Márcio Couto Henrique [1]
Anna Maria Alves Linhares [2]

Desde menino Habib Fraiha Neto tem o hábito de colecionar. Aos dez anos de idade, esse descendente de libaneses iniciou sua primeira coleção: a de Estampas Eucalol, produzidas pela perfumaria Myrta e guardadas por ele em uma caixa de sapatos. Depois disso, esse hábito foi se expandindo para os mais diversos objetos: chaveiros, lápis, cinzeiros, caixas de fósforo, cartões postais, figurinhas, balas Atlas, distintivos de lapela, mexedores de drink, bolachas de chopp, fichas de Coca-Cola e, “coisas bem mais sérias”, diz ele, como medalhas comemorativas, moedas particulares e vales metálicos do Pará, o acervo do cientista paraense Gaspar Vianna, entre outros.

O colecionador Habib Fraiha Neto e sua coleção de moedas do Pará. Foto: Márcio Couto Henrique, 2012O colecionador Habib Fraiha Neto e sua coleção de moedas do Pará.
Foto: Márcio Couto Henrique, 2012

Atualmente, Habib Fraiha Neto, professor aposentado da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Pará (UFPA), é proprietário de rico acervo: possui a maior coleção de medalhas do Pará e de moedas, vales e fichas particulares emitidos por empresas paraenses desde a época do Império. Cada coleção é cuidadosamente guardada em álbuns ou armários especiais.

Muitas vezes o colecionador é entendido como avaro. Perguntamos a Habib Fraiha se ele se considerava um colecionador avaro ou se a avareza nada tinha a ver com sua maneira de ser colecionador, ao que ele respondeu:

Fazendo um exame de consciência a respeito da minha atuação como colecionador, sinceramente entendo que coleciono mais pelo prazer de conhecer e ensinar do que pela ânsia de possuir. Tanto assim que minhas coleções mais importantes estão sendo oferecidas em doação a sucessivos governos do Estado há muitos anos, e minha família já sabe que não deve contar com elas como herança. [3]

Segundo Habib Fraiha Neto, seus filhos não têm manifestado interesse nem pendor em herdar suas coleções, eis que foram educados no sentido de compreender que

o destino que pretendo para elas é o do usufruto dos interessados em cultura, como fui e aprendi muito com as minhas coleções. É por isso que entendo as coisas de um modo diferente do típico colecionador. E uma coisa muito me preocupa: tenho visto o triste destino de grandes coleções após a morte de seu proprietário...

Em todo caso, reconhece e censura a avareza de muitos colecionadores: “tenho dificuldades até de saber o que alguns deles possuem em suas coleções pelo medo de expô-las ou sei lá o quê”. De fato, o conhecimento que Habib Fraiha tem produzido a partir de suas coleções evidencia a relação que ele mantém entre o prazer de ter e o prazer de conhecer e ensinar. Atualmente, ele acaba de concluir um novo livro e está com seis outros em andamento no computador. [4] Em toda sua extensa produção acadêmica como pesquisador do Instituto Evandro Chagas e docente da UFPA, Habib Fraiha afirma que pelo menos 2 livros e 5 artigos estão diretamente relacionados às suas coleções. “Na verdade, eu tenho uma vocação irresistível para o magistério”, diz ele.

Perguntamos, então, a ele, como se dava o processo de produção de conhecimento a partir de seus objetos colecionados:

O conhecimento decorre da análise das inscrições de cada peça e da pesquisa a partir disso. Um bom exemplo é o estudo que fizemos sobre a medalha da Santa Casa de Misericórdia do Pará ao Doutor José Paes de Carvalho. [5] Eu gosto de mergulhar fundo, descobrir tudo que possa ilustrar aquela peça e quando recebo uma visita aqui, como a de vocês, contar a história toda. Por exemplo, eu tenho aqui uma medalha que é um prato cheio para contar história. Ela é simplesmente comemorativa do jubileu dos seiscentos anos do lançamento da pedra fundamental da catedral de Colônia, na Alemanha, considerado um dos mais importantes monumentos góticos do mundo...

Depois disso, discorre sobre coisas pitorescas a respeito da história da medalha. No decorrer da entrevista, a todo instante Habib Fraiha Neto, diante de seus objetos colecionados, deixava transparecer a paixão do colecionador (Benjamin, 1994). Com evidente brilho nos olhos, eis que os adjetivos revelam todo um “jogo passional” com seus objetos (Rheims, 1963): ora uma peça é definida como “bela”, outra como “soberba”, há aquelas que são “muito lindas” e, diante dos objetos de sua paixão, arremata: “é inacreditável o bom gosto da época!” ou “olha que coisa espetacular! Você vê postes trabalhados como este hoje? É inacreditável o bom gosto!”. Certamente que tais objetos lhe custaram parte significativa de seus rendimentos. “O que o senhor já foi capaz de fazer para obter uma peça?”, perguntamos. Sem revelar detalhes, o colecionador admite: “eu fui capaz de algumas loucuras!”.

Há que se observar, no entanto, que muitas peças são obtidas por meio de troca com outros colecionadores, permutas em que é necessário seduzir o outro com o que se tem, a fim de conseguir o objeto desejado, de tal modo que ambos saiam satisfeitos. A margem de sucesso da negociação depende, assim, da existência nas mãos de um colecionador de algo que possa interessar ao outro.

O ato de colecionar está tão arraigado na história de vida de Fraiha Neto que ele chega a definir como inata essa prática cultural tão antiga entre nós. Ele considera que o hábito de colecionar é inato: “é inato, pode crer! Não há outra explicação, é como vocação mesmo, é uma coisa que vem do berço. Eu tenho mania de colecionar. Colecionar me alegra o espírito”.

Se é verdade que “colecionamos sempre a nós mesmos” e que o ato de colecionar constitui forma de ultrapassar simbolicamente esta existência real cujo acontecimento irreversível nos escapa (Baudrillard, 2004, p. 104-105), assegurando a continuidade da vida, Fraiha Neto nos revela o destino que pretende dar a seus objetos colecionados:

Em duas ocasiões formalizei a dois governos diferentes do Estado a oferta de minha coleção de medalhas do Pará. Gratuitamente, porque colecionei com esse espírito. Eu chegava lá e pedia: ‘preciso de dois exemplares para exibir anverso e reverso, pois vou doar minha coleção para o governo do Estado’. Não tenho cara de pau, prometi e vou honrar o compromisso. Na verdade, eu gostaria que todo este acervo fosse abrigado em dependência do Museu Histórico do Estado, no Palácio Lauro Sodré, principalmente as peças referentes ao acervo Gaspar Vianna. Porque de que adianta destiná-lo a um museu que poucos irão visitar?

O colecionador se ressente de não ter sido procurado em qualquer dessas ocasiões em que tentou doar suas coleções de peças do Pará: “possivelmente, não foram ainda convencidos da importância do acervo”.

Certamente que muito do que Habib Fraiha Neto procura preservar em suas coleções tem a ver com o esforço de organização e preservação da memória regional. Isso fica claro ao percebermos a reação por ele esboçada diante de sua coleção de cartões postais da cidade de Belém:

Olha como era a atual Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Pará, um grupo escolar de arquitetura caprichada. E aqui o Café da Paz, no local onde hoje se ergue o edifício do BASA, na esquina da avenida Presidente Vargas com a Carlos Gomes. Aqui, Oswaldo cruz e João coelho se encontraram para negociar o combate à febre amarela no Pará. [6]

Dessa forma, pode-se dizer que, ao “mergulhar fundo” na história das peças, Habib Fraiha Neto mergulha também na história regional. Portanto, ele pratica um colecionismo frutuoso, influenciando novos talentos no ramo da historiografia e gerando conhecimento e preservação da memória.


[1] Doutor em Ciências Sociais, professor da Faculdade de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Pará.

[2] Doutoranda em História pela Universidade Federal do Pará, professora da rede estadual de ensino.

[3] Todos os trechos aqui citados foram obtidos em entrevista concedida por Habib Fraiha Neto, em Belém do Pará, aos 8 de junho de 2012.

[4] Fraiha Neto é autor de “Oswaldo Cruz e a febre amarela no Pará” (primeira edição, 1972), importante contribuição à história da medicina na Amazônia. A obra acaba de ser reeditada com nova roupagem, ricamente ilustrada (segunda edição, 2012).

[5] Fraiha Neto e Henrique (2008) dividiram autoria de artigo publicado na Revista Paraense de Medicina.

[6] Vários cartões postais do acervo H Fraiha contribuíram para a organização do álbum “Belém da Saudade” (1996), pela Secretaria de Cultura do Estado do Pará.


Bibliografia

  • BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2004.
  • BELÉM da Saudade: a memória de Belém no início do século em cartões-postais. Belém: SECULT, 1996.
  • BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Obras escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 1994.
  • FRAIHA NETO, Habib. Oswaldo Cruz e a febre amarela no Pará. Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1972.
  • FRAIHA NETO, Habib & HENRIQUE, Márcio Couto. “A medalha de caridade ao Dr. José Paes de Carvalho, Belém, 1895. Uma contribuição à memória da Santa Casa de Misericórdia do Pará e à historiografia da medalhística paraense”. Belém: FSCMP, Revista Paraense de Medicina, v. 22 (3) julho-setembro 2008, 85-88.
  • RHEIMS, Maurice. La vie étrange des objets: histoire de la curiosité. Paris: Union Générale d'éditions, 1963.

Nota do editor:
Artigo publicado originalmente no Revista Museu em 27/02/2013 21:30h.
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Resgatado para a nova versão em 29/04/2020 22:23h.

 

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