Márcio Couto Henrique [1] Márcio Couto Henrique

Em 1900, inaugurou-se o novo prédio da Santa Casa de Misericórdia do Pará (SCMP), situado na rua Oliveira Belo, bairro do Umarizal, em Belém do Pará (Vianna, 1992 [1902]). No interior do prédio, no final de um extenso corredor, fica a antiga capela da instituição, que comporta cerca de cem pessoas.

 

Capela antiga em funcionamento. Acervo do Museu da Santa Casa.Capela antiga em funcionamento. Acervo do Museu da Santa Casa.

À época de seu funcionamento, viam-se em altares nas paredes laterais imagens de Santa Izabel de Portugal (padroeira da Santa Casa de Misericórdia), Santo Antônio, Nossa Senhora, Sant’Ana, Sagrado Coração de Jesus, São José e São Joaquim, além de imagens com as cenas da via-crúcis. No teto, havia um bonito forro trabalhado, com detalhes em gesso sobre madeira. Na entrada da capela havia a imagem de um anjo, que possuía uma abertura onde os fiéis depositavam moedas. Graças a um dispositivo interno, toda vez que uma moeda era depositada, o anjo balançava a cabeça, em sinal de agradecimento.

Imagem de anjo. Museu da SCMP. Foto: Márcio C. Henrique.Imagem de anjo. Museu da SCMP. Foto: Márcio C. Henrique.

Até a década de 1980, a capela era administrada pelas freiras da congregação Filhas de Santana. Com localização privilegiada, no final do corredor que dava acesso a diversas enfermarias, era facilmente localizada e freqüentada pelos usuários do hospital. Em seus primeiros anos de funcionamento havia um capelão que residia na Santa Casa e realizava-se missa diariamente, contando com a participação dos doentes que podiam se locomover. Com a saída do capelão, a missa passou a ser celebrada apenas aos domingos, às 6:30 da manhã. Uma vez por mês havia a Missa dos Enfermos, organizada pela Pastoral da Saúde e destinada exclusivamente aos doentes.

Pacientes e seus acompanhantes costumavam fazer promessas aos santos de sua devoção, solicitando a cura de suas doenças. Era grande também a participação de moradores das proximidades do hospital. Além das missas, realizavam-se batizados, confissões, primeira comunhão, crismas, celebrações animadas com o som de um órgão e pelo coral constituído pelas próprias freiras. No mês de julho, eram muito concorridas as festas de Sant’Ana e de Santa Izabel.

Capela em funcionamento, em 1993. Foto: acervo IPHAN.Capela em funcionamento, em 1993. Foto: acervo IPHAN.

Em 1989, a direção da SCMP decidiu fechar a antiga capela, com o consentimento do então arcebispo do Pará, D. Alberto Ramos. Matéria publicada no jornal O Liberal anunciava a construção de “uma capela mais moderna, ampla e com um número menor de imagens de santos”. O arcebispo apresentou as seguintes justificativas para o fechamento da capela: “a primeira é que a capela está em péssimas condições, sendo até mesmo impossível sua restauração. O teto e o piso estão cedendo. Além disso, no projeto de restauração do hospital a capela ficaria num local inviável para o funcionamento, já que em seu redor serão instaladas enfermarias”.

Estado da capela antiga da SCMP, em 2008. Foto: Márcio C. Henrique.
Estado da capela antiga da SCMP, em 2008. Foto: Márcio C. Henrique.

Além disso, segundo o jornal, o arcebispo afirmou que “a capela atual não tem um bom aspecto arquitetônico, uma vez que os altares e as imagens são desproporcionais à altura da sala. (...) a sala está situada entre vários departamentos do hospital, o que origina transtornos, sobretudo com a entrada de pessoas estranhas que perturbam os enfermos sob justificativa de participar de solenidades litúrgicas”. A ideia era construir o Centro Obstetra no lugar da antiga capela.

A notícia do fechamento da antiga capela foi anunciada durante uma missa, em dezembro de 1989, mas não foi bem recebida pelos moradores da vizinhança e usuários da instituição. Segundo a Irmã Terezinha, ouvida pelo jornal, “há pessoas que frequentam há 50 anos a capela e tem carinho por ela. É compreensível. Outro dia morreu uma senhora que simplesmente frequentava a capela há 78 anos”. Para Regina Alves, que costumava ir à missa aos domingos, “a capela e a própria Santa Casa ficaram na geografia afetiva daqueles tempos. A capelinha da Santa Casa era pequena, simples, mas era também acolhedora, bonitinha”.

Mesmo com as reclamações, a capela foi fechada. Numa reforma realizada no Hospital da SCMP, suspendeu-se o piso do corredor, tornando inviável a entrada pela porta da frente. Em 1993, adaptou-se a nova capela na antiga entrada da maternidade. O Centro Obstetra não foi construído e a capela antiga foi abandonada à ação do tempo. Parte do forro desabou, o piso começou a ceder, surgiram rachaduras nas paredes e muitas infiltrações no teto. Ao coordenar uma limpeza da capela antiga no período em que trabalhei como historiador da Santa Casa (2007-2008), pude constatar a existência de gatos e pombos mortos em seu interior. Tudo isso dentro de um hospital, numa capela rodeada por enfermarias! Em artigo anterior publicado na Revista Museu, me referi à descaracterização dos bancos da capela antiga, cujos genuflexórios foram serrados antes de serem doados para uma igreja evangélica, ação que consegui impedir.

Por estar situada num ponto mais afastado das enfermarias, a nova capela dificultou o acesso dos pacientes. Segundo Jorge Guilherme Nascimento, que nasceu na maternidade da SCMP, “a capela antiga é o segredo da Santa Casa, é o coração da Santa Casa. Ela chamava o público, fica no coração do corredor, o paciente não precisa sair procurando a capela. As pessoas reclamaram muito quando a capela foi fechada”.

Ao contrário do que afirmou D. Alberto Ramos, a restauração da capela antiga da SCMP não era (em 1989) e não é impossível. Da mesma forma, se o arcebispo considerava que a capela não tinha “um bom aspecto arquitetônico”, isso não justificaria sua demolição, eis que ela constitui testemunho histórico de experiências religiosas e culturais vividas em seu interior, presente na memória de tantas pessoas que procuravam na fé um consolo para momentos de padecimento do corpo. Testemunha, ainda, a noção de bom gosto arquitetônico da época em que foi construída, em fins do século XIX e início do século XX, período áureo da chamada Belle Époque que embelezou as principais capitais da Amazônia: Belém e Manaus. Única em seu estilo na cidade, não faltam razões para justificar sua preservação.

O abandono da antiga capela da SCMP, além de demonstrar os riscos a que a instituição expõe os pacientes em tratamento de saúde, evidencia o descaso com a memória histórica dessa que é a mais antiga e mais importante instituição de saúde do Estado do Pará. De fato, pode-se citar muitos outros exemplos de descaso com o patrimônio dessa instituição: a demolição do prédio do Hospital Bom Jesus dos Pobres, em 1978 (onde a SCMP funcionou até 1900); o desaparecimento dos documentos históricos encontrados nos porões da SCMP, referentes aos séculos XIX e XX; a descaracterização da antiga entrada da maternidade, transformada em capela; a doação e descaracterização dos centenários bancos da capela antiga para uma igreja evangélica; a não convocação de novo historiador para chefiar o Museu e Arquivo Histórico da Santa Casa, apesar da existência de profissionais concursados para esse fim, entre outros.

Se Jorge Guilherme Nascimento definiu a capela antiga como “o coração da Santa Casa”, seu abandono coloca as memórias que ela preserva em risco de vida. O desabamento da antiga capela da SCMP, que pode ser anunciado a qualquer momento, simboliza o desabamento da memória de parte importante da história social da medicina na Amazônia.


[1] Professor da Faculdade de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Pará. Sócio do Instituto Histórico e Geográfico do Pará.


Referências

  • Jorge Guilherme Nascimento, entrevista concedida em 5 de agosto de 2008.
  • O Liberal, Belém, 27 dez. 1989. Caderno Cidades, p. 10.
  • Regina Alves, entrevista concedida em 18 de maio de 2015.
  • VIANNA, Arthur. A Santa Casa da Misericórdia Paraense: notícia histórica (1650-1902). Belém: Secult, 1992 [1902].

Nota do editor:
Artigo encaminhado originalmente em 11/2015.
Publicado apenas na atual versão do Revista Museu em 01/05/2020.

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