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Janine Menezes y Ojeda [i]
O presente artigo se reporta ao âmbito geopolítico no contexto museal ao propor uma abordagem relativa à necessidade de ressignificação de acervos, em especial dos restos humanos (kōiwi tangata) de coleções etnográficas provenientes de processos da repatriação de bens culturais musealizados. Para isso, utiliza-se como parâmetro a devolução de crânios tatuados (toi moko) dos Māori e Moriori por parte de alguns museus europeus, levando-se em consideração uma realidade histórica que engloba aspectos como: a comercialização desses crânios por volta de 1770 (que perdurou até a década de 1970); a narrativa de cunho colonialista; a preservação do acervo em museus ocidentais por mais de cem anos e, o retorno de alguns crânios à Aotearoa (Nova Zelândia), centralizado através do Museu Te Papa Tongarewa, para permanência em locais sagrados ou enterramento pelos descendentes em suas tribos (iwi) ou subtribos (hapū) originárias.
Ao abordar questões envolvidas a partir dos requerimentos de repatriação de restos humanos em museus de distintas nações, é importante ressaltar que o ingresso deste tipo de acervo nas coleções deu-se a partir de uma visão colonialista e ocidentalizada, sob determinante influência de geógrafos, antropólogos, artistas e outros integrantes de tripulações das expedições científicas ocorridas ao redor do mundo desde o século XVIII, como foi o caso das viagens feitas à Nova Zelândia pelo capitão James Cook, sob os auspícios da Coroa Britânica. Ademais, Orchiston (1967) ressalta o intenso tráfico dos toi moko no século XIX, envolvendo estrangeiros e nativos, que acabou por levar o governador Darling, de Nova Gales do Sul, a instituir uma multa de £40 a qualquer indivíduo encontrado tentando vender uma cabeça preservada.
Assim, após uma breve referência à trajetória de alguns processos de repatriação da Nova Zelândia, pretende-se ratificar a importância do compromisso ético entre as nações com base no conceito antropológico de alteridade (capacidade de se colocar no lugar do outro na relação interpessoal) conjuntamente com a continuidade de estudos e pesquisas no intuito de propor novas narrativas dentro de um contexto pós-colonialista. Como metodologia, fez-se fundamental o estudo de posições dos governos britânico, alemão e neozelandês provenientes de diretrizes desenvolvidas para os cuidados necessários com restos humanos existentes nas coleções de museus europeus, a exemplo da publicação alemã Recommendations for the Care of Human Remains in Museums and Collections (2013) e da britânica Guidance for the Care of Human Remains in Museums (2005).
No século XX, avanços se fizeram sentir com a finalização de conflitos intertribais entre os Māori levando à instituição do Programa de Repatriação Karanga Aotearoa pelo Museu Nacional da Nova Zelândia em 2004, resultante do que Vuille (2011) chamaria de uma "construção identitária unificada, o que faz com que os crânios sejam percebidos como ancestrais de todos". Neste sentido, percebe-se o avanço dos entendimentos entre os Māori e o governo local de acordo com princípios norteadores estabelecidos no programa, sendo eles: “1) o papel do governo é de facilitador - não reivindica propriedade de kōiwi tangata; 2) A repatriação de instituições e indivíduos estrangeiros é apenas por mútuo acordo; 3) Nenhum pagamento para kōiwi tangata será feito para instituições estrangeiras; 4) Kōiwi tangata deve ser identificado como originário da Nova Zelândia; 5) Māori deve estar envolvido na repatriação de kōiwi tangata, incluindo a determinação dos lugares de descanso definitivos, sempre que possível; e 6) A repatriação de kōiwi tangata será realizada de forma culturamente adequada.”
Entretanto, a repatriação ainda gera polêmica entre os curadores das coleções e requerentes, cada qual em defesa da permanência ou retorno desses restos mortais (kōiwi tangata), acarretando extensos processos judicializados como no caso do governo francês ou legislação específica como nos moldes do governo britânico, através da Human Tissue Act 2004.
Com relação à resistência e argumentações contrárias à repatriação dos toi moko, alega-se, principalmente, as boas condições de preservação nos museus e os prejuízos ao desenvolvimento científico, a exemplo da devolução do patrimônio pela França. Acrescido a esses argumentos, Rostkowski (2010), esclarece que as polêmicas discussões ocorreram também devido à rígida legislação estabelecida desde o Antigo Regime, que considera as coleções nacionais públicas como bens imprescritíveis e inalienáveis.
Em território francês, a Lei 2002-5, de 4 de janeiro de 2002, que substituiu a Portaria de 1945, ressalta o princípio da inalienabilidade do domínio público, mas também prevê a possibilidade de "desclassificar" certos objetos das coleções dos museus, mas somente após autorização prévia de uma comissão científica. Assim, somente após uma complexa judicialização é que os bens culturais foram devolvidos aos Māori pelo governo francês em 2012.
A parceria firmada entre as nações francesa e neozelandesa resultou na realização da exposição Māori. Seus Tesouros têm alma, no Museu du Quai Branly, com curadoria nativa feita por profissionais do Museu Nacional da Nova Zelândia. O encerramento da exposição ocorreu com a devolução, em solenidade oficial, de vinte Toi moko requisitados pelos Māori.
Segundo Nina Vincent (2015) os crânios tatuados, representativos de uma hierarquização entre as tribos, seguiram para o Museu Te Papa Tongarewa, passando a ser conservados em um lugar sagrado, de acesso restrito. Alguns deles retornaram às tribos ou subtribos de origem após o seu reconhecimento enquanto outros encaminhados para pequenos museus locais.
Vislumbra-se, assim, uma ampliação de propostas curatoriais, sobretudo com relação às narrativas pertinentes a esses “objetos” que não mais integram coleções etnográficas (após a repatriação) na qualidade de "patrimônio nacional" dos museus do Ocidente. É essencial enfatizar que interpretações antropológicas e etnográficas do passado, de natureza academicista, mostraram uma visão colonialista que não mais corresponde aos genuínos processos culturais que ocorrem atualmente entre os povos das nações, contato este que deve primar pelos princípios éticos, respeito mútuo e um espectro de visão ampliado sobre o conhecimento da evolução da Humanidade.
Deve-se igualmente considerar que, no âmbito interpretativo, significativas mudanças se fizeram sentir no contexto da Antropologia Pós Moderna, sobretudo a partir da perspectiva de Geertz (1989) com relação a pontos de vista do nativo, estabelecendo a seguinte consideração no processo de descolonização:
(...) os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, na verdade, de segunda e terceira mão (por definição, somente um "nativo" faz a interpretação em primeira: é a sua cultura). Trata-se, portanto, de ficções; ficções no sentido de que são "algo construído", "algo modelado" - o sentido original de fictio - não que sejam falsas, não-fatuais ou apenas experimentos de pensamento (...) Convencer-se disso é compreender que a linha entre o modo de representação e o conteúdo substantivo é tão intraçável na análise cultural como é na pintura (GEERTZ, 1989a. p.26)
A formação de coleções etnográficas sob a visão ocidental
O historiador Peter Burke (2003) versa sobre a coleta de artefatos com um singular ponto de vista com relação à constituição das coleções institucionais: "O processo de confisco, "anexação" ou "conquista científica" se estendeu a arquivos, bibliotecas e museus". Pode-se dizer que os "coletores" selecionavam restos humanos e artefatos para o fim específico de avolumar o acervo de gabinetes de curiosidades e museus, que por sua vez se utilizavam de métodos de registro e organização em coleções enriquecidas com interpretações antropológicas vigentes na época. Entretanto, no decorrer das frenéticas buscas e coleta de "curiosidades" e testemunhos exóticos, alvo de pesquisas científicas, o autor recorre ao uso frequente do termo "pilhagem" quando se refere à formação dessas coleções, citando que: "vários museus ocidentais adquiriram muitos artefatos de outras culturas por meios duvidosos, sobretudo no século XIX (...)".
Diante deste contexto, acredita-se que persista o desafio aos curadores das coleções de museus no que se refere ao aprofundamento das pesquisas sobre a proveniência de seus acervos, tendo em vista a “objetificação” de restos humanos no contexto museológico. Apesar de não abordada especificamente diretamente neste artigo, essa temática, necessita de maior aprimoramento por parte dos profissionais de museus em projetos futuros, a exemplo daqueles desenvolvidos por museus germânicos e estadunienses.
No Ocidente, os museus se utilizam de uma museália “desfuncionalizada”, no campo do simbólico, tratando os objetos como “semióforos” (portadores de significado) de acordo com a classificação de Krzysztof Pomian (apud Desvallés, 2013). Ao se lidar com restos humanos, no caso específico dos toi moko dos Māori, o crânio de um chefe ou escravo, objeto sagrado da iwi (tribo), não poderia ter sido “desfuncionalizado” para se caracterizar como mais um objeto museal para fins estudo e/ou exposição sem se levar em conta condições criteriosas, conforme propõe Desvallés (2013) ao afirmar que o objeto museal deve ser trabalhado para ser exposto.
Mesmo sem nunca terem sido expostos ao público, os restos humanos coletados no passado, provenientes de tribos e subtribos indígenas, ao serem introduzidos nas coleções dos museus, adquiriram prioridade distinta, apresentando uma nova visão ao serem destinados à pesquisa, conforme Devallés (2013) coloca ao afirmar que no desenvolvimento científico o que se leva em consideração é “a exigência do reconhecimento das coisas em um contexto universalmente inteligível”.
Segundo Vuille (2011), esses crânios se caracterizam como verdadeiros testemunhos de linhagem, “conectando os ancestrais míticos de sua tribo (iwi) às genealogias que ligam os vivos às divindades (atua)”. Em sua abordagem, a autora Vincent (2015) esclarece que esses tipos de testemunhos “são conservados em um espaço consagrado (wahi tapu), ao abrigo dos olhares e apenas especialistas do sagrado (tohunga) podem manipulá-los, em ocasiões particulares”. Na perspectiva de Maori, a exposição de seus antepassados como artefatos etnográficos corresponde a uma ofensa e a proibição da apresentação dos crânios tatuados uma verdadeira conquista do movimento político maori com o desdobramento e o consenso do Tratado de Watangi datado de 1840.
Após dois séculos, restos humanos existentes em museus, alvos de processos de repatriação, devem suscitar uma maior reflexão com relação à agregação de novos valores, reinterpretações a partir de conhecimentos adquiridos e contato com a cultura proveniente das tribos indígenas originárias, através em um sistema contínuo de cooperação entre as nações.
Princípios Éticos
Além de considerações do ICOM Code of Ethics for Natural History Museums (2013), optou-se nesta abordagem pela exposição de alguns itens estabelecidos no “Guia de Precaução de Restos Humanos em Museus” (2005), do Governo Britânico, e nas “Recomendações de Cuidados de Restos Humanos em Museus e Coleções” (2013), da Associação Germânica de Museus.
Quanto ao Guia britânico de 2005, cinco princípios éticos são recomendados para nortear a tomada de decisão dos dirigentes no desenrolar deste tipo de processo, ressaltando que as instituições e/ou comunidades busquem um equilíbrio em pontos conflitantes, tais como: Não-maleficência (que se evite prejuízo ou danos à comunidade e ao público em geral); Respeito à diversidade de crenças (respeitando a cultura em questão e tendo tolerância, modéstia com relação aos distintos aspectos culturais); Respeito ao valor da ciência (incluindo os benefícios da investigação à humanidade); Solidariedade (advinda de respeito mútuo, compreensão e cooperação, entendendo que todos devem ter consenso quanto à humanidade compartilhada) e Beneficência (basicamente “fazer o bem” à comunidade ou ao indíviduo em busca de bons resultados).
As diretrizes do documento estabelecem ainda uma questão crucial que se reporta à escolha por parte dos museus em exibir ou não os restos humanos ou reproduzir imagens dele ao público, destacando que, apesar da importância da divulgação em alguns casos, esta decisão deve emergir de uma reflexão cuidadosa, devendo ser acompanhada de material explicativo adequado. São igualmente feitas recomendações sobre as boas condições de armazenamento, uma vez que o acervo é composto de material orgânico.
No segundo estudo de caso, após o repatriamento de crânios maori pelo governo da Alemanha através do Museu de Frankfurt em 2011, o documento "Recomendações para o cuidado dos seres humanos permanece em museus e coleções" (2013) foi desenvolvido e um grupo de trabalho foi criados especialmente para estudos de Proveniência de suas coleções. Ao desenvolver essa documentação para o tratamento dos restos humanos, questões como a abrangência do termo e o “Contexto da Injustiça” passaram a orientar os processos de repatriação. Dentro desta visão, um dos membros do Museu Te Papa Tongarewa, Herewini (2017), manifestou o ponto de vista Māori com relação ao conteúdo do documento, abordando o fato do Te Papa Tongarewa só buscar o retorno de restos não modificados, e não aqueles modificados post mortem, o que não se aplica aos crânios, uma vez que estes mantem a integridade de suas características originais em função do processo de mumificação, diferindo de peças feitas de ossos humanos como algumas flautas. Quanto à exposição dos restos Māori e Moriori, Herewini argumenta ainda que: “(...) dada a situação de como os restos indígenas foram colecionados e negociados no passado, eu penso que não existe uma justificativa substantiva disponível para esses mesmos vestígios serem exibidos. É importante notar que Te Papa Tongarewa tem uma política para não exibir Māori ou Moriori”.
Em contraste, Cuno (2011) argumenta que reinvindicações de repatriação com base somente nas alegações quanto à origem nacional dos acervos vão de encontro às questões de intercâmbio cultural e à proposta de promoção de uma visão cosmopolita em museus enciclopédicos como o British Museum e o Museu do Louvre. Segundo o autor, em tempos de globalização, grandes museus devem expressar “o pluralismo, a diversidade e a idéia de que a cultura não deve parar nas fronteiras”. E ainda ressalta que: “A propriedade cultural deve ser reconhecida pelo que é: o legado da humanidade e não do Estado-nação moderno, sujeito à agenda política de sua atual elite governante”.
O Retorno dos Toi Moko a Aotearoa
De acordo com informações do Museu Te Papa Tongarewa, guardião dos crânios tatuados e de restos ancestrais repatriados das iwi Māori e Moriori, a instituição se responsabiliza pela cerimônia de apresentação e boas vindas à comunidade Māori local. Após a solenidade, os crânios (toi moko) passam por um período de avaliação (quarentena) e conservação, além de engrenar em novas pesquisas para confirmação de procedência para entrega às famílias de origem.
Essa pesquisa envolve quatro fases, sendo elas referentes a: informações acerca da aquisição pelos museus; informações provenientes da história oral dos Māori e da versão de exploradores, comerciantes e colecionadores europeus e americanos, desde 1769; dados sobre batalhas intertribais e comércio dos crânios por inimigos e estudos com especialistas na tatuagem Māori para identificação através de padrões de tatuagem (moko). O museu Te Papa esclarece que não realiza testes de DNA nos restos ancestrais dos Māori.
Uma dessas fases pode ser exemplicada através de informações acerca da aquisição de dois crânios no Colégio Real dos Cirugiões, citado no Relatório do Te Papa Tongarewa (2016), que faz menção aos dados de 1913, registrados por conservadores:
Two crania from a cliff-deposit near Wanganui, at the southern extremity of the North Island. Their characters are not Māori, but Moriori – the inhabitants of Chatham Islands, who were supposed to have preceded the Māoris in New Zealand. Rev. H. Mason.
Em termos de significação, a repatriação dos restos ancestrais para as comunidades Māori e Moriori revela que a conexão entre o passado e o presente está na vanguarda da memória coletiva.
Desde 2003, o Museu Te Papa Tongarewa repatriou mais de 400 restos ancestrais Māori e Moriori de instituições estrangeiras. Eles creem que ainda há cerca de 600 crânios a serem devolvidos. Cabe ressaltar que no Programa de Repatriação Karanga Aotearoa há também um processo de resgate dos restos humanos em solo neozelandês, mas este estudo apenas abrange aspectos relativos à internacionalização dos processos de repatriação pela Aotearoa.
A importância do Conselho Internacional de Museus nos casos de repatrição
A restituição da propriedade cultural é, portanto, um ato de devolver partes significativas da alma das culturas. É uma mão aberta para o Outro, um ato simbólico que revela a vontade de desenvolver o diálogo intercultural e estabelecer novas formas de relacionamento entre os grupos culturais (Scheiner, 2010, pg. 35)
Há tipos diferenciados de negociações de repatriação de bens culturais, identificados como de natureza judicializada ou consensual. O Codigo de Ética do ICOM para os museus (2004), alerta não apenas para as pesquisas sobre restos humanos e objetos sagrados, que devem considerar "os interesses e as crenças da comunidade e dos grupos étnicos e religiosos dos quais os bens se originaram", mas também quanto à restituição dos bens especificamente relacionada à posição do museu envolvido, aconselhando que "se for legalmente autorizado, deve tomar as providências necessárias para viabilizar a restituição".
Ao esclarecer sobre esta questão do aumento das coleções em função da profusão de registros adquiridos com as descobertas do século XIX, uma realidade no cenário contemporâneo mundial se faz presente: a mediação feita como resolução consensual feita pelos consultores jurídicos do ICOM em parceria com a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) entre as nações envolvidas em processos de repatriação dos acervos, como forma alternativa de evitar o avanço em direção a dispendiosos e extensos litígios em torno da disputa da posse de bens culturais. Através de um comitê específico do órgão internacional, há atualmente um serviço de oferta de ação de mediadores no que tange à proveniência, restituição, retorno, posse e guarda de objetos que integram as coleções de museus pelo mundo.
Uma maior eficácia tende a ser mais comumente implementada através da ação de mediadores no intuito de facilitar e encontrar soluções mais satisfatórias entre as partes do que a ação pública em tribunal. No decorrer do processo, as partes podem optar por um processo de mediação confidencial, evitando o desgaste e preservando a relação entre elas. No caso desses objetos supostamente roubados ou exportados de forma ilegal do país de origem, foi aprovado pelo ICOM em sua 22 ªAssembleia Geral, em 2007, a Resolução nº 4, visando prevenir o tráfico ilícito e promoção no retorno físico, repatriação e restituição de bens culturais.
A conquista política dos Māori
Nesta visão, os Māori parecem abrir o caminho e levar a novas reflexões acerca dos desdobramentos de suas conquistas políticas, ao requerer a repatriação de seu patrimônio que ainda compõem coleções museais em outros países, além de deter, a partir de um desenvolvido e significativo marco identitário, o controle de sua representação frente ao mundo ocidental. Neste aspecto, Paul Tapsell (2009) destaca distintas visões entre "colonizadores" e "colonizados" esclarecendo que uma parte do mundo (Inglaterra, Europa e parte da Nova Zelândia) ainda considera James Cook como o grande descobridor das ilhas do Sul do Pacífico, enquanto a outra parte (habitantes de Aotearoa) considera a chegada do comandante inglês como marco do início de um cataclisma social.
A partir de relatos escritos, parece que os crânios, bem como os restos esqueléticos ocasionalmente, foram coletados de sepulturas Māori em cavernas funerárias por parte dos europeus sem o consentimento de suas comunidades descendentes - uma prática que hoje seria caracterizada como saque, mas que na literatura de viagens contemporânea é freqüentemente descrita em termos heróicos. (GABRIEL, 2010, p.35)
Ao longo de cerca de trinta anos, museus e membros da cultura Māori realizaram debates e discussões acerca de uma nova conceituação da representação da cultura em museus da Nova Zelândia, integrando um longo processo de descolonização. Dentro deste processo evolutivo, reemerge o Tratado de Waitangi [1] (1840), garantindo uma legislação com princípios básicos tais como parceria e proteção ativa.
A adoção do biculturalismo a partir dos anos 1980 permitiria a existência das duas culturas (britânica e Māori) com respeito a valores e tradições em distintas áreas, inclusive com relação ao completo domínio de cada cultura, em que se destaca a autodeterminação dos Māori. Segundo Mccarthy (2011), uma dessas iniciativas incluiu a "adoção de nomes Māori dos objetos, exposições e museus, além de práticas e cerimônias".
Na década de 1990, o processo de firmação da cultura Māori se delineou envolto em inúmeras discussões, até se chegar à reforma da prática museológica, visando à agregação do legado Māori espalhado em museus pelo mundo. E justamente a união e organização dos Māori que acabou por levar aos requerimentos em processos de repatriação de seus bens culturais, concentrados através do Museu Te Papa Tongarewa.
Uma nova representação do conhecimento nos museus
No mundo globalizado e com o avanço da Museologia propõe-se uma reavaliação acerca das narrativas apresentadas ao longo dos séculos em museus tradicionais com relação a este patrimônio coletado, levando-se em consideração uma recontextualização destes acervos, partindo-se de novas produções de conhecimento adversas do tradicional discurso colonialista, tendo por base o princípio da alteridade, aspectos éticos com relação aos distintos povos, o firmamento geopolítico das comunidades, que poderão evidenciar segundo Thomas (1991) uma melhor "simetria entre as apropriações dos artefatos europeus e a coleta colonial de coisas indígenas". Coloca-se, assim, em discussão as consequências da histórica da interrelação entre colonizador e colonizado no cenário contemporâneo, bem como as novas representações do acervo devolvido às comunidades originárias.
Museus detentores dos acervos e comunidades requerentes se relacionam de formas diferenciadas, de acordo com os tipos de demandas, no que tange à devolução do patrimônio cultural aos seus locais de origem, dentro de um trâmite que abrange o requerimento inicial, inúmeras análises e posicionamentos de representantes dos países envolvidos, entidades, legislação da UNESCO e documentos da negociação política entre as nações. Indubitavelmente, a experiência e trajetória da UNESCO desde 1970 e do Conselho Internacional de Museus (ICOM), além das negociações independentes firmadas entre os países, se configuram como aspectos essenciais na contextualização da temática da repatriação, na tentativa de uma melhor solução de forma a minimizar as perdas para ambas as partes envolvidas.
Novas reflexões devem vir à tona por parte das instituições museais no que diz respeito à representação do conhecimento proveniente de um patrimônio inicialmente inventariado como "nacional", conservado e pesquisado ao longo do tempo pelo "ex-proprietário", e que atualmente se torna alvo de devolução às nações/comunidades originárias. Os museus podem aprimorar as parcerias no desenvolvimento de pesquisas científicas entre as nações envolvidas, unindo esforços na produção e na disseminação de uma nova produção de conhecimentos sobre a Humanidade.
Com relação às narrativas em museus, Kuprecht (2013) ressalta que é consensual por parte de curadores e especialistas de diversas partes do mundo que o conhecimento e o registro do passado são aspectos intrínsecos aos objetos de comunidades indígenas, além do fato de seus descendentes poderem corrigir e enriquecer as interpretações das coleções através de narrativas diferenciadas das vigentes nos museus ocidentais, oferecendo uma perspectiva mais real e primorosamente inédita ao olhar ocidental.
A contribuição Māori revela-se de maneira única e producente através das palavras expressas de Te Herekiekie (2016), membro do Te Papa, em resposta às diretrizes de repatrição do governo germânico “Nāku te rourou nāu te rourou ka ora ai te iwi – With my food basket and your food basket our people will be nourished”. É conclusivo, assim, que a ação cooperativa e a qualidade das interrelacões entre as comunidades indígenas e os representantes dos museus tendem a dignificar ainda mais a cultura dos povos, acarrentando significativos avanços na divulgação do conhecimento ao público.
[i] Museóloga/ Advogada. Mestre em Ciência da Informação. Rio de Janeiro, Brasil, 2020. Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
[1] In the appendix of his publication, Conal McCarthy clarifies the meaning of the treaty, a milestone in the advance of the political conquest of the Māori: "The Treaty of Waitangi has two texts, one Māori and one English (...) both represent in agreement in which Māori gave the Crown rights to govern and to develop Bristish settlement, while the Crown guaranteed Māori full protection of their interest and status, and full citizenship rights. (2011, p.258)
Glossário
- atua - god,supernatural being, guardians or spiritual powers of the natural world
- hapū - extended family group, subtribe or section of a large tribe, also word for 'pregnancy'
- iwi - tribe, nation, people, also word for 'bone(s)'
- kōiwi tangata - human bone (s) or skeletal remains
- Moriori - the indigenous people of the Chatham Islands 800 kilometres east of New Zealand, descended from the same Polynesian settlers as the Māori
- mokamokai – dried human head often tattooed, now often referred to as ‘toi moko’
- moko - incised body adornment, tatoo
- tohunga - expert, priest
- toi moko - respectful modern term for decorated, tattooed preserved human head (also, mokamokai)
- wahi tapu - special places, sacred spots; also special repositories in museums for human remains
(MCCARTHY, 2011,p.263-270)
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