Márcio Couto Henrique [1] Márcio Couto Henrique

Tornou-se comum entre os estudiosos que discutem a prática do colecionismo referir-se aos objetos cotidianos colecionados como objetos de uma paixão. No artigo “Desempacotando minha biblioteca”, Walter Benjamin afirmou que “toda paixão beira o caos, a do colecionador beira o caos da memória” (apud Bloom, 2003, p. 235) [2] . Maurice Rheims definiu o gosto pela coleção como “uma espécie de jogo passional” (apud Baudrillard, 2004, p. 95). Nessa mesma trilha, Jean Baudrillard afirmou que nossos objetos cotidianos são objetos de uma paixão, a da propriedade privada, atitude marcada por forte investimento afetivo, tal como acontece entre as paixões humanas. Essa paixão por objetos cotidianos exerce uma função reguladora e tem importância vital no equilíbrio do indivíduo, agindo como motivadora da existência. Em alguns casos, tal é a paixão que envolve os objetos que eles são considerados “deuses domésticos”, na medida em que encarnam no espaço os laços afetivos da permanência do grupo, tornando-se “docemente imortais” (2004, p. 22).

Nos últimos anos, vem crescendo o interesse das ciências humanas por um tipo de objeto bastante peculiar, suporte para o registro de múltiplas paixões humanas: os diários íntimos. Analisando o jogo passional estabelecido entre colecionadores e objetos do cotidiano, pode-se dizer que os autores de diários íntimos também são colecionadores, mas com uma singularidade: colecionadores de si mesmo. Da mesma forma que os objetos do cotidiano alvo da paixão de colecionadores, os diários íntimos possuem função reguladora e tem importância vital no equilíbrio do indivíduo. Como se depreende da leitura do diário de Bronislaw Malinowski (1884-1942):

“n[esta manhã (6.1.18) ocorreu-me que o objetivo de manter um diário e tentar controlar minha vida e pensamentos a cada momento deve ser consolidar a vida, integrar o pensamento, evitar fragmentar os temas ... pensei no diário e na integração da vida durante todo o dia ...” (1997, p. 203-203).

Também a paixão dos autores de diários, paixão por si mesmo, beira o caos da memória, pois é recorrente entre eles a convicção de singularidade, bem como verdadeiro temor de ser esquecido, de não ficar para a posteridade. É o que se percebe no seguinte trecho do diário íntimo de Couto de Magalhães (1837-1898):

trecho do diário íntimo de Couto de Magalhães (1837-1898)

“... [e]u tenho a ambição de fundar alguma coisa que preserve o meu nome do esquecimento...” (1998, p. 112). [3]

Dessa forma, é possível definir a escrita dos diários íntimos como uma coleção de fragmentos de si mesmo, os fragmentos que o autor julga dignos de conservação para a posteridade. Nesse aspecto, também é possível perceber semelhanças com o colecionismo de objetos do cotidiano, pois conforme Baudrillard, o processo de projeção narcisista do colecionador não se restringe a um único tipo de objeto. Ao contrário, o ato de colecionar objetos do cotidiano pode se expandir num número indefinido de objetos, envolvendo o colecionador numa “totalização de imagens de si”. Afinal, conclui Baudrillard, “colecionamos sempre a nós mesmos” (2004, p. 99).

Diários íntimos pertencentes ao acervo particular de Márcio Couto Henrique: doados para pesquisa (foto: Márcio Couto Henrique)Diários íntimos pertencentes ao acervo particular de Márcio Couto Henrique: doados para pesquisa (foto: Márcio Couto Henrique)

Também há semelhanças entre o tipo de relação estabelecida entre colecionador e objetos do cotidiano e a relação dos escritores de diários íntimos com os fragmentos de si. Para o primeiro, diz Maurice Rheims, o objeto é “como uma espécie de cachorro insensível que recebe as carícias e as restitui à sua maneira, ou antes as devolve como espelho fiel, não às imagens reais, mas às desejadas’” (apud Baudrillard, 2004, p. 97). Essa imagem pode ser constatada na maneira como Gilberto Freyre (1900-1987) se referia a seu diário íntimo:

“Oxford, 1922. ... É uma indignidade este meu receio de ofender ingleses com a presença de um brasileiro do valor de Torres. Mas é o que ocorre. E se eu não confessar estas fraquezas a este meu diário, para que diabo serve este meu diário?” (Freyre, 2006, p. 155).

O mesmo diário que recebe silenciosamente a confissão de uma fraqueza, restitui a imagem desejada por Freyre na vida pública:

“[i]sto é só o meu diário. Dito em voz alta ou publicado me deixaria mal: um idiota a acreditar nos que levianamente o chamam de gênio” (2006, p. 115).

Da mesma forma, diz-se que os diários íntimos mostram não aquilo que uma pessoa é, mas o que ela gostaria de ser, o que faz desse suporte de escrita de si elemento fundamental na construção de uma “ilusão biográfica” (Bordieu, 1996). Tanto objetos do cotidiano quanto diários íntimos são espelhos distorcidos, emissores de imagens desejadas, que muitas vezes negam contradições, anulam tensões, criam a sensação de equilíbrio e estabilidade do sujeito. O ato de registrar os fragmentos de si envolve o sujeito no “suave tédio da ordem” (Benjamin, 1994, p. 227). Ambos permitem ao indivíduo reconhecer-se como absolutamente singular, gerando uma “ilusória, mas intensa gratificação”, conforme Baudrillard refere com relação aos objetos do cotidiano (2004, p. 98). Ambos absorvem a angústia do tempo e da morte, alimentando aspirações de fama duradoura. Ou, como afirmou Philippe Blom sobre as coleções: “procuram afastar a morte construindo fortalezas de lembrança e permanência” (2003, p. 211).

Em todo caso, deve-se notar uma distinção entre coleção de objetos do cotidiano e coleção de fragmentos de si no diário íntimo. No primeiro caso, diz Jean Baudrillard, “a coleção é sempre um processo limitado, recorrente, seu próprio material, os objetos, é muito concreto, muito descontínuo para que possa se articular em uma real estrutura dialética” (2004, p. 112-113). E em nota de rodapé Baudrillard acrescenta: “ao contrário, por exemplo, da ciência, da memória, que também são coleção, mas coleção de fatos, de conhecimento” (2004, p. 113). Nos diários íntimos, coleção de fatos da memória, de (auto)conhecimento, o ato de colecionar se articula em uma real estrutura dialética, produtora de conhecimento de si e criadora de sentidos.

Com toda a riqueza que os diários íntimos apresentam como possibilidade de pesquisa, ainda são poucas as iniciativas no Brasil visando a preservação desse tipo de suporte. Em nosso país, não há nada como a Associação pela Autobiografia e pela Preservação do Patrimônio Autobiográfico (APA), instituição criada por Philippe Lejeune na França, em 1992, ou como o Arquivo Diarístico Nacional, sediado na Itália. Por outro lado, se existem instituições que preservam diários de personagens históricos considerados ilustres, tais como o do poeta paraense Antônio de Nazaré Frazão Tavernard (1908-1936), preservado na Academia Paraense de Letras [4] ou o de Getúlio Vargas (1882-1854), no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), não há a mesma preocupação com a preservação de diários íntimos escritos por pessoas comuns.

Uma das grandes riquezas desse tipo de fonte é a oportunidade de analisar o diálogo crítico e tenso que os autores de diários, sejam eles “ilustres” ou não, mantêm com os valores de seu tempo. Ao referirem habitus, modos de vida, relações sociais, encontros e desencontros de indivíduos ávidos por constituir para si próprio uma identidade e sobreviver a seu tempo, os fragmentos de si registrados no diário constituem um patrimônio cuja importância vai muito além do indivíduo que escreve (Henrique, 2009). Pelo que eles podem revelar enquanto fonte histórica e experimento literário, merecem ser preservados e valorizados.

Diários íntimos destruídos pelo fogo: sem direito a uma segunda existência (foto: Márcio Couto Henrique)Diários íntimos destruídos pelo fogo: sem direito a uma segunda existência (foto: Márcio Couto Henrique)

Atualmente, vislumbra-se luz no fim do túnel. Pesquisadores tais como Sérgio Barcellos, no Rio de Janeiro, Márcio Couto Henrique, em Belém, iniciam movimento visando criar uma rede de pessoas interessadas na preservação das chamadas “escritas de si”. Pela profusão que marca a escrita de diários nas últimas décadas, não é difícil imaginar arquivos abarrotados. A criação de instituições de preservação de diários íntimos no Brasil seria excelente oportunidade de evitar o fim tradicional desse tipo de suporte: o fogo ou o lixo, fim trágico que desperdiça às ciências humanas o estudo de fonte privilegiada e conduz os autores de diários ao caos da memória. Preservar os diários íntimos constitui forma de dar a esses objetos de memória uma segunda existência.


[1] Doutor em Antropologia, professor da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará.

[2] Cito aqui o trecho tal qual citado na tradução brasileira do livro de Blom (2003). Na edição brasileira de Walter Benjamin, consta: “toda paixão confina com um caos, mas a de colecionar com o das lembranças” (1994, p. 228).

[3] O diário original de Couto de Magalhães, de onde foi recortado o trecho acima, faz parte do acervo do Arquivo do Estado de São Paulo.

[4] Agradeço a Sara Suliman por essa informação.


Bibliografia

  • AMIEL, Henri-Frédéric. Diário íntimo. Rio de Janeiro: Livraria do Globo, 1947.
  • BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2004.
  • BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Obras escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 1994.
  • BLOM, Philipp. Ter e manter: uma história íntima de colecionadores e coleções. Rio de Janeiro: RECORD, 2003.
  • BORDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína (orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 2005, p. 183-191.
  • COUTO DE MAGALHÃES, José Vieira. (organização Maria Helena P. T. Machado) Diário Íntimo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
  • FREYRE, Gilberto. Tempo morto e outros tempos; trechos de um diário de adolescência: 1915-1930. São Paulo: Global; Recife, PE: Fundação Gilberto Freyre, 2006.
  • HENRIQUE, Márcio Couto. Um toque de voyeurismo: o diário íntimo de Couto de Magalhães (1880-1887). Rio de Janeiro: EDUERJ, 2009.
  • MALINOWSKI, Bronislaw. Um diário no sentido estrito do termo. Rio de Janeiro: Record, 1997.

Nota do editor:
Artigo publicado originalmente no Revista Museu em 30/03/2010 15:16.
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Resgatado para a nova versão em 29/04/2020 20:20h.

 

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