeiras centenárias do Salão Nobre, a ser utilizada pelo Papai Noel. Mais uma vez, o argumento era de que Papai Noel precisava sentar numa cadeira “bonita”. Considerando que geralmente os intérpretes do “bom velhinho” estão acima do peso, não é difícil imaginar o impacto da atividade sobre a cadeira do acervo.
Cadeira do provedor: patrimônio ameaçado por Papai Noel
Foto: Márcio Couto Henrique
No Natal de 2008, programou-se (sem a participação do historiador) a montagem de um presépio dentro do espaço do MAHSC, atrás de um janelão de vidro amplamente visível do corredor do hospital. Além da visibilidade, os idealizadores do projeto queriam segurança. Para surpresa do historiador, os componentes do presépio seriam o Menino Jesus, José, Maria, Reis Magos e animaizinhos pertencentes ao acervo do museu. Projeto aceito com ordens superiores, a instalação do presépio no espaço do museu coincidiu com um período de ausência do historiador. Ao retorno deste, o susto: na parte de cima do presépio uma perigosa combinação de luzes pisca-pisca em cima do algodão que sugeria neve no local onde Jesus nasceu. Ocorre que a neve imprecisamente sugerida pelo algodão não seria capaz de apagar o incêndio que o calor provocado pelas luzes pisca-pisca tornava iminente. Luzes apagadas! Sem falar que, se aqui não é possível identificar privilégios de classe, pode-se falar em privilégio confessional, dada a utilização do espaço do museu para a celebração de uma prática ligada a uma religião específica. Teriam os membros de outra religião o mesmo privilégio? A imagem do menino Jesus também foi solicitada (e negada) para uma apresentação natalina organizada por uma das enfermarias com o argumento nada animador de que a imagem que originalmente estava sendo utilizada havia sido quebrada.
Presépio de Jesus: patrimônio ameaçado pelo fogo
Foto: Márcio Couto Henrique
Por recusar anuência a todas as reivindicações que implicassem risco ou desvio da função do acervo do MAHSC, o historiador passou a conviver com a alcunha de “pessoa muito difícil” ou “brigão”. Deve-se observar que a intenção aqui não é julgar e condenar os funcionários da FSCMP como culpados por descaso pelo patrimônio da instituição, nem mesmo generalizar, pois há honrosas exceções de pessoas esclarecidas e comprometidas com o patrimônio cultural. Ao contrário, os exemplos aqui discutidos apontam para a necessidade de uma urgente política de educação patrimonial, que gere em todos uma reflexão sobre a importância da preservação da memória de uma instituição que existe no Pará há 359 anos. Mutilar as cadeiras da capela antiga significa também mutilar a memória de muitas experiências humanas vividas ali durante missas, batizados, confissões, primeira comunhão, crismas ou durante as concorridas festas de Santana e de Santa Izabel (padroeira do Hospital de Caridade) no mês de julho. Prova da boa vontade dos funcionários é o fato de que muitos deles, depois de esclarecidos quanto à importância do museu ou quanto à função dos objetos do acervo, tornam-se aliados das iniciativas de preservação e valorização do patrimônio institucional. Se há verdade no dito popular que diz que “o que os olhos não veem, o coração não sente”, mais do que nunca, é tempo de abrir os olhos.
[1] Doutor em Antropologia, professor da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará.
Nota do editor:
Artigo publicado originalmente no Revista Museu em 26/03/2009 16:20h.
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